Neste
domingo destacam-se, nas leituras, dois temas principais: a oração e a
“justificação” do humilde e do pecador (1ª leitura e Evangelho), e a entrega da
vida de Paulo no fim de seu percurso (2ª leitura). Este último texto é, antes
de mais nada, um testemunho que contemplamos com admiração e gratidão. O
primeiro tema tem um peso pastoral muito grande e merece reter nossa atenção
especial.
Comentário
dos textos bíblicos
1.
I
leitura: Eclo 35,15b-17.20-22a
A 1ª leitura, que poderia ser
estendida um pouco mais, para que melhor apareça seu sentido, diz que Deus não
pratica acepção de pessoas e faz justiça aos pequenos (pobres, órfãos, viúvas, aflitos,
necessitados). Deus toma partido dos pobres e oprimidos, porque é o Deus da
justiça: não conhece acepção de pessoas, escolhe o lado dos oprimidos. Em
matéria de ofertas, não é a grandeza ou a riqueza do dom que importa, mas a
atitude de quem o oferece e a disposição em ajudar os necessitados (35,1-5).
Isso é dito em oposição à maneira dos poderosos, que querem
agradar a Deus por meio de sacrifícios perversos (Eclo 35,14-15a[11]). Oferecer
a Deus o fruto da exploração é tentativa de suborno (35,14)! Deus não se deixa
comprar pelas coisas que lhe oferecemos, pois não necessita de nada disso. Deus
é reto, atende os oprimidos e necessitados. Ele nos considera justos, amigos
dele, quando lhe oferecemos um coração contrito e humilde (Sl 51[50],18-19). Nesse
sentido, o salmo responsorial acentua: Deus atende ao justo e ao oprimido (Sl
34[33],2-3.17-18.19-23).
2.
Evangelho: Lc 18,9-14
Deus nos considera justos, ou
seja, amigos dele, quando lhe oferecemos um coração contrito e humilde. Por
isso, engana-se completamente o fariseu de quem Jesus fala no Evangelho: acha
que pode impressionar Deus com suas qualidades aparentes, seus sacrifícios e
boas obras puramente formais, sem extirpar do coração o orgulho e o desprezo
pelos outros.
No tempo de Jesus, os fariseus – e, hoje, os “bons cristãos” –
usurpam a religião para convencerem a si mesmos e aos outros de sua justiça;
desprezam os outros e querem negociar com Deus na base de suas “boas obras”.
Porém, é a atitude contrária que encontra aceitação junto a Deus: a humilde
confissão de ser pecador (cf. Sl 51[50],3). Quem já se declarou justo a si
mesmo, como o fariseu, não mais pode ser justificado por Deus. O publicano,
porém, que reza de coração contrito, se reconhece pecador e se confia à
misericórdia de Deus, é considerado justo e volta para casa “justificado”.
Lucas acrescenta uma lição moral: “Quem se enaltece será
humilhado; quem se humilha será enaltecido” (Lc 18,14). Mais profunda ainda é a
lição propriamente teológica, refrão da teologia de são Paulo: quem se declara
justo a si mesmo com base em suas obras rituais – como faziam os fariseus,
convencidos de que a observância da Lei lhes dava “direitos” perante Deus – não
é declarado justo por Deus, pois Deus é “inegociável” e declara alguém justo
(reconciliado) com base na sua misericórdia e amor gratuitos. A justificação é
de graça para quem entra na órbita do amor de Deus, pondo-lhe nas mãos a vida
inteira, com pecados e fraquezas. Diante de Deus, todos ficamos devendo (cf. Sl
51[50],7). Os que se justificam a si mesmos, além de serem orgulhosos, são
pouco lúcidos! Portanto, melhor é fazer como o publicano: apresentarmo-nos a
Deus conscientes de lhe estar devendo e pedir que nos perdoe e nos dê novas
chances de viver diante de sua face, pois sabemos que Deus não quer a morte do
pecador, mas sim que se converta e viva (Ez 18,23).
Esse pensamento deve extirpar a mania de nos achar os tais e de
condenar os outros: a autossuficiência. Mas, para afastar a autossuficiência, é
preciso, antes, outra coisa: a consciência de sermos pecadores. Ora, isso se
torna cada vez mais difícil na atual civilização da sem-vergonhice. O ambiente
em que vivemos trata de esconder a culpabilidade e até mesmo a condena como
desvio psicológico. Que a culpabilidade neurótica passe
do confessionário para o divã do psicanalista é coisa boa, mas não convém
encobrir o pecado real.
Tal encobrimento do pecado acontece tanto no nível do indivíduo quanto no da
sociedade: oficialização de práticas opressoras e exploradoras nas próprias
estruturas da sociedade, leis feitas em benefício de uns poucos etc.
Para sermos lúcidos quanto a isso, cabe observar que a
autojustificação, entre nós, já não acontece ao modo do fariseu, que se gabava
das obras da Lei de Moisés. Agora acontece ao modo do executivo eficiente, que
tem justificativa para tudo: para as trapaças financeiras, a necessidade da
indústria e do desenvolvimento nacional; e para as trapaças na vida pessoal, o
estresse e a necessidade de variação… Hoje, já não são os fariseus que se autojustificam,
mas os novos publicanos, que dizem: “Graças a Deus sou autêntico, não escondo o
que faço, não sou um fariseu hipócrita como aquele ‘catolicão’ ali na frente do
altar”!
