segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Homilética: 29º Domingo do Tempo Comum - Ano A: "O Tributo a César"


“Mestre, sabemos que és verdadeiro e ensinas o caminho de Deus em toda a verdade, sem te preocupares com ninguém, porque não olhas para a aparência dos homens” (Mt 22,16). Os homens que falam são aduladores! E Jesus não se deixa conquistar pela duplicidade da linguagem, nem pela malícia daqueles homens. O Evangelho descobre a falsidade deles logo no começo da narração; eram discípulos daqueles fariseus que tinham deliberado “sobre a maneira de surpreender Jesus nas suas próprias palavras” (Mt 22,15).

A Palavra de Jesus afirma que o Reino de Deus e o de César não se excluem, como pensavam os judeus. Agora bem, Jesus deixa bem claro que o poder político e militar são radicalmente relativizados, enquanto que o Reino de Deus é absoluto. A pergunta que lhe fizeram os fariseus e os de Herodes não era um pergunta, mas uma armadilha para lobo: se Jesus disser que não paguem ao César, entra em jogo a sua cabeça; mas se disser que paguem, então entra em jogo o prestígio e, com ele, a sua campanha eleitoral pelo reinado dos céus. A pergunta era uma hipocrisia, uma tentação. Tentação de idolatria. A moeda do tributo era o denário, que levava a inscrição: “Tiberius divus et pontifex máximus” (Tibério, deus e sumo pontífice). E o segundo mandamento do decálogo dizia: “Não esculpirás imagem alguma, nada se pareça ao que existe lá em cima no céu…” (Ex 20, 4; Dt 4, 15-20). Por isso Jesus responde: a César o que é de César, que é a obediência para com a autoridade nas coisas que mandem respeitando a Lei de Deus, e o que é de Deus a Deus, que é a adoração. Prevê-nos do fanatismo, absolutismo e sacralização da política.

Como deve se comportar então um cristão, um discípulo de Cristo diante do reino de César, isto é, diante do Estado e da ordem constituída? Obediência ou liberdade? Este é o dilema de sempre. O Novo Testamento resolve este dilema: o discípulo de Cristo fica livre não só para resistir ao Estado, mas também para obedecê-lo. O Estado não é um absoluto, um poder divino, como era antes da vinda de Cristo. Cristo modificou o conceito de poder e o substitui com o serviço. Os nossos césares ou governantes de hoje entendem isso? O discípulo de Cristo pode aceitar o poder estatal em liberdade, sem o medo de cair no Estado-latria, ou seja no culto ao estado ou ao imperador. Só dará o seu tributo ao César quando tem consciência de que será um compromisso justo para a transformação da sociedade, quando tem consciência de que a sua colaboração com as leis, os votos e os impostos será construtiva, e quando essas leis emanadas do poder civil concordem e respeitem a Lei divina.

Quando é que um discípulo de Cristo deve dizer “não” ao poder estatal e fazer resistência? Quando a liberdade deve prevalecer sobre a obediência? Também o Novo Testamento responde: quando está em jogo a própria fé, isto é, quando o Estado se desvia dos planos de Deus e se erige de novo como absoluto, como era antes de Cristo, e não permite mais “dar a Deus o que é de Deus”. Não devemos dar o nosso voto para políticos vivedores, insolventes, corruptos, golfos com dinheiro dos nossos impostos, governantes prepotentes, totalitários, antidemocráticos, que criam um Estado absoluto. Não demos o nosso voto para governantes que emitem ou propõem leis em contra do bem comum, que atacam o matrimonio, a família, a vida, a liberdade de ensino, a propriedade privada, o homem e Deus. Esta situação se repete hoje, em alguns regimes políticos, onde a Igreja é forçada a guardar silêncio e o cristão não pode – não deve- com toda a sua lealdade dizer um “sim” incondicional a tal Estado. O cristão se encontra num verdadeiro estado de perseguição. E às vezes até em situação de martírio.

COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

Textos: Isaías 45, 1, 4-6; 1 Tes 1, 1-5; Mateus 22, 15-21

O Evangelho de Mateus tem apresentado as controvérsias de Jesus com os diversos grupos religiosos, particularmente os chefes dos sacerdotes e anciãos do povo. O texto deste domingo apresenta-nos dois grupos diferentes, fariseus e herodianos, que passam ao ataque, dirigindo-se a Jesus com uma pergunta capciosa: «É lícito ou não dar o tributo a César?»

A questão do tributo ao imperador envolve um aspecto político e um aspecto religioso. O pagamento do tributo que cada judeu devia pagar é um sinal de submissão ao poder estrangeiro. Mas isto implica um problema religioso porque o imperador de Roma é um rei pagão que, considerando-se a si mesmo «divino», reivindica uma forma de reconhecimento e de «culto» que aos olhos dos judeus é idolátrico e perverso. A recusa da dominação romana, sendo geral, era levada ao extremo pelos revolucionários fanáticos chamados «zelotes» que optavam pela luta armada, em estilo de guerrilha, e continuamente organizavam investidas contra os cobradores de impostos e cometiam assassínios políticos

Os representantes dos dois grupos judaicos que colocam a questão a Jesus são os porta-vozes de duas posições que se diferenciam da posição extrema dos zelotes: os fariseus, sob um ponto de vista religioso, têm dificuldade em aceitar o poder romano de ocupação, mas não propõem a revolta armada como os revolucionários zelotes; os herodianos, que apoiam as autoridades locais, aceitam de bom grado a presença romana e contestam a luta armada dos fanáticos religiosos. A pergunta posta a Jesus revela os escrúpulos religiosos dos fariseus mas, a mesmo tempo, revela a sua intenção, juntamente com os herodianos, de envolver Jesus na questão pró ou contra o poder romano de ocupação. O próprio evangelista alerta o leitor: os seus interlocutores «queriam apanhá-lo em falta na palavra», isto é, queriam comprometê-lo de qualquer maneira. Se fosse a favor do tributo, era acusado de colaboracionista e de ir contra o Deus de Israel, Yahweh; se fosse contra o tributo, era acusado de revolucionário, inimigo do império romano.

Jesus escapa à armadilha que lhe estendem fazendo-lhes uma outra pergunta sobre um fato que parece banal, mas que é evidente. Para isso, Jesus pede que lhe mostrem uma moeda do tributo, o que significa que ele não tem nenhuma. Perante o «denário» de prata, unidade do sistema monetário romano, com o qual se paga o tributo ao imperador, ele pergunta: «De quem é esta imagem e a inscrição?». As moedas cunhadas ao tempo de Tibério, imperador desde o ano 14 até 37 d.C., trazem a imagem do imperador (César) e a inscrição: Tiberius Caesar divi Augusti filius Augustus («Tibério César, filho augusto do divino Augusto») e, no reverso, Pontifex Maximus («Sumo Pontífice»).

A conclusão que Jesus tira parece óbvia. Os herodianos estavam de acordo em que se devia pagar as taxas ao imperador. Mas, por isso mesmo, eram olhados como colaboracionistas. Os fariseus estavam de acordo em reconhecer o princípio de fidelidade a Deus, único Senhor. Mas os zelotes, em nome deste princípio pregavam a necessidade de recusar o tributo e de combater o poder romano.

A originalidade de Jesus está em conjugar a escolha pragmática de pagar as taxas a César com a opção religiosa da fidelidade a Deus. O que pertence a César está bem definido: o denário, símbolo do poder político e administrativo, que tem a «imagem» de César. O que pertence a Deus pode ser determinado a partir do conceito de Deus que todo o Evangelho oferece tendo como pano de fundo a tradição bíblica. «Escuta, Israel, o Senhor é o nosso Deus, o Senhor é único…» (Dt 6,4-5; Mt 22,37). A íntegra e total entrega a Deus, único Senhor, não admite compromissos e partilha com qualquer outro «senhor» ou poder concorrente. O ser humano, na medida em que é «imagem e semelhança» de Deus (Gn 1,26-27), só a Deus pertence e, por isso, deve ser restituído a Deus.

PARA REFLETIR

“Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Eis, caríssimos irmãos no Senhor, a frase que resume perfeitamente a Liturgia da Palavra deste Domingo. Frase tão conhecida, tão repetida e tão poucamente compreendida! E, no entanto, uma das frases mais radicais e revolucionárias do Evangelho; frase que bem serve de bandeira para os crentes do mundo descrente de hoje.

Recordemos o contexto. Os inimigos de Jesus prepararam-lhe uma inteligente armadilha. Primeiro o elogiaram com um elogio hipócrita, mas, fiel à realidade, que nos mostra bem a grandeza de caráter do Senhor nosso: “Mestre, sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não te deixas influenciar pela opinião dos outros, pois não julgas um homem pelas aparências”. Que belo elogio! Que belo exemplo a ser seguido! Mas, eis que vem a armadilha: “É lícito ou não pagar o imposto a César?” Se Jesus respondesse “sim”, seria acusado de peleguismo, de colaboracionismo com os opressores pagãos romanos, impuros e odiados pelo povo; se respondesse “não”, seria acusado de revoltoso anti-romano diante de Pôncio Pilatos pelos seus próprios inimigos; se respondesse “não sei”, seria desmoralizado como um rabi incompetente e estulto. Eis, pois: a armadilha era perfeita! Mas, a resposta de Jesus foi mais perfeita ainda, verdadeiramente admirável! Pediu uma moeda, perguntou de quem era a inscrição… “Então, se usais a moeda de César, é porque César é quem manda de fato! Dai, pois, a César o que é de César!” E, então vem o complemento. Impressionante: “Mas, dai a Deus o que é de Deus!”

Que significa tal resposta? À primeira vista, Jesus estaria dividindo o mundo, as realidades, em duas áreas: uma para Deus e outra para César. Deus e César, lado a lado… Nada disso! Ao ensinar a dar a César o que é de César, o Senhor nos convida a respeitar as estruturas da sociedade em que vivemos, a levá-las a sério, a bem viver nelas. César, aqui, significa o mundo em que vivemos, com toda sua riqueza e complexidade. César é a política, César é a Pátria, a família; César é o trabalho, o emprego, o esporte que praticamos; César são os amigos e os sonhos nossos… Tudo quanto é humano e legítimo pode e deve ser apreciado e respeitado pelos cristãos. Podemos dar a César o que é de César, sem medo nem temor! Mas, ao ensinar e exortar a dar a Deus o que é de Deus, o Senhor nos recorda com toda seriedade que somente Deus é Deus. E o que se deve dar a Deus? Tudo; absolutamente, tudo! De Deus é a nossa vida, de Deus é a nossa morte, de Deus é tudo quanto temos, vivemos e somos: Dai a César o que é de César, mas recordai que também César pertence a Deus! César não é Deus! E aqui está o genial e admirável da resposta de Nosso Senhor. César se julgava Deus, era chamado “Divino César”, considerava-se senhor da vida e da morte! Ora, Jesus nega a César tal pretensão! César é somente César e, como César, morrerá! Somente o Senhor é Deus! A ciência não é Deus, a tecnologia não é Deus, os grandes do mundo não são Deus! Só o Senhor é Deus! São Paulo faz eco a essas palavras de Jesus ao nos afirmar: “Tudo pertence a vós: Paulo, Apolo, Cefas, o mundo, a vida, a morte, as coisas presentes e as futuras.Tudo é vosso; mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus” (1Cor 3,21-23).

A grande tentação nossa é colocar no lugar de Deus os tantos césares da vida. Não se endeusa a ciência? Não se absolutiza a tecnologia, não se adora o sexo? Os grandes do mundo – grandes pelo poder, ou pela riqueza, ou pelo sucesso – não se acham divinos, sem reconhecer, como Ciro, na primeira leitura de hoje, que tudo vem de Deus, que estamos nas suas mãos, que tudo é, misteriosamente, fruto da sua providência?

Cristão, tu deves participar da vida da humanidade, deves ser homem entre os homens, deves participar da construção da sociedade… Tu deves saber apreciar o que de bom e de belo existe no mundo… Mas, não te esqueças: nada disso é Deus, nada disso merece tua adoração, nada disso deve prender teu coração: nem família, nem pátria, nem amigos, nem posse, idéias ou poder! Só o Senhor é Deus! A César, o que é de César; a Deus tudo, pois tudo é de Deus! Viver assim é crer de verdade, é levar Deus a sério de verdade! Grande ilusão nossa é pensar que podemos colocar Deus no meio de tantos e tantos amores, de tantas e tantas paixões, fazendo dele apenas mais uma, entre tantas realidades da vida. Não! Ele é tudo, ele é o Tudo, como dizia São Francisco de Assis: “Tu és o Bem, todo o Bem, o Bem universal!”

Caríssimos, que na oração, na experiência da vida sacramental e na escuta da Palavra do Senhor nós aprendamos e reconhecer Deus como Deus na nossa vida, para que, como aconteceu com os cristãos de Tessalônica, na segunda leitura de hoje, estejam diante de Deus sem cessar “a atuação da vossa fé, o esforço da vossa caridade e a firmeza da vossa esperança em nosso Senhor Jesus Cristo”. Amém.

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