quarta-feira, 18 de outubro de 2017

O Ateísmo


A época atual, acrescentando novos erros aos desvios doutrinais do passado, levou-os a extremos dos quais se não podiam originar senão desorientamento e ruína. E antes de tudo, é certo que a raiz profunda e última dos males que deploramos na sociedade moderna é a negação e repulsa de uma norma de moralidade universal, quer na vida social e das relações internacionais, isto é, o desconhecimento, tão difundido nos nossos tempos, e o esquecimento da própria lei natural, que tem o seu fundamento em Deus, criador onipotente e Pai de todos, legislador supremo e absoluto, onisciente e justo vingador das ações humanas. Quando se renega Deus, abala-se toda a base de moralidade; sufoca-se ou, pelo menos, debilita-se de muito a voz da natureza, que ensina, até aos iletrados e às tribos alheias ainda à civilização, o que é bem e o que é mal, o que é lícito e o que é ilícito, e faz sentir a responsabilidade das próprias ações perante um Juiz supremo.

Pois bem, a negação da base fundamental da moralidade teve, na Europa, a sua raiz originária no afastamento daquela doutrina de Cristo, de que é depositária e mestra a Cátedra de São Pedro; doutrina que, em tempos idos, dera certa coesão espiritual à Europa, a qual educada, enobrecida e civilizada pela cruz, chegara a tal grau de progresso civil que a fizera mestra de outros povos e de outros continentes. Afastando-se, ao invés, do Magistério infalível da Igreja, não poucos chegaram até a subverter o dogma central do cristianismo, a divindade do Salvador, acelerando assim o progresso de dissolução espiritual.

Muitos talvez, ao se afastarem da doutrina de Cristo, não tiveram plena consciência de serem enganados pela falsa miragem de frases brilhantes que proclamavam tal afastamento como um libertar-se da escravidão a que julgavam estar antes sujeitos; nem previam as amargas conseqüências da triste permuta entre a verdade, que liberta, e o erro que escraviza; nem pensavam que, renunciando à infinitamente sábia e paternal lei de Deus e à unificadora e nobre doutrina de amor de Cristo, se entregavam ao arbítrio de uma pobre e mutável sabedoria humana. Falavam de progresso, quando retrocediam; de elevação, quando se degradavam; de ascensão à madureza, quando caíam na escravidão; não percebiam a vaidade de todo esforço humano em substituir a lei de Cristo por alguma outra coisa que a igualasse; tornaram-se fátuos nos seus arrazoados.

Enfraquecida a fé em Deus e em Jesus Cristo, ofuscada nos ânimos a luz dos princípios morais, fica a descoberto o único e insubstituível alicerce daquela estabilidade e tranqüilidade, daquela ordem externa e interna, privada e pública, única que pode gerar e salvaguardar a prosperidade dos Estados (1).

 (I) Encíclica "Summi Pontificatus", 20 de outubro, 1939.

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No vórtice do progresso material, nas vitórias do engenho humano sobre os segredos da natureza e sobre as força dos elementos da terra dos mares e do céu, na ansiosa emulação de superar as metas atingidas pelos competidores, nas arengas das elucubrações ousadas, nas conquistas e no orgulho da ciência, da indústria, dos laboratórios e das oficinas, na avidez do lucro e do prazer, na tendência para uma força eminente, mais temida do que sopitada, mais invejada do que igualada, no tumulto de toda a vida moderna, onde encontra paz a alma humana, que é naturalmente cristã? Talvez saciando-se de si mesma? Porventura vangloriando-se senhora do universo, envolta na névoa da ilusão que confunde a matéria com o espírito, o humano com o divino, o momentâneo com o eterno? Não; nos sonhos inebriantes não se tranqüiliza a tempestade da alma e da consciência agitadas pelo ímpeto da mente que sobrepuja a matéria, e transpõe tudo, consciente de um destino imortal, irrecusável, em busca do infinito e em demanda de desejos imensos. Achegai-vos a estas almas interrogai-as. Responder-vos-ão com linguagem de criança, não de homens. Não tiveram uma mãe que a eles, crianças ainda, mostrasse um Pai no céu, cresceram entre paredes sem crucifixo, em casas mudas de religião, em campos distantes de um altar ou de um campanário; leram páginas com bem outros nomes, que aqueles de Deus e de Cristo; ouviram vituperar contra os sacerdotes e os religiosos; passaram do campo à cidade, do lar a oficina, ao bar, as aulas do saber, a toda arte e trabalho, sem freqüentar a Igreja, sem conhecer o pároco, sem um bom pensamento no coração.

São almas infelizes que não tiveram nos perigos dos primeiros anos quem as instruíssem, guiasse, corrigisse, as reafirmasse na fé e na piedade; ou se tiveram, a indiferença, o descaso, o mau exemplo dos companheiros, a efervescência da juventude, as distrações e as ocupações diárias obscureceram a lâmpada da fé e da prática religiosa, transviando o pensamento e debilitando a boa raiz, em árido tronco, que germinará novamente na hora da desventura ou ao calor de uma palavra amiga e piedosa ou no gélido ocaso da vida (2).

(2) Discurso aos dirigentes de Ação Católica, 3 de maio, 1951.       

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São bem conhecidos e patentes os perigos e estímulos espirituais e morais que ameaçam, mais que nunca, nas almas, os princípios cristãos de fé e de vida. Uma desordenada multidão de opiniões novas e contrastantes, impressões e estímulos de tendências más excitam as massas populares, penetram também entre porções, dóceis em tempos mais tranqüilos a deixar-se iluminar e reger pelas límpidas e sábias normas, e impõem à consciência cristã uma contínua e indefesa vigilância para permanecer fiel à sua retidão e vocação. Atraídas no vórtice e apaixonante turbilhão dos acontecimentos, muitas vezes as mentes correm o perigo de ter obnubilada e debilitada a faculdade da prontidão em julgá-lo segundo os indestrutíveis e puros ditames da lei divina. E no entanto o cristão, forte em sua fé, intrépido no próprio dever, deve encontrar-se preparado para participar nos acontecimentos, nos deveres e sacrifícios do dia, não menos solícito e pronto deve estar em recusar-lhes os erros; de modo que, quanto mais percebe adensarem-se as trevas da incredulidade e do mal tanto mais corajoso e logo - ainda em meio às provas - convém que se demonstre fazendo resplandecer a fúlgida luz de Cristo, guia aos errantes diretriz e orientadora para uma volta ao patrimônio espiritual por tantos esquecido ou abandonado. Forte aos eventos alheios, caminhará e avançará sem desviar-se na noite das trevas terrenas, terá porém o olhar voltado para as estrelas esplendentes no firmamento da eternidade consolante término e prêmio de sua esperança. Se duros e pesados serão os sacrifícios requeridos à humanidade, mais vigorosa e mais operosa nutrirá e alimentará no próprio ânimo a expansiva força do preceito divino do amor e a avidez, a ânsia de fazer deles o guia da própria intenção na ação. Não se dobrará, nem cairá pusilanimemente, diante da rudeza dos campos de combate; ainda quando as provas parecerem fechar toda via de escape, nas próprias provas sentirá crescerem-lhe as forças na proporção das necessidades e da grandeza de sua missão. E se o espírito soberbo de um materialismo ateu fizer esta pergunta: "Ubi est spes tua?" então, sem temor, nem do presente, nem do futuro, responderá com os justos do tempo antigo: "Nolite ita loqui; quoniam filii sanctorum sumus et vitam illam expectamus, quam Deus daturus est his, qui fidem suam nunquam mutant ab eo".

A fé e a fidelidade imutáveis para com Deus são o fundamento da esperança dos heróis cristãos, aquela esperança que não confunde. A todos aqueles que viram suas felicidades aqui embaixo esfacelarem-se e destruírem-se pela borrasca da guerra, aqueles que gemem presas de indizíveis sofrimentos exteriores e interiores, aos irmãos viventes e sofredores dos primeiros crentes em Cristo, Nós mostramos as fileiras dos heróis e das heroínas antigas e modernas; e gritamos com o Apóstolo das Gentes: "Fratres ... non contristemini, sicut et ceteri, qui spem non habent". Não é talvez consolação fortíssima a esperança a nós proposta, que temos como âncora segura e estável da alma, que penetra até além do velame do céu, onde entrou como precursor por nós Jesus? (3).

(3) Alocução ao Sacro Colégio, 2 de junho, 1940.
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Fonte: Pio XII e os problemas do mundo moderno, tradução e adaptação do Padre José Marins, 2.ª Edição, edições Melhoramentos.
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Sursum Corda

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