Seja como for, saber-se pecador é o início da salvação. Isso
vale para todos, ricos e pobres, mas para os pobres é mais fácil, porque estão
em dívida com tantas coisas, que mais facilmente se dão conta de serem
devedores. Ora, pecador não é apenas aquele que transgride expressamente a Lei,
mas todo aquele
que não realiza o bem que Deus lhe confia. Pensando nisso,
reconheceremos mais facilmente que temos “dívidas”, como se rezava na versão
antiga (e mais literal) do Pai-Nosso. Por isso, a liturgia começa com o ato
penitencial. Antigamente, primeiro o recitava o padre, depois os fiéis – não se
sabe por que a nova liturgia suprimiu esse costume…
Em consonância com o Evangelho, aconselha-se o prefácio IV dos
domingos do tempo comum: Cristo nos justificou por sua morte.
3.
II
leitura: 2Tm 4,6-8.16-18
Neste domingo, termina a lectio continua da
segunda carta a Timóteo, que é o emocionante testamento espiritual de Paulo. No
fim de seu percurso, Paulo abre seu coração: “Estou para ser oferecido em
sacrifício; aproxima-se o momento de minha partida. Combati o bom combate,
guardei a fé” (4,6). O exemplo vale mais que as palavras. Paulo não só pregou;
trabalhou com as próprias mãos. No fim da vida, ele tem as mãos amarradas, e
outros escrevem por ele. Mas não fica amargurado. Suas palavras revelam
gratidão e esperança. Ficou fiel ao seu Senhor e aguarda agora o encontro com
ele (4,5).
Paulo sabia-se pecador, pecador salvo pela graça de Deus (1Tm
1,13; cf. Gl 1,11-16a; 1Cor 15,8-10). Na base dessa experiência, anela pelo
momento de se encontrar com Aquele que, por mera graça, o tornou justo, o “Justo
Juiz”, que o justificará para sempre, enquanto ninguém tomou sua defesa diante
do tribunal dos homens (2Tm 4,16). O mistério desta vida de apóstolo era a
caridade, mistério de toda vida fecunda. Ela não tem fim (1Cor 13,8) e
completa-se no oferecimento da própria vida (cf. Rm 1,9; 12,1).
Pistas
para reflexão
A oração do pecador: Será preciso ser santo ou beato para rezar
a Deus? Será que os simples pecadores precisam “delegar” as monjas ou algum
padre muito santo para rezar por suas intenções?
O Antigo Testamento ensinava que “a prece do humilde atravessa
as nuvens” (1ª leitura). Jesus, no Evangelho, faz desse humilde um pecador.
Enquanto, na frente de todos, um fariseu se gloria de suas “boas obras”, um
publicano – coletor de taxas a serviço do imperialismo estrangeiro – reza, a
distância, com humildade e compunção. Jesus conclui: este foi, por Deus,
declarado justo e absolvido, mas o fariseu, não.
O mais importante na avaliação geral de nossa vida não é o
número e o tamanho de nossos pecados, mas nossa amizade com Deus. Como no caso
do fariseu e da pecadora (Lc 7,36-50), alguém pode ter pouco pecado e
pouquíssimo amor, e outra pessoa pode ter grandes pecados e imenso amor. Quem
nada faz não peca por infração; só por desamor, e para essa falta não existe
remédio. Quem só pensa em si mesmo – como o fariseu –, como Deus pode ser amigo
dele?
É muito importante os pecadores manterem o costume de conversar
com Deus na oração. E que saibam que Deus os escuta. Isso faz parte integrante
da Boa-Nova de Cristo e da Igreja. A rejeição moralista aos pecadores é
anticristã e contradiz o espírito da Igreja, que oferece o sacramento da
penitência para marcar com sua garantia o pedido de reconciliação do pecador
penitente. O sacramento da penitência é, jocosamente falando, um sinal de que
se pode pecar, pois senão nem deveria existir!
Importa anunciar isso a quantos estão “afastados” por diversas
razões (situação matrimonial irregular, vida sexual não conforme as normas,
pertença à maçonaria, rejeição de alguns dogmas ou posicionamentos da Igreja
etc.). Em alguns casos, essas pessoas poderiam, mediante devida informação e
diálogo, ser plenamente reintegradas (declaração de nulidade de um casamento
que na realidade não existiu etc.). Em outros casos, a plena vida sacramental
continuará impossível, mas, mesmo assim, essas pessoas devem saber que Deus é
maior que os sacramentos e presta ouvidos à oração de quem entrega sua vida
quebrantada nas mãos dele.
Importa anunciar isso, sobretudo, ao povo simples, marcado por
séculos de desprezo e discriminação, falta de instrução, missas ouvidas na
porta do templo… Suas preces “a distância”, como a do publicano, serão
certamente atendidas! Hoje, muitos deles já podem avançar até perto do altar;
oxalá não se tornem fariseus!
Pe. Johan Konings, sj
Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no
Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e licenciado em Filosofia
e Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica.
Atualmente é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo Horizonte. Entre
outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se
fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A
- B - C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas
suas origens e hoje. E-mail: konings@faculdadejesuita.edu.br
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Vida Pastoral