sexta-feira, 13 de março de 2015

Terceira pregação da Quaresma 2015: Oriente e Ocidente perante o Mistério da Pessoa de Cristo.


ORIENTE E OCIDENTE PERANTE 
O MISTÉRIO DA PESSOA DE CRISTO


1. Paulo e João: o Cristo visto de dois ângulos

Em nosso esforço de compartilhar os tesouros espirituais do Oriente e do Ocidente, vamos hoje refletir sobre a fé comum em Jesus Cristo. Tentemos fazê-lo como quem fala de alguém presente, não de um ausente. Se não fosse pela nossa pesadez humana, que nos atrapalha, deveríamos pensar que, toda vez que pronunciamos o nome de Jesus, Ele se sente chamado pelo nome e se volta para nos olhar. Hoje também Ele está aqui conosco e escuta o que diremos dele (esperemos que com indulgência).

Comecemos pelas raízes bíblicas da “questão Jesus”. No Novo Testamento, vemos delinear-se duas vias de expressão do mistério de Cristo. A primeira delas é a de São Paulo. Resumamos os traços peculiares dessa linha, os traços que a tornarão modelo e arquétipo cristológico no desenvolvimento do pensamento cristão. Esta linha:

- Primeiro, parte da humanidade para alcançar a divindade de Cristo; parte da história para atingir a pré-existência; é, portanto, um caminho ascendente; segue a ordem do manifestar-se de Cristo, a ordem em que os homens o conheceram, não a ordem do ser;

- Segundo, parte da dualidade de Cristo (carne e Espírito) para chegar à unidade do sujeito "Jesus Cristo, nosso Senhor";

- Terceiro, tem no centro o mistério pascal, o operatum, mais do que a pessoa de Cristo. O grande marco entre as duas fases da existência de Cristo é a ressurreição dos mortos.

Para nos convencermos de que esta consideração é acertada, basta reler a densíssima passagem, uma espécie de credo embrionário, com que o Apóstolo começa a Carta aos Romanos. O mistério de Cristo é assim resumido:

"Nascido da estirpe de Davi segundo a carne, constituído Filho de Deus com poder segundo o Espírito de santificação mediante a ressurreição dentre os mortos, Jesus Cristo, nosso Senhor" (Rm 1,3-4).

No hino cristológico de Filipenses 2, também se fala antes de Cristo na condição de servo e, depois, a partir da ressurreição, de Cristo exaltado como Senhor. O sujeito concreto, mesmo quando se define Cristo como "imagem do Deus invisível" (Cl 1, 15), é para Paulo sempre o Cristo da história, ainda que a ideia da pré-existência esteja longe de lhe passar despercebida.

Um rápido olhar para os tempos seguintes nos permite ver como serão recolhidos e desenvolvidos esses traços paulinos de Jesus na geração sub-apostólica. Carne e Espírito, que indicavam originalmente duas fases da vida de Cristo, o antes e o depois da ressurreição, passarão a indicar, já em Santo Inácio de Antioquia, os dois nascimentos de Jesus (seu nascimento de Maria e seu nascimento de Deus) e, finalmente, as duas naturezas de Cristo. 

Tertuliano escreve:

"O apóstolo ensina aqui as duas naturezas de Cristo. Com as palavras ‘nascido da estirpe de Davi segundo a carne’, ele designa a humanidade; com as palavras "constituído Filho de Deus segundo o Espírito’, ele indica a divindade"[1].

A esta via ascendente do mistério de Cristo, João expõe, em paralelo, uma via descendente. Podemos resumir assim as características desta segunda via:

- Primeiro, ela parte da divindade para chegar à humanidade; o esquema se inverte: não mais "carne - Espírito", mas "Logos - carne"; não antes o humano, o visível, e depois o divino e o invisível, mas o contrário; João adota o ponto de vista do ser, não do manifestar-se de Cristo a nós, e, segundo o ser, é claro que a divindade precede nele a humanidade;

- Segundo, é uma via que parte da unidade e chega à dualidade de elementos: Logos e carne, divindade e humanidade; na linguagem posterior: parte da pessoa para chegar às naturezas.

- Terceiro, o grande divisor de águas, o eixo em torno ao qual toda a história gira, é a encarnação, não a ressurreição ou o mistério pascal.

De Cristo, interessa mais a pessoa do que o operatum, o ser mais que o agir, que inclui até mesmo o mistério pascal de morte e ressurreição. Este último serve essencialmente para revelar quem é Jesus: "Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então sabereis que Eu Sou" (Jo 8, 28). A existência junto ao Pai é constantemente anteposta à sua vinda ao mundo. Basta lembrar as duas grandes afirmações do início do quarto Evangelho para mostrar a validade desta sumária reconstrução:

"No princípio era o Verbo,
e o Verbo estava com Deus
e o Verbo era Deus [...].
E o Verbo se fez carne
e habitou entre nós".

São assim traçadas as duas linhas sobre as quais caminhará toda a reflexão posterior da Igreja sobre Cristo. Apesar das diferenças, há uma profunda afinidade e uma comunicabilidade recíproca entre essas duas vias, o que permite que elas sejam percorridas em um sentido ou no outro. Para os dois, Paulo e João, há em Jesus Cristo um elemento divino e um elemento humano, mesmo sendo Ele um único sujeito. Para ambos, Ele é o revelador e o redentor universal, embora João insista mais no revelador e Paulo mais no redentor. Para ambos, a nossa relação com Cristo é mediata e possibilitada pelo Espírito Santo. É crendo em Cristo, dizem ambos, que recebemos o Espírito (Gl 3,2; Jo 7, 39) e é recebendo o Espírito que podemos crer em Cristo (1 Cor 12,3; Jo 6, 63).

Ao se passar à época seguinte, essas duas vias tendem a se consolidar, dando espaço a dois modelos ou arquétipos, e, finalmente, nos séculos IV e V, a duas escolas cristológicas. As escolas a que me refiro são a alexandrina, por ter seu maior centro em Alexandria do Egito, e a antioquina, irradiada de Antioquia da Síria. A principal razão da sua diferença não é, como chegou-se a pensar, que os alexandrinos se inspirassem em Platão e os antioquinos em Aristóteles, e sim que os primeiros se inspiravam mais em João e os segundos em Paulo.

Nenhum dos seguidores de qualquer das duas vias é consciente de escolher entre Paulo e João. Cada um tem a certeza de estar com os dois, o que é certamente verdadeiro. O fato, porém, é que as duas influências são bem visíveis e distinguíveis, como dois rios que, mesmo fluindo juntos, continuam se distinguindo pela cor diferente das águas. A diferença entre as duas escolas não é tanto que alguns sigam Paulo e outros João, mas que alguns interpretem João à luz de Paulo e outros interpretem Paulo à luz de João. A diferença está no esquema, ou na perspectiva de fundo, adotada para ilustrar o mistério de Cristo.

Pode-se dizer que essas duas escolas formaram as linhas principais do dogma cristológico. A síntese entre as duas instâncias ocorreu, como é bem sabido, no Concílio Ecumênico de Calcedônia, em 451, com a contribuição decisiva do Ocidente, representado por São Leão Magno. Aqui, a verdade subjacente, levada adiante em Alexandria e reconhecida no Concílio de Éfeso sobre a unidade da pessoa de Cristo, se conjuga com a instância fundamental dos antioquinos quanto à íntegra natureza humana de Cristo. As duas vias tradicionais são reconhecidas, desde que abertas uma à outra e em comunicação entre si.

O próprio modo de formulação da definição de Calcedônia aplica este princípio. Nela, o mistério de Cristo é formulado duas vezes e de duas maneiras diferentes: primeiro, de maneira joanina e alexandrina, partindo da afirmação da unidade e chegando à afirmação da distinção ("um só e mesmo Cristo, Senhor e Filho unigênito, em duas naturezas"); depois, de maneira paulina e antioquina, partindo da distinção das naturezas para chegar à afirmação da unidade ("salvas as propriedades de cada uma, as duas naturezas concorrem para formar uma só pessoa e hipóstase"). A mesma via é percorrida a partir de então nos dois sentidos.

2. O rosto de Cristo no Oriente e no Ocidente

Podemos perguntar-nos: o que aconteceu, depois de Calcedônia, com as duas vias ou modelos cristológicos fundamentais elaborados pela Tradição? Desapareceram, nivelados, da definição dogmática? No âmbito teológico, desde então, houve certamente uma única fé em Cristo, comum ao Oriente e ao Ocidente. São João Damasceno, para o Oriente[2], e Santo Tomás de Aquino, para o Ocidente, construíram ambos a sua síntese cristológica com base em Calcedônia. Não houve, ao contrário do que aconteceu no tocante à Trindade e ao Espírito Santo, divergências doutrinais significativas entre a Ortodoxia e a Igreja Latina quanto à doutrina de Cristo.

No entanto, se da teologia e da dogmática passarmos a olhar para outros aspectos da vida da Igreja, notaremos que os dois modelos ou arquétipos cristológicos não se perderam. Eles se conservaram e deixaram a sua marca, o primeiro na espiritualidade ortodoxa e o segundo na latina. Em outras palavras, a Igreja oriental privilegiou o Cristo joanino e alexandrino, e, com isto, a centralidade da encarnação, da divindade de Cristo e da ideia de divinização; a Igreja ocidental privilegiou o Cristo paulino e antioquino e, com isto, a humanidade de Cristo e o mistério pascal.

Não se trata, obviamente, de uma divisão rígida. As influências se entrelaçaram e variam de autor para autor, de época para época e de ambiente para ambiente. Ambas as Igrejas acreditaram, e com razão, que valorizavam conjuntamente João e Paulo, mas é por todos admitido que o Cristo da tradição bizantina apresenta traços diferentes do Cristo da tradição latina.

Consideremos alguns fatos que destacam essa diversidade olhando para o Cristo oriental. Na arte, a imagem mais característica do Cristo ortodoxo é o Pantocrátor, o Cristo glorioso. É Ele a quem a assembleia contempla na abside das grandes basílicas. É claro que a arte bizantina também conhece o crucifixo, mas mesmo o crucifixo tem traços gloriosos e de realeza, com o realismo da paixão já transfigurado pela luz da ressurreição. Ele é, em suma, o Cristo joanino, para o qual a cruz representa o momento de "exaltação" (Jo 12, 32).

Do mistério de Cristo, continua a ser colocado em primeiro plano o momento da encarnação. Coerentemente, a salvação é concebida como uma divinização do homem graças ao contato com a carne vivificante do Verbo. São Simeão, o Novo Teólogo, por exemplo, diz em uma oração a Cristo:

"Descendo do teu santuário excelso, sem deixares o seio do Pai, encarnado e nascido da santa Virgem Maria, já então me replasmaste e vivificaste, libertando-me da culpa dos nossos primeiros pais e preparando para a subida ao céu"[3].

O essencial já aconteceu com a encarnação do Verbo. A ideia de divinização retorna em primeiro plano, por impulso de Gregório Palamas, e caracterizará a "cristologia da última Bizâncio"[4]. Acaso é ignorado o mistério pascal? Pelo contrário: todos sabem da importância excepcional que tem a celebração da Páscoa para os ortodoxos. Mas eis, de novo, um sinal revelador: do mistério pascal, o momento mais valorizado não é tanto o abaixar-se quanto a glória; não a Sexta-Feira Santa, mas o Domingo da Ressurreição. De todos os pontos de vista, prevalece a atenção ao Cristo glorioso, ao Cristo Deus.

Estas características são encontradas no ideal de santidade que predomina nesta espiritualidade. O vértice da santidade é visto, aqui, na transformação do santo em imagem do Cristo glorioso. Na vida de dois dos santos mais típicos da ortodoxia, São Simeão, o Novo Teólogo, e São Serafim de Sarov, encontramos o fenômeno místico da conformação ao Cristo luminoso do Tabor e da ressurreição. O santo aparece quase transformado em luz.

Voltemos o olhar, agora, para alguns aspectos da espiritualidade ocidental. Santo Agostinho escreve que, dos três dias do Tríduo Pascal, "realizamos nesta vida o que é simbolizado pela cruz, enquanto mantemos na fé e na esperança o que é simbolizado pelo sepultamento e pela ressurreição"[5]. Em outras palavras: enquanto estamos nesta vida, o Cristo crucificado nos é mais próximo e imediato que o ressuscitado.

De fato, na arte, a imagem característica de Cristo, para o Ocidente, é o crucifixo. É ele que está entronado ou pairando sobre o altar nas igrejas. A mesma representação do crucifixo, em algum momento, se separa do modelo glorioso, régio, e assume traços realistas de verdadeira dor e até mesmo de espasmo. É o crucifixo paulino, que, na cruz, se tornou "pecado" e "maldição" para nós (cf. Gal 3, 13).

Assume grande relevância, a partir de São Bernardo e, depois, com o franciscanismo, a devoção e a atenção à humanidade de Cristo e aos diversos "mistérios" da sua vida. A kenosis, ou o abaixar-se de Cristo, ocupa um lugar de destaque, assim como o mistério pascal. Neste contexto, encontra a sua aplicação prática o princípio da "imitação de Cristo", que tinha sido o centro da teologia de Antioquia. Não é por nada que o mais célebre livro de espiritualidade do medievo latino será justamente A Imitação de Cristo. Contra toda tentativa de saltar a humanidade de Cristo para tender diretamente à união com Deus, Santa Teresa de Ávila afirmará que não há nenhuma fase da vida espiritual em que se possa prescindir da humanidade de Cristo[6].

Os santos proporcionam, também aqui, uma espécie de desencontro prático. Qual é, no Ocidente, o sinal da plenitude da santidade? Não é a conformação ao Cristo glorioso da Transfiguração, mas a conformação ao Crucificado. A ortodoxia não conhece casos de santos estigmatizados, mas conhece, como vimos, casos de santos transfigurados.

A Reforma Protestante, em alguns aspectos, levou ao extremo alguns traços deste Cristo ocidental, paulino, e do seu mistério pascal. Elevou a "teologia da cruz" a critério de toda teologia, entrando em polêmica, às vezes, com a "teologia da glória". Kierkegaard chegará a dizer que, nesta vida, não podemos conhecer a Cristo a não ser em sua humilhação[7].

É verdade que Lutero e os protestantes, em oposição aos excessos medievais da imitação de Cristo, afirmaram que Cristo é, acima de tudo, um dom a ser acolhido com a fé, muito mais do que um modelo a ser seguido com a imitação. Mas, aqui também, qual Cristo é visto como o "dom" a ser acolhido pela fé? Não é o Logos que desce e se faz carne, mas o Cristo pascal paulino, o Cristo "para mim", não o Cristo "em si".

Repito: devemos tomar cuidado com a rigidez nessas distinções; elas se tornariam falsas e anti-históricas. Por exemplo, a espiritualidade bizantina conhece todo um filão de santidade conhecido como dos "loucos por Deus", no qual a assimilação a Cristo na sua kenosis é fortemente acentuada. Mesmo com estas ressalvas, continua havendo uma diferença de ênfase inegável. O Oriente caminhou de modo preponderante pela via aberta por João; o Ocidente, pela via aberta por Paulo. Mas ambos, fiéis a Calcedônia, souberam abraçar, na sua perspectiva, também o outro polo do mistério, mantendo as duas vias comunicadas.

A graça do momento presente é que se começa a perceber a diversidade como uma riqueza e não mais como uma ameaça. Um teólogo ortodoxo expressou este ponto de vista: do Cristo latino, considerado isoladamente, pode derivar uma concepção demasiado histórica, terrena e humana da Igreja, e do Cristo ortodoxo uma concepção muito escatológica, desencarnada e não atenta o suficiente às suas tarefas históricas. Por isso, ele conclui que "a catolicidade autêntica da Igreja não pode deixar de compreender tanto o Oriente quanto o Ocidente"[8].
Não há necessidade, portanto, de eliminar ou nivelar as diferenças detectadas. Uma vez reconhecida a legitimidade e o caráter bíblico das duas abordagens, o que é necessário é o intercâmbio dos dons, o respeito e a estima pela tradição do outro. É como se Deus tivesse feito duas chaves de acesso à plenitude do mistério cristão e dado uma ao cristianismo oriental e a outra ao ocidental, de modo que uma não pode abrir e chegar à plenitude sem a outra.

Na cidade de Colmar, na Alsácia, existe um famoso retábulo de Matthias Grünewald. Nele, quando as duas abas do políptico estão fechadas, vemos representada a crucificação; quando abertas, vemos no lado oposto a ressurreição. A crucificação é de um realismo impressionante: vemos um Cristo em espasmos, com os dedos das mãos e dos pés contorcidos e esticados como galhos de uma árvore seca; o corpo traz sulcos e tem espinhos e pregos cravados em toda parte. É uma daquelas pinturas de Cristo das quais Dostoiévski dizia que, observando-as durante longo tempo, "pode-se até perder a fé"[9].

Por outro lado, o Ressuscitado aparece, nessa pintura, imerso em uma luz fulgurante que mal permite vislumbrar os traços de um rosto humano. Se nos detivéssemos neste ponto, nos arriscaríamos, se não a "perder a fé", certamente a perder a confiança, porque esse Cristo parece distante da nossa experiência de sofrimento. Não podemos dividir esse retábulo ou observá-lo de um lado só. É um símbolo poderoso daquilo que aconteceria, numa escala maior, com a separação do Cristo ortodoxo e do Cristo ocidental. Eles devem sempre ser vistos juntos.

3. Unidos pelo amor a Cristo

Até aqui, percorremos a estrada dos Padres e das testemunhas do passado. Revimos a história das suas posições em torno à pessoa de Cristo. Mas não é isso o que realmente nos fará progredir no caminho da unidade; não é, em outras palavras, a unidade substancial da doutrina e da fé em Cristo, por mais que ela seja indispensável; é, sim, a unidade no amor a Cristo! O que une profundamente ortodoxos e católicos, e que pode deixar em segundo plano toda diferenciação, é um comum e renovado amor pela pessoa de Jesus de Nazaré. Mas não o Jesus do dogma, da teologia e das tradições, e sim o Jesus ressuscitado e vivo hoje. O Jesus que é para nós um "Tu", não um "Ele". Para usar uma distinção muito cara a um teólogo ortodoxo contemporâneo, não o Jesus personagem, mas o Jesus pessoa[10].

O corpo humano tem dois pulmões, dois olhos, dois pés, duas mãos (metáforas muitas vezes utilizadas para descrever a relação de sinergia entre Oriente e Ocidente), mas um só coração! O corpo que é a Igreja tem apenas um coração e esse coração deve ser o amor por Cristo. Nicholas Cabasilas, um dos autores espirituais mais amados, e não só pela Ortodoxia, escreve:

"Ao Salvador é preordenado o amor humano desde o início, como a seu modelo e fim, quase um sacrário tão grande e tão amplo a ponto de poder acolher a Deus [...]. O desejo da alma se volta unicamente a Cristo. Este é o lugar do seu descanso, porque só Ele é o bem, a verdade e tudo o que inspira amor (eros)" [11].

Da mesma forma, em toda a espiritualidade monástica ocidental, ressoou a máxima de São Bento: "Nada, absolutamente, antepor ao amor por Cristo"[12]. Isto não significa restringir o horizonte do amor cristão de Deus a Cristo; significa amar a Deus da maneira que Ele quer ser amado. Não se trata de um amor mediato, quase por procuração, por meio do qual quem ama Jesus "é como se" amasse o Pai. Não, Jesus é um mediador imediato; amando Jesus, amamos ipso facto também o Pai, porque Ele é "um só com o Pai" (Jo 10,30). O cristão pode, com todo direito, aplicar a Cristo ressuscitado e vivo no Espírito aquilo que Paulo disse de Deus aos atenienses: "Nele vivemos, nos movemos e existimos" (Atos 7, 28).

Dado que estamos no ano da vida consagrada, eu gostaria de dedicar a ela um pensamento particular. A este respeito, me permito retomar algumas reflexões que fiz, há certo tempo, neste mesmo local, comentando a encíclica de Bento XVI "Deus Caritas est". Nela, o então sumo pontífice afirma que o amor de doação e o amor de procura, ágape e eros (este último entendido em seu sentido nobre, não no vulgar), são dois componentes inseparáveis ​​no amor de Deus por nós e em nosso amor por Deus. Neste reconhecimento, o Oriente precedeu o Ocidente[13], que, durante muito tempo, foi prisioneiro da tese contrária, ou seja, da incompatibilidade entre eros e ágape[14].

O amor ainda sofre, neste campo, uma nefasta separação, não só na mentalidade do mundo laico, mas também, no lado oposto, entre os crentes e, particularmente, entre as almas consagradas. Encontramos no mundo, muitas vezes, um eros sem ágape; entre os crentes, encontramos muitas vezes um ágape sem eros. O eros sem ágape é um amor romântico, muitas vezes passional, até violento. Um amor de conquista que fatalmente reduz o outro a objeto do próprio prazer e ignora toda dimensão de sacrifício, de fidelidade e de doação; em outras palavras, de ágape.

O ágape sem eros se apresenta como um "amor frio", um amar "com a ponta dos cabelos", mais por imposição da vontade que por impulso íntimo do coração; uma imersão num molde previamente constituído, em vez da criação de um modo próprio e irrepetível, como irrepetível é cada ser humano diante de Deus. Os atos de amor voltados a Deus se parecem, neste caso, aos de alguns amantes incautos, que escrevem à amada cartas de amor copiadas de um manual.

O amor verdadeiro e integral é uma pérola dentro de uma concha cujas duas partes são o eros e o ágape. Não se podem separar estas duas dimensões do amor sem destruí-lo. É assim que se apresenta o amor de Deus por nós, revelado na Bíblia. Ele não é só perdão, misericórdia, doação de si; é também paixão, desejo, ciúme; não é só amor paterno, mas também esponsal. Deus nos deseja, parecendo quase que não pode viver sem nós. Assim também Cristo quer que seja o amor dos seus consagrados por Ele.

A beleza e a plenitude da vida consagrada dependem da qualidade do nosso amor por Cristo. Só isto é capaz de defendê-la das debandadas do coração. Jesus é o homem perfeito; nele estão, em grau infinitamente superior, todas as qualidades e atenções que um homem procura em uma mulher e uma mulher num homem. O voto de castidade não consiste na renúncia ao casamento, mas em preferir outro tipo de casamento, em casar-se com "o mais belo dos filhos do homem". “Casto”, escreve São João Clímaco, “é aquele que repele o eros com o eros” [15]: aquele que renuncia ao amor de um homem ou de uma mulher pelo amor a Cristo.

Terminemos ouvindo o mais antigo hino a Cristo, conhecido fora da Bíblia, ainda hoje em uso nas vésperas da liturgia ortodoxa, e nas liturgias católica, anglicana e luterana. É usado no momento de acender as luzes vespertinas e por isso é chamado de "lucernário":

Avé, alegre luz, puro esplendor
da gloriosa face paternal,
Avé, Jesus, bendito Salvador,
Cristo ressuscitado e imortal.

No horizonte o sol já declinou,
brilham da noite as luzes cintilantes:
ao Pai, ao Filho, ao Espírito de amor
cantemos nossos hinos exultantes.

De santas vozes sobe a adoração
prestada a Ti, Jesus, Filho de Deus.
Inteira, canta glória a criação,
o universo, a terra, os novos céus.


Pe. Raniero Cantalamessa
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[1] Tertuliano, Adv. Praxean, 27,11 (CCL 2, p.1199).
[2] Cf. João Damasceno, De fide Orthodoxa III, (PG 94, 881 ss.).
[3] Simeão, o Novo Teólogo,  Inni e preghiere  (SCh 196, pág.332).
[4] Cf. J. Meyendorff, Cristologia ortodossa, Roma 1974, págs. 225.242.
[5] Agostinho, Cartas, 55,14,24 (CSEL 34,1, p.195).
[6] Teresa de Ávila, Autobiografia, 22, 1 ss.
[7] Cf. S. Kierkegaard, O exercício do cristianesimo I-II.
[8]  P. B. Vasiliadis, Vedere Dio. Incontro tra Oriente e Occidente, EDB, Bolonha 1994, pág. 97.
[9] F. Dostoiévski, O Idiota II, 4.
[10] J. D. Zizioulas, Du personnage à la personne, em L’etre ecclesial, Genebra 1981, págs. 23-56.
[11] N. Cabasilas, Vida em Cristo,  II, 9 (PG  88, 560-561).
[12] Regra de São Bento, 4 Prólogo.
[13] P. Evdokimov, L’Ortodossia, Bolonha 1965, pág. 161.
[14]  Anders Nygren, Eros e ágape, Güterslho 1937.

[15] S. João Clímaco, A escada do paraíso, XV, 98 (PG 88,880).
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Disponível em: ZENIT

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