Jesus Cristo
é Rei universal. Seu reinado se manