Neste domingo, a liturgia nos
propõe dois exemplos de hospitalidade, o de Abraão e o de Marta. A história de
Abraão dirige nosso olhar para o mistério escondido na hospitalidade. A
história de Marta e Maria nos ensina que, antes de se desdobrar em gestos de
hospitalidade, importa saber acolher. A verdadeira hospitalidade não consiste
em preparar muitas coisas, mas em acolher o dom que é a pessoa. Receber as
pessoas com atenção, dar-lhes audiência, pode ser uma ocasião para receber a
única coisa verdadeiramente necessária, a palavra de Deus: sua promessa (no
caso de Abraão), seu ensinamento (no caso de Maria). O lema que se repete
durante a celebração pode ser: “Em primeiro lugar, escute o Senhor”.
Comentário dos textos bíblicos
I
leitura: Gn 18,1-10a
A
primeira leitura nos mostra como a hospitalidade de Abraão é recompensada pela
promessa de Deus. Sob a aparência de três viajantes, Deus apresenta-se,
incógnito, a Abraão, que demonstra toda aquela hospitalidade tão apreciada no
Oriente. Aos poucos, o foco da narrativa se desloca da hospitalidade de Abraão
para a promessa de Deus. Abraão não perguntou pela identidade de seus hóspedes.
Agiu por bondade gratuita. Com a mesma gratuidade, Deus lhe concede o que era
estimado impossível: um filho de sua mulher Sara, já idosa.
A leitura
mostra que, quando se está oferecendo hospitalidade, na realidade se está
recebendo a generosidade de Deus. A hospitalidade que Abraão, generosa e
gratuitamente, oferece a três homens, perto do carvalho de Mambré,
transforma-se em receber. Ele recebe a coisa que mais deseja: um filho de sua
mulher legítima, Sara. Talvez por isso se diz que a hospitalidade é “receber”
uma pessoa: o hóspede é um dom para nós…
Deus
passa por nossa vida, junto de nossa casa, e importa fazê-lo entrar (Gn 18,3),
para que a nossa vida não fique vazia. Deus pode chegar como um viajante, um
necessitado, e nossa gratuita bondade deve estar pronta para o “receber” no
momento imprevisto.
Evangelho:
Lc 10,38-42
O
evangelho, com o episódio de Jesus na casa de Marta e Maria, focaliza “o único
necessário”.
Quem
acolhe um hóspede parece estar oferecendo algo – a hospitalidade –, mas pode
ser que, na realidade, esteja recebendo mais do que oferece, como foi o caso de
Abraão na primeira leitura. Lida nessa ótica, a história de Marta e Maria se
torna reveladora. Hospedar e cuidar é bom; mais fundamental, porém, é “receber”
o dom que é o hóspede, com tudo o que tem de mais importante. E o mais
importante, no caso, é a palavra de Jesus. Ele não veio para se fazer servir
como um freguês num hotel; veio para servir (Mt 20,28), e serve por meio de sua
palavra, de sua vida inteira. Ele é inteiramente palavra, palavra de Deus, no
seu dizer, no seu fazer, no seu sofrer. Acolher essa palavra é o único
necessário.
Quem se
esgota em “fazer coisas” para o outro, sem realmente o “receber”, pode ser
chamado de ativista. O ativismo é um mal de nosso tempo, mas não data deste
século. É doença que espreita a humanidade desde sempre. Jesus aproveita as
intensas ocupações da “dona Marta”, sua anfitriã, para falar desse assunto.
Marta dá muita importância aos próprios afazeres e pouca àquilo que recebe de
Jesus. Ela deseja que Maria, imersa na escuta das palavras do Mestre,
interrompa sua escuta e a ajude a preparar a comida. Mas por que preparar
comida se não se sabe para quê? Se alguém não se abre para receber a mensagem,
para que acolher o mensageiro? Um bom anfitrião procura servir o melhor
possível, mas, se não escuta o que o visitante tem para dizer, fará uma monte
de coisas, mas a finalidade real da visita não se realizará. “Marta, Marta, tu
te ocupas com muitas coisas; uma só, porém, é realmente necessária…” Jesus não
diz o que é essa coisa necessária, mas a história nos faz entender que é o que
Maria estava fazendo: escutar Jesus. Maria escolheu a parte certa. Mais
fundamental do que a casa bem arrumada e a mesa bem provida com que Marta se
preocupa é acolher Jesus, com suas palavras, no coração. Então a mesa bem
preparada servirá para sua verdadeira finalidade.
O
ativismo, mesmo a serviço dos outros, corre o perigo de ser um serviço a si
mesmo: autoafirmação à custa de quem é o “objeto” de nossa caridade. A
superação do ativismo consiste em ver o mistério de Deus nas pessoas, assim
como Maria o enxergou em Jesus, o porta-voz de Deus, o portador das
“palavras de vida eterna” (cf. Jo 6,68).
O hóspede
vem a nós com uma recomendação de Deus, e por isso lhe dedicamos atenção. Nossa
preocupação não deve ser os nossos próprios afazeres, mas a interpelação que o
rosto do outro nos dirige. Então não lhe imporemos uma hospitalidade que nós
inventamos em proveito de nossa autoafirmação, mas abriremos o coração àquilo
que ele diz e é. É isso que Jesus lembra a Marta.
A
verdadeira contemplação não é uma fuga a pensamentos aéreos, mas aquele
realismo superior que nos leva a ver Deus no ser humano e o ser humano em Deus.
Essa contemplação é também o fundamento da verdadeira práxis da fé, que
consiste, precisamente, em tratar o ser humano como filho e representante de
Deus. Para isso, o centro de nossa preocupação não deve ser nossa atividade,
mas a pessoa humana que nos é dada e que nós “recebemos” como um dom da parte
de Deus.
II
leitura: Cl 1,24-28
A segunda
leitura nos fala da manifestação do mistério de Cristo na missão do apóstolo.
Servir a Cristo é participar de seu sofrimento. No sofrimento próprio, Paulo vê
confirmada sua comunhão com Cristo, e isso é para ele uma alegria. Ele quer
revelar o “mistério de Deus” – que é Cristo – por sua vida. Cristo é a
“esperança da glória”. “Cristo no meio de nós” (1,27) não é um belo pensamento,
mas força que nos impele ao encontro dos irmãos. Cristo é, em nós, a esperança,
a impaciência do dia que há de manifestar, plenamente, o que ele é e o que nós
seremos nele.
Deus vem
ao ser humano. Paulo sabe dessa união de Deus e Cristo com o ser humano, que
lhes pertence. O apóstolo considera o seu sofrimento como a complementação, no
próprio corpo, do sofrimento de Cristo. Não que faltasse algo ao sofrimento de
Cristo por parte deste – faltava algo por parte de Paulo; o sofrimento de
Cristo precisava ser completado pela participação de Paulo. Isso, aliás,
vale para todos nós. Só nos apropriamos, por assim dizer, da paixão de Cristo
por nossa “com-paixão”.
Paulo
anuncia a palavra de Deus em sua plenitude: o mistério escondido desde a
eternidade, a realidade só conhecida por quem dela participa, a esperança da
glória, “Cristo em vós”. Na comunidade dos fiéis, da qual Paulo se tornou
apóstolo, está presente aquele que assume todo o sentido de nossa vida e da
criação toda (Cl 1,15-20, cf. domingo passado). Para que fossem levados à
perfeição os que receberam sua pregação, Paulo oferece sua vida.
(Querendo
usar um texto mais afinado com o tema do evangelho e da primeira leitura, veja-se
1Pd 4,9-11: “Sede hospitaleiros”.)
Pistas para reflexão
O
importante e o necessário: grande mal em nossa sociedade, e também na Igreja, é
o ativismo, a falta de disposição para aprofundar o essencial, sob o pretexto
de tarefas urgentes.
Na primeira
leitura, vimos a virtude da hospitalidade na figura de Abraão. Deus, que nos
anjos se tornou seu hóspede, recompensa-o com a promessa de um filho. Será que
o evangelho não contradiz essa lição? Jesus dá a impressão de valorizar mais a
presença passiva de Maria, que fica a escutá-lo, do que a preocupação de Marta
em bem recebê-lo. Ou será que o jeito certo de recebê-lo é o de Maria: escutar
sua palavra?
Jesus
observa a Marta que ela anda ocupada e preocupada com muitas coisas, enquanto
uma só é necessária. Essa observação não é uma crítica à hospitalidade, mas
indica uma escala de valores: a melhor parte é a que Maria escolheu! O que esta
faz é fundamental e indispensável: escutar. O resto (as correrias pastorais, as
reuniões) é importante, mas deve ter fundamento no escutar. Jesus
censura Marta não porque ela cuida da cozinha, mas porque quer tirar Maria do
escutar para fazê-la entrar no ritmo das suas próprias ocupações. Marta não
conhecia a escala de valores de Jesus.
Paulo, na
segunda leitura, pode ser um exemplo. Ele passou pela “passividade” do
sofrimento, assumindo no próprio corpo a sua participação no sofrimento de
Cristo. Dessa identificação profunda com Cristo ele tirou a força para seu
surpreendente apostolado. Gente ocupada é o que menos falta. Mas sabemos muito
bem que toda essa ocupação não gira, necessariamente, em torno do fundamental.
Dá até pena ver certas pessoas complicar a vida com mil coisas que, dizem, vão
simplificá-la. Por outro lado, encontramos também, especialmente entre os pobres
“de coração” (não aqueles com mania de rico), pessoas que levam uma vida
simples, porém com muito mais conteúdo e, sobretudo, com um coração sensível e
solidário.
Importa
acolher (a Deus, a Jesus, aos outros) em primeiro lugar no coração. Só então as
demais atuações terão sentido. Isso vale na vida pessoal e também na vida
comunitária. Comunidades que giram exclusivamente em torno de preocupações e
reivindicações materiais acabam esvaziando-se, caem em brigas geradas pelo
personalismo e pela ambição. Mas comunidades que primeiro acolhem com carinho a
palavra de Jesus num coração disposto saberão desenvolver os projetos certos
para pôr essa palavra em prática. “Buscai primeiro o Reino de Deus…”
Pe. Johan
Konings, sj
Nascido na Bélgica, reside há
muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e
licenciado em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de
Lovaina. Atualmente, é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo Horizonte.
Entre outras obras, publicou Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra
se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis –
anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia
nas suas origens e hoje. E-mail: konings@faculdadejesuita.edu.br
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Vida Pastoral
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