terça-feira, 24 de março de 2015

Homilética: Ceia do Senhor: "Discernir o Corpo de Cristo".



Passaram-se dois mil anos e essas palavras ainda ressoam nos nossos ouvidos: “dei-vos o exemplo”. A história da Igreja está cheia de santos, homens e mulheres que souberam dar a sua vida por Cristo, seguindo fidelissimamente o Senhor JesusAo lado dos grandes exemplos de caridade e de serviço ao próximo, houve aqueles que não quiseram servir a exemplo do Senhor. Judas o traidor, Juliano o apóstata, tantos hereges e tantos cismáticos; tanta gente que nós não podemos julgar, mas que deixaram atrás de si a marca suja e nojenta de um contra testemunho que também perdurou.

Quanto se exige dos cristãos! Aqueles que nos olham desde fora, porque ainda não pertencem a essa grande família de filhos de Deus, gostariam de ver que nós somos mais desapegados dos bens materiais do que os outros, mais dados às obras de caridade; pedem de nós pureza de coração, castidade e uma vida de oração que seja condizente com aquilo que nós pregamos. Enfim, querem ver santidade em nós. Mas… dentro dos grupos da igreja, quanta rivalidade! Entre os movimentos, quantos desejos de ocupar o primeiro lugar para assemelhar-se às estrelas! Entre tendências legítimas, todas católicas, quanta falta de respeito à opinião dos irmãos! Em relação aos êxitos dos outros que trabalham por Cristo como nós, quanta inveja! Há muito que purificar, há muito que melhorar, há muito por amar.

Jesus pede a cada um de nós o esforço por lavar os pés dos outros, segundo o exemplo que ele nos deixou. Quanto custa!

A pergunta de Jesus ressoa até hoje e nos desafia: “Vocês entendem o que lhes tenho feito?” Passados aproximadamente 2 mil anos, será que de fato entendemos o gesto de Jesus? Para responder, seria necessário olhar para a maneira pela qual vivemos em comunidade. Há comunhão ou divisão? Diálogo ou monólogo? Partilha ou ostentação? Serviço ou busca de privilégios?
COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS

Leituras: Ex 12,1-8.11-14; 1Cor 11,23-26; Jo 13,1-15

Caros irmãos e irmãs,

Com a celebração vespertina de Quinta-feira Santa iniciamos o Tríduo Sacro da Páscoa do Senhor. Fazendo memória do que Cristo fez naquela que chamamos de sua última ceia, queremos estar unidos a Jesus, que continua conosco no memorial de sua paixão, no sacramento eucarístico que Ele próprio institui.

O rito de páscoa, conforme consta na primeira leitura (cf. Ex 12,1-8.11-14), foi tirado de uma celebração em que os pastores de ovelha nômades das terras de Abraão costumavam celebrar para comemorar o fim do inverno e começo da primavera. Eram para eles tempos de bons pastos para seus rebanhos e, por isso, chamava-se rito da páscoa, ou seja, passagem. Os hebreus vão celebrar este mesmo rito dando um novo significado, não mais como passagem de estação de tempo, mas como memória de sua saída do Egito, onde estavam como escravos. Para que pudessem guardar na memória este feito poderoso de Deus, os hebreus celebram a páscoa com o cordeiro, o cabrito sem defeito, que morto naquela noite, simbolizava o momento da libertação da escravidão do Egito para a terra da liberdade, chamada de terra onde corre leite e mel, terra da fartura e da ação de Deus. Este acontecimento se tornará tão importante que a ordem no final da leitura é clara: “Este dia será para vós uma festa memorável em honra do Senhor, que haveis de celebrar por todas as gerações, como instituição perpétua” (Ex 12,14).

Esta mesma ordem o Senhor Jesus deu aos discípulos ao instituir a eucaristia: “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19).  Esta eucaristia que serve de alimento para nossa vida foi instituída no clima da paixão já próxima. Nos relatos da ceia que os evangelhos nos transmitiram encontramos os momentos dramáticos vividos por Jesus. A angústia sofrida por Jesus é vivia em um ambiente de oração no horto. Ele sente a fraqueza dos seus discípulos, mas quer deixar seu testamento de forma definitiva. O pão e vinho que Ele transforma em seu corpo e sangue define este testamento. É Eucaristia, ação de graças ao Pai por tudo que aconteceu e pelo que está para acontecer. A Santa Missa é então a celebração da Ceia do Senhor na qual Jesus, na véspera da sua paixão, “enquanto ceava com seus discípulos tomou o pão…” (Mt 26,26). Antes de ser entregue, Cristo se entrega como alimento.

O Evangelho lido nesta celebração nos faz recordar a cena do lava-pés, onde exprime o mesmo significado da Eucaristia sob outra perspectiva. Jesus se identifica como um servo que os  lava os pés dos seus doze apóstolos (cf. Jo 13,4-5). Com esse gesto profético, Ele exprime o sentido da sua vida e da sua Paixão, aquele do serviço a Deus e aos irmãos: “O Filho do homem, de fato, não veio para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45).

Nesta Última Ceia os Apóstolos são constituídos ministros deste Sacramento de salvação e Jesus lava-lhes os pés, e os convida a amarem-se uns aos outros como Ele também nos convida a servirmos mutuamente, seguindo o seu próprio exemplo.  O ato do Lava-pés torna-se para o Evangelista São João a representação daquilo que é toda a vida de Jesus: O levantar-se da mesa, o tirar a vestimenta da glória, o inclinar-se para nós no mistério do perdão e do serviço.

No capítulo 13 do Evangelho de São João, o lava-pés realizado por Jesus é apresentado como o caminho de purificação.  O Lavabo que nos purifica é o amor de Deus: o amor que se empenha até a morte. A palavra de Jesus não é simplesmente uma palavra, mas Ele próprio. E a sua palavra é a verdade e o amor.  Na fé cristã é o próprio Deus encarnado que nos purifica verdadeiramente. No texto do Lava-pés, Jesus diz aos seus discípulos: “Vós estais puros” (v. 10). O dom da pureza é um ato de Deus, que desce até nós, torna-nos puros.  A pureza é um dom.

Tendo como referência o Sermão da Montanha, temos uma significativa expressão usada por Jesus: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8).  Pode-se fazer aqui uma referência também com a cena do Lava-pés: só se nos deixarmos sempre de novo lavar, “tornar puros” pelo Senhor, é que podemos aprender a fazer, juntamente com Ele, aquele que Ele fez. O importante é estarmos inseridos a Ele.  São Paulo, imbuído desta forte unidade com Cristo, disse certa vez: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).

O texto evangélico menciona ainda o pano cingido, o que parece querer evidenciar a ação de Jesus. Quando o texto diz que Ele havia terminado o lava-pés, ainda que retome o manto, não se dirá que deixa o avental, o qual se converte, portanto, em atributo permanente de Jesus (v. 12).  O seu serviço não cessa com a sua morte, porque ele continua conosco: “Eu estarei convosco todos os dias, até o final dos tempos” (Mt 28, 20). Ao lavar os pés dos seus discípulos, não podemos dizer que Jesus rebaixe, mas sim que não reconhece desigualdade ou hierarquia entre os homens.  

Ainda na cena do Lava pés temos o diálogo de Jesus com Pedro.  Jesus começa por Pedro a lavar os pés dos Apóstolos, mas, inicialmente, deparamos com a recusa Pedro: “Jamais me lavarás os pés” (v. 8).  Para Pedro, esta atitude de Jesus contradiz a ideia que ele tem da relação entre mestre e discípulo, contrasta com a imagem do Messias que ele vê em Jesus.  No fundo, a sua resistência ao lava-pés tem o mesmo significado com a sua posição contrária ao anúncio que Jesus faz da sua Paixão, depois da confissão em Cesareia de Filipe: “Deus não permita, Senhor! Jamais te acontecerá!” (Mt 16,22). Agora diz: “Jamais me lavarás os pés!” (Jo 13,8). Este protesto de Pedro tem a sua peculiaridade. Pedro tem dificuldades de entender é que será através do sofrimento que o Messias deve entrar na glória.  

Depois que Jesus explica a necessidade do Lava-pés a Pedro, temos a sua outra intervenção: Jesus deveria lavar-lhe não só os pés, mas também as mãos e a cabeça.  Mais uma vez, a resposta de Jesus é significativa: “Quem se banhou não tem necessidade de se lavar senão os pés, porque está inteiramente puro” (Jo 13,10). Nesta frase, podemos supor que Jesus esteja fazendo uma referência ao batismo, pelo qual o homem é imerso uma vez por todas em Cristo e recebe a sua nova identidade de ser em Cristo.  

Mas também os batizados continuam pecadores, têm necessidade da confissão dos pecados que nos purifica e nos faz restaurar nosso relacionamento com Deus. No batismo ficamos completamente limpos; também nossos pés, ficaram “limpos”; mas os nossos pés se apoiam na terra deste mundo, estamos em contato com as realidades humanas e somos, de tal modo, tocados por elas.  Somos fracos e com freqüência também nós sujamos os nossos pés. Mas o Senhor todos os dias se inclina para nós, pega uma toalha e lava os nossos pés. No Sacramento da confissão, o Senhor lava sempre de novo os nossos pés sujos e nos prepara para a comunhão com Ele.

Também chama a nossa atenção uma outra frase desta passagem evangélica: “Vós também deveis lavar os pés uns dos outros… Dei-vos o exemplo…” (Jo 13,14s). Lavar os pés uns dos outros significa, concretamente, aprender a humildade e exercer a bondade, assim como Senhor tira a nossa sujeira com a força purificadora de sua bondade. Lavar os pés uns dos outros significa, sobretudo, perdoar incansavelmente uns aos outros, voltar a começar sempre de novo, ainda que pareça difícil ou inútil.

Peçamos a intercessão da Virgem Maria para que possamos todos os dias trilhar o caminho da pureza e que o Senhor Jesus venha em nosso auxílio e também nos purifique e nos faça estar sempre no caminho do bem e do serviço.  Assim seja.


PARA REFLETIR


Nesta quinta-feira a liturgia nos faz recordar a instituição da Eucaristia. Nela está radicado o novo mandamento que Jesus nos deixou: “Um mandamento novo vos dou: Que vos ameis uns aos outros; assim como Eu vos amei, vós também vos deveis amar uns aos outros” (Jo 13,34).

Antes de instituir o Sacramento do seu Corpo e do seu Sangue, inclinado e de joelhos, na atitude do escravo, Jesus lava os pés dos discípulos no Cenáculo. Este ato, na cultura hebraica, é precisamente um trabalho próprio dos servos e das pessoas mais humildes da família.

Jesus começa a lavar os pés por Pedro que, inicialmente, se recusa, mas o Mestre o convence, pois, em um primeiro momento, Pedro não quisera que o Senhor lhe lavasse os pés por estar invertendo a ordem, isto é, o Mestre Jesus ao lhe levar os pés, estava assumindo as funções de um servo, isto é, contrastava totalmente com o seu temor reverencial para com Jesus, para com o seu conceito de relação entre Mestre e discípulo. Por isto, diz a Jesus: “Nunca me lavarás os pés” (Jo 13,8). O seu conceito de Messias incluía uma imagem de grandeza divina. Mas, na verdade, Pedro tinha que aprender sempre de novo que a grandeza de Deus é diversa do nosso conceito de grandeza. A grandeza divina consiste precisamente em descer, na humildade do serviço.

Logo depois, porém, retomando as vestes e tendo-se posto de novo à mesa, Jesus explica o sentido deste seu gesto: “Vós me chamais de Mestre e Senhor, e dizeis bem, visto que o sou. Ora, se Eu vos lavei os pés, sendo Senhor e Mestre, também vós devereis lavar os pés uns aos outros” (Jo 13, 12-14). Com este gesto é ressaltado um aspecto bem específico da missão de Jesus: “Eu estou no meio de vós como aquele que serve” (Lc 22, 27).  Como discípulos de Cristo, nós também somos chamados a este serviço. Estar a serviço do outro, constitui a essência de todo aquele que quer seguir Jesus Cristo.

E podemos perguntar: Em que consiste “lavar os pés uns aos outros”? O que significa concretamente? Qualquer obra de bondade pelo outro, especialmente por quem sofre, é um serviço de lava-pés. O Senhor nos limpa da nossa indignidade com a força purificadora da sua bondade. Lavar os pés uns dos outros significa, sobretudo, perdoar-nos uns aos outros. Significa purificar-nos uns aos outros, suportando-nos mutuamente, para assim podermos ir juntos ao banquete de Deus.

O verdadeiro discípulo de Cristo é, portanto, somente aquele que “toma parte” na sua vicissitude. O serviço, com efeito, isto é, o cuidado das necessidades do próximo, constitui a essência de todo o poder bem ordenado: reinar significa servir. O ministério sacerdotal, cuja instituição hoje também celebramos, pressupõe uma atitude de humilde disponibilidade, sobretudo para com os mais necessitados. Só sob esta ótica podemos captar plenamente o evento da última Ceia, que estamos a comemorar.

Também a Quinta-Feira Santa é qualificada pela Liturgia como o dia em que Jesus Cristo confiou aos Seus discípulos o mistério do seu Corpo e do seu Sangue, para que o celebremos em sua memória. Ele instituiu o Sacramento da Eucaristia para estar conosco.  Em cada Santa Missa, a Igreja faz memória daquele evento histórico decisivo. O sacerdote se inclina sobre os dons eucarísticos, para pronunciar as mesmas palavras ditas por Cristo “na noite em que foi entregue”. Ele repete sobre o pão: “Isto é o Meu corpo, que será entregue por vós” (1Cor 11,24), e depois sobre o cálice com o vinho: “Este cálice é a Nova Aliança no Meu sangue” (v. 25).  A Igreja vive da Eucaristia e continua a celebrá-la à espera do retorno do seu Senhor.

Os Apóstolos tornaram-se, por sua vez, ministros deste expressivo mistério da fé, destinado a perpetuar-se até ao fim do mundo. Tornaram-se contemporaneamente servidores de todos aqueles que vierem a participar em tão grande dom e mistério.

Acolhamos em cada celebração eucarística este dom sempre novo; deixemos que o seu poder divino penetre em nossos corações e nos torne capazes de anunciar a morte do Senhor à espera da sua vinda.  Por isto, diz os fiéis após a consagração “Eis o mistério da fé!”. E os fiéis respondem: “Proclamamos, Senhor, a vossa morte, e celebramos a vossa ressurreição, enquanto esperamos a vossa vinda gloriosa”. É o resumo da fé pascal da Igreja que está contido na Eucaristia.

A Igreja impõe aos fiéis a obrigação de participar na divina liturgia nos domingos e dias de festa e de receber a Eucaristia ao menos uma vez em cada ano, se possível no tempo pascal preparados pelo sacramento da Reconciliação. Mas lhes recomenda vivamente que recebam a santa Eucaristia aos domingos e dias de festa, ou ainda mais vezes, mesmo todos os dias (cf. CIgC 1389).

Neste momento em que o Senhor oferece a si mesmo, o seu corpo e o seu sangue, através da instituição da eucaristia, saibamos viver no seu amor e nos purifiquemos para que sejamos dignos de estar entre os convidados para a sua ceia e que ele nos conceda a graça de um dia, e para sempre, sermos os seus hóspedes no eterno banquete celeste.  Assim seja.

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