sexta-feira, 26 de junho de 2015

Teologia das Palavras da Instituição


“(…) Depois de todas essas reflexões sobre o quadro histórico e sobre a credibilidade histórica das palavras da instituição de Jesus, é tempo de fixar a atenção na mensagem que elas contêm. Antes de mais nada, convém recordar de novo que, nas quatro narrações sobre a Eucaristia, encontramos dois topos de tradição com diferenças características, que aqui não temos de examinar nos detalhes; todavia, devem-se mencionar brevemente as diferenças mais importantes.

Enquanto em Marcos (14,22) e Mateus (26,26) a frase sobre o pão declara apenas: “Isto é o meu Corpo”, em Paulo lê-se: “Isto é o meu Corpo, que é para vós” (1 Cor 11,24), e Lucas completa, segundo o sentido, escrevendo: “Isto é o meu Corpo que é dado por vós” (22,1(). Em Lucas e Paulo, logo a seguir a isso, aparece a ordem da repetição: “Fazei isto em Minha memória”, que falta em Mateus e Marcos. A frase sobre o cálice, segundo Marcos, soa assim: “Isto é o meu Sangue, o ‘Sangue da Aliança’, que é derramado em favor de muitos” (14,24); Mateus acrescente ainda: “… por muitos, para a remissão dos pecados” (26,28). Segundo São Paulo, diversamente, Jesus disse: “Este cálice é a Nova Aliança em meu Sangue. Todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em memória de Mim” (1 Cor, 11,25). Lucas formula de maneira semelhante, mas com pequenas diferenças: “Este cálice é a nova Aliança em meu Sangue, que é derramado em favor de vós” (22,20). Falta a segunda ordem de repetição.

São importantes, porém, duas diferenças claras entre Paulo/Lucas, por um lado e Marcos/Mateus, por outro: em Marcos e Mateus, “sangue” é o sujeito: “Isto é o meu Sangue”, enquanto Paulo e Lucas dizem: Esta é a “Nova Aliança no meu Sangue”. Muitos veem aqui uma deferência para com os judeus, sabendo que da sua repulsa quanto à sua ingestão de sangue: como conteúdo direto da bebida, não se indica “o sangue”, mas “a Nova Aliança”, aludindo com isso a Êxodo 24,8, ou seja, à estipulação da Aliança no Sinai, Paulo e Lucas falam da Nova Aliança, referindo-se agora a Jeremias 31,31. Por conseguinte, há em cada caso um cenário veterotestamentário diferente. Além disso, Marcos e Mateus falam do derramamento do sangue “por muitos”, aludindo desse modo a Isaías 53,12, enquanto Paulo e Lucas dizem “em favor de vós”, levando assim a pensar imediatamente na comunidade dos discípulos.

Compreensivelmente existe, na exegese, uma ampla discussão sobre quais possam ser, por conseguinte, as palavras originais de Jesus. Rudolf Pesch mostrou que aparecem, num primeiro tempo, 46 possibilidades, que podem ainda duplicar, caso se cruzem entre si as diversas introduções (cf. Das Evangelium in Jerusalem,PP. 134ss). Tais esforços têm sua importância, mas não podem entrar nos objetivos deste livro. 

Partimos do pressuposto de que a transmissão das palavras de Jesus não existe sem a sua recepção pela Igreja nascente, que se sentia severamente comprometida na fidelidade ao essencial, mas estava ciente também de que a gama da ressonância das palavras de Jesus com as relativas alusões sutis a textos da Escritura permitia alguma modelação nos matizes. Desse modo, podia-se ouvir ressoar nas palavras de Jesus tanto em Êxodo 24 como Jeremias 31 e acentuar mais um conteúdo ou outro, sem com isso faltar à fidelidade para com aquelas palavras que, de maneira quase imperceptível, mas de modo inequívoco, acolhiam em si a Lei e os Profetas. Com isso, porém, passamos já à interpretação das palavras do Senhor.

As narrações da instituição, em todos os quatro textos, começam com duas afirmações relativas às ações de Jesus que adquiriram um significado essencial na sua recepção pela Igreja inteira. Lá se diz que Jesus tomou o pão, pronunciou a oração de bênção e de agradecimento e, depois, partiu o pão. No princípio, temos a eucharistia (Paulo/Lucas) ou então a eulogia (Marcos/Mateus): ambos os termos significam a berakha, a grande oração de agradecimento e de bênção da tradição judaica, que faz parte tanto do ritual pascal como de outras refeições. Não se come o alimento sem agradecer a Deus pelo dom que Ele oferece: pelo pão, que Ele faz despontar e crescer da terra, bem como pelo fruto da videira.

As duas palavras diferentes, que usam Marcos/Mateus por um pado e Paulo/Lucas por outro, indicam as duas direções intrínsecas a essa oração: é agradecimento e louvor pelo dom de Deus; mas esse louvor retorna em forma de bênção sobre o dom, como se lê em 1 Tm 4, 4-5: “Tudo o que Deus criou é bom, e nada é desprezível, se tomado com ação de graças (eucharistia), porque é santificado pela palavra de Deus e pela oração”. Jesus, na Última Ceia (como fizera na multiplicação dos pães: Jo 6,11) acolheu essa tradição. As palavras da instituição situam-se nesse contexto de oração; nelas o agradecimento torna-se bênção e transformação.

Desde os seus primeiros inícios, a Igreja compreendeu as palavras de consagração não simplesmente como uma espécie de ordem quase mágica, mas como parte da oração feita juntamente com Jesus; como parte central do louvor repleto de gratidão pelo qual o dom terreno nos é devolvido por Deus como corpo e sangue de Jesus, como auto-doação de Deus no amor acolhedor do Filho. Louis Bouyer procurou delinear o desenvolvimento da eucharistia cristã – do “cânon” – a partir da berakha judaica. Desse modo, é possível compreender por que o termo “Eucaristia” se tornou a designação do conjunto de novo evento cultual dado por Jesus. Sobre esse assunto, havemos de voltar ainda na quarta seção deste capítulo.

Em segundo lugar, diz-se que Jesus “partiu o pão”. Partir o pão para todos é, em primeiro lugar, a função do pai de família, que nisto representa de algum modo também Deus Pai que, através da fertilidade da terra, distribui para todos nós o necessário para a vida. Depois, é também o gesto da hospitalidade, pelo qual se faz participar o estrangeiro das coisas próprias, acolhendo-o na comunhão do banquete. Partir e partilhar: é precisamente a partilha que cria comunhão. Esse gesto humano primordial de dar, de partilhar e unir obtém, na Última Ceia de Jesus, uma profundidade inteiramente nova: Ele dá-Se a Si mesmo. A bondade de Deus, que se manifesta no distribuir, torna-se totalmente radical no momento em que o Filho, no pão, Se comunica e distribui a Si mesmo.

O gesto de Jesus tornou-se assim, o símbolo de todo o mistério da Eucaristia: nos Atos dos Apóstolos e no cristianismo primitivo em geral, “partir o pão” é a designação da Eucaristia. Nela nos beneficiamos da hospitalidade de Deus, que, em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado, Se entrega a nós. Por isso, o partir e o distribuir o pão – o ato de amorosa atenção por aquele que precisa de mim – é uma dimensão intrínseca da própria Eucaristia.

 “Caritas”, a solicitude pelo outro, não é um segundo setor do cristianismo ao lado do culto, mas está radicada precisamente nele e faz parte dele. Na Eucaristia, no ato de “partir o pão”, estão indivisivelmente ligadas as dimensões horizontal e vertical. Nessa dupla afirmação sobre o agradecer e o repartir no início da narração da instituição, torna-se evidente a natureza do novo culto fundado por Cristo na Última Ceia, na cruz e na ressurreição; desse modo, o antigo culto do templo é abolido e, ao mesmo tempo, levado à sua perfeição.

Chegamos agora à frase pronunciada sobre o pão. Segundo Marcos e Mateus diz simplesmente “Isto é o meu Corpo”; Paulo e Lucas acrescentam “que é dado por vós”, evidenciando assim aquilo que, por si, está contido no gesto de distribuir. Quando Jesus fala do seu corpo, obviamente este não quer dizer o corpo distinto da alma e do espírito, mas toda a pessoa em carne e osso. Nesse sentido, Rudolf Pesch comenta justamente: Jesus, “na sua interpretação do pão, pressupõe o significado particular de sua pessoa. Os discípulos poriam entender: Este sou Eu, o Messias” (Markusevangelium, II, p. 357).

Mas como pode realizar-se isto? De fato, Jesus encontra-Se no meio dos seus discípulos; e o que faz? Cumpre aquilo que dissera no discurso do Bom Pastor: “Ninguém Me tira a vida, sou Eu que a dou livremente” (Jo 10,18). A vida ser-Lhe-á tirada na cruz, mas já desde agora a oferece por Si mesmo. Transform a sua morte violenta num ato livre de autodoação aos outros e pelos outros.

E Jesus sabe: “Tenho o poder de dar a vida e o poder de retomá-la” (Jo 10,18). Dá a vida, sabendo que precisamente deste modo a retoma, de antemão, distribuir-Se a Si mesmo já agora, porque já agora oferece a vida, oferece-Se a Si mesmo e desse modo readquire-a Já agora. Assim, pode instituir agora o Sacramento, onde Se torna o grão de trigo que morre e onde, através dos tempos, Se distribui a Si mesmo aos homens na verdadeira multiplicação dos pães.

 A frase relativa ao cálice, sobre a qual concentramos agora a nossa atenção, é de uma densidade teológica extraordinária. Como já se acenou atrás, nas poucas palavras dela estão entrelaçados juntamente três textos veterotestamentários, de tal modo que toda a história da salvação anterior está resumida e feita presente na palavra dita sobre o cálice.

Temos, em primeiro lugar, Êxodo 24,8, com a estipulação da Aliança no Sinai; depois Jeremias 31,31, com a promessa da Nova Aliança no meio da crise da história da Aliança, uma crise cujas expressões mais relevantes eram a destruição do templo e o exílio de Babilônia; finalmente, Isaías 53,12, com a misteriosa promessa do Servo de Iavé, que carrega o pecado de muitos e, desse modo, obtém para eles a salvação.

Procuremos agora compreender esses três textos, cada qual no seu próprio significado e no seu contexto. A aliança no Sinai, segundo a descrição de Êxodo 24, baseava-se sobre dois elementos: por um lado, sobre o “sangue da Aliança”, o sangue dos animais sacrificados, com o qual eram aspergidos o altar – como símbolo de Deus – e o povo, e, por outro, sobre a Palavra de Deus e a promessa da obediência de Israel. “Este é o sangue da Aliança que o Senhor fez convosco, através de todas essas cláusulas”: dissera solenemente Moisés depois do rito da aspersão. Imediatamente antes, o povo tinha respondido à leitura do livro da Aliança: “Tudo o que o Senhor falou, nós o faremos e obedeceremos” (Ex 24, 8-7).

Essa promessa de obediência, que era elemento constitutivo da aliança, acabava quebrada logo a seguir com a adoração do vitelo de ouro, quando Moisés se encontrava no monte. Toda a história que se segue é uma história de incessantes violações da promessa de obediência, como manifestam quer os livros históricos do Antigo Testamento quer os livros dos profetas. A ruptura parece irremediável no momento em que Deus abandona o seu povo ao exílio, e o templo à destruição.

Naquela hora, surge a esperança da “Nova Aliança”, já não baseada sobre a fidelidade sempre frágil da vontade humana, mas inscrita de modo indestrutível nos próprios corações (cf. Jr 31,33). Por outras palavras, a Nova Aliança deve basear-se sobre uma obediência que seja irrevogável e inviolável. Fundada agora na raiz do ser humano, essa obediência é a do Filho que Se fez servo e, na sua obediência até a morte, absorve toda a desobediência humana, sofre-a até o fundo e vence-a.

Deus não pode pura e simplesmente ignorar toda a desobediência dos homens, todo o mal da história, não pode tratá-lo como algo irrelevante e insignificante. Uma tal espécie de “misericórdia”, de “perdão incondicionado” seria aquela “graça abaixo preço” contra a qual se pronunciou com razão Dietrich Bonhoeffer, diante do abismo do mal do seu tempo. A injustiça, o mal real não pode pura e simplesmente ser ignorado, ser deixado simplesmente em si. Deve ser transformado, vencido. Só esta é a verdadeira misericórdia. Que agora, dado que os homens não são capazes, o faça o próprio Deus, esta é a bondade “incondicionada” de Deus, uma bondade que não pode jamais estar em contradição com a verdade e- associada a ela – a justiça. “Se Lhe somos infiéis, Ele permanece fiel, pois não pode renegar-Se a Si mesmo”: escreve Paulo a Timóteo (2 Tm 2,13).

Esta sua fidelidade consiste no fato de Ele agora agir não apenas como Deus diante dos homens, mas também como homem diante de Deus, fundando assim a Aliança de modo irrevogavelmente estável. Por isso a figura do ervo de Deus, que carrega o pecado de muitos (cf. Is 53,12), deve ser ligada com a promessa da Nova Aliança fundada de maneira indestrutível. Esse enxerto da Aliança agora indestrutível no coração do homem, da própria humanidade, realiza-se no sofrimento vicário do Filho que Se fez servo. Desde então, a toda a maré sórdida do mal contrapõe-se a obediência do Filho, no Qual sofreu o próprio Deus e cuja obediência, por conseguinte, é sempre infinitamente maior do que a massa crescente do mal (cf. Rm 5,16-20).

O sangue dos animais não pudera “expiar” o pecado, nem unir Deus e os homens. Podia ser apenas um sinal da esperança e da expectativa de uma obediência maior e salvífica. Na frase de Jesus sobre o cálice, tudo isto está compendiado e feito realidade: Ele dá a “Nova Aliança no seu sangue”. O “seu sangue”, isto é, o dom total de si mesmo, no qual Ele sofre até o fundo todo o mal da humanidade, transforma toda a traição absorvendo-a na sua fidelidade incondicionada. Este é o novo culto, que Ele institui na Última Ceia: atrair a humanidade, na sua obediência vicária. Participação no Corpo e Sangue de Cristo significa que Ele está ali “por muitos” – por nós – e, no Sacramento, acolhe-nos no número destes “muitos”.

Nas palavras da instituição de Jesus, falta agora explicar uma expressão que recentemente suscitou variadas discussões. Segundo Marcos e Mateus, Jesus disse que o seu sangue havia de ser derramado “por muitos”, aludindo desse moto precisamente a Isaías 53, enquanto em Paulo e Lucas se fala de dar, ou melhor, derramar “por vós”.

A teologia recente sublinhou, com razão, a palavra “por”, comom a todas as quatro narrações da Última Ceia, mas da própria figura de Jesus em geral. Toda a sua índole é qualificada com a expressão “pró-existência”, um existir não para Si mesmo, mas para os outros; e isso não apenas como uma dimensão qualquer desta existência, mas como aquilo que constitui o seu aspecto mais íntimo e abrangente. O seu ser como tal é um “ser para”. Se conseguirmos entender isso, teremos então nos aproximado verdadeiramente do mistério de Jesus, saberemos então também o que significa seguimento.

Mas que significa “derramado por muitos”? Na sua obra fundamental, Die Abendmahlsworte Jesu (1935), Joachim Jeremias procurou mostrar que a palavra “muitos” nas narrações da instituição dseria um semitismo e, por conseguinte, deveria ser lida não a partir do significado da palavra grega, mas com base nos textos veterotestamentários correspondentes. Procura demonstrar que a palavra “muitos” no Antigo Testamento significa “a totalidade” e, por isso, na realidade, dever-se-ia traduzir por “todos”. Depressa se afirmou então essa tese, e tornou-se uma convicção teológica comum. Com base nela, nas palavras da consagração, “muitos” foi traduzido em diversas línguas por “todos”. “Derramado por vós e por todos”: é assim que, em diversos países, os fiéis ouvem hoje, durante a celebração eucarística, as palavras de Jesus.

Entretanto, rompeu-se de novo esse consenso entre os exegetas. Hoje a opinião prevalecente tende para a explicação de que “muitos”, em Isaías 53 e ainda em outros pontos, apesar de significar a totalidade, não se poderia pura e simplesmente equiparar a “todos”. Inclinando-se para a linguagem de Qumram, agora se supõe principalmente que “muitos” em Isaías e em Jesus significa a “totalidade” de Israel (cf. Pesch, Abendmahl, PP. 99s; Wilckens, I/2, p.84). Só com a passagem do Evangelho aos pagãos é que se teria tornado evidente o horizonte universal da morte de Jesus e da sua expiação, que engloba igualmente judeus e pagãos.

Ultimamente, o jesuíta Norbert Baumert, de Viena, juntamente com Maria-Irma Seewann, apresentou uma interpretação da expressão “por muitos” que, na sua linha principal, fora já desenvolvida em 1947 por Joseph Pascher no seu livro Eucharistia. O núcleo da tese é este: segundo a estrutura linguística do texto, o “ser derramado” não se refere ao sangue, mas ao cálice; “tratar-se-ia, por conseguinte, de um ativo ‘derramar’ do sangue no cálice, um ato em que a própria vida divina é dada abundantemente, sem nenhuma alusão ao agir dos algozes” (gregorianum, 89, p. 507). Dessa maneira, a frase sobre o cálice não aludiria ao acontecimento da morte na cruz e seu efeito, mas ao ato sacramental, e assim ficaria esclarecida também a palavra “muitos”: enquanto a morte de Jesus vale “para todos”, o alcance do Sacramento é mais limitado; este alcança muitos, mas não todos (cf. sobretudo p.511).

No aspecto estritamente filológico, essa solução pode revelar-se verdadeira para o texto de Marcos 14,24. Se não se atribuir qualquer originalidade ao texto de Mateus relativamente a Marcos, a solução poderia ser qualificada como convincente para as palavras da Última Ceia. Em todo o caso, a assinalação da diferença entre o alcance da Eucaristia e o alcance universal da morte de Jesus na cruz é preciosa e pode fazer avançar a investigação. Desse modo, porém, o problema da palavra “muitos” explica-se apenas parcialmente.

De fato, permanece a explicação fundamental que Jesus dá da sua missão em Marcos 10,45, onde aparece também a palavra “muitos”: “Pois o Filho do homem não veio para ser servido, veio para servir e dar a Sua vida em resgate por muitos”. Aqui se fala claramente da doação da vida como tal, e é evidente que dessa maneira Jesus retoma a profecia do Servo de Iavé em Isaías 53 e associa-a à missão do Filho do homem, assumindo consequentemente um novo significado.

Então, que devemos dizer? Parece-me presunçoso e ao mesmo tempo insensato querer perscrutar a consciência de Jesus e explicá-la com base naquilo que Ele, segundo o nosso conhecimento daqueles tempos e das suas concepções teológicas, possa ter pensado ou não. Podemos dizer apenas que Ele sabia que, na sua pessoa, se cumpriam a missão do Servo de Iavé e a do Filho do homem; ora, a união desses dois motivos comportava ao mesmo tempo uma superação dos limites da missão do Servo de Iavé, uma universalização que indica uma nova amplidão e profundidade.

Depois, podemos observar como, entretanto, cresce lentamente a compreensão da missão de Jesus no caminho da Igreja nascente e como o “recordar” dos discípulos, sob a guia do Espírito de Deus (cf. Jo 14,26), começa pouco a pouco a perceber todo o mistério presente por trás das palavras de Jesus. Em 1 Tm 2,6, fala-se de Jesus como o único mediador entre Deus e os homens, “que Se deu em resgate por todos”. O significado salvífico universal da morte de Jesus aparece expresso aqui com clareza cristalina.

Em Paulo e João, podemos encontrar respostas historicamente distintas e na substância plenamente concordantes para a questão acerca do alcance da obra salvífica de Jesus; são respostas indiretas ao problema “muitos/todos”. Paulo escreve, aos Romanos, que os pagãos “na sua totalidade” (pleroma) devem alcançar a salvação e que todo o Israel será salvo (cf. 11,25-26). João diz que Jesus seria morto “pelo povo” (os judeus), todavia “não só pela nação, mas também para congregar na unidade todos os filhos de Deus que andavam dispersos” (11, 50.52). A morte de Jesus vale para os judeus e para os pagãos, para a humanidade no seu conjunto.

Se aquele “muitos”, em Isaías, podia significar essencialmente a totalidade de Israel, na resposta crente que a Igreja dá ao uso novo da palavra por parte de Jesus torna-se cada vez mais evidente que Ele de fato morreu por todos.

Em 1921, o teólogo protestante Ferdinand Kattenbusch procurou mostrar que as palavras da instituição de Jesus durante a Última Ceia constituíram um ato verdadeiro e próprio de fundação da Igreja. Desse modo, Jesus teria dado aos seus discípulos aquela novidade que os unia e fazia deles uma comunidade. Kattenbusch tinha razão: com a Eucaristia, foi instituída a própria Igreja. Esta se torna uma unidade, torna-se o que é a partir do corpo de Cristo e conjuntamente, a partir da sua morte, fica aberta à vastidão do mundo e da história.

A Eucaristia é o processo visível do reunir-se, um processo que, em cada lugar e por meio de todos os lugares, é um entrar em comunhão com Deus vivo, que aproxima, a partir de dentro, os homens uns dos outros. A Igreja forma-se a partir da Eucaristia. Dela recebe a sua unidade e a sua missão. A Igreja deriva da Última Ceia, mas por isso mesmo deriva da morte e ressurreição de Cristo, por Ele antecipadas no dom do seu corpo e do seu sangue.(…)”
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Fonte: Bento XVI, Papa, 1927. Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a ressurreição: Teologia das Palavras da Instituição. / Joseph Ratzinger; tradução Bruno Bastos Lins. – São Paulo : Editora Planeta do Brasil, 2011. pp. 119-130.
Disponível em: Apologistas Católicos

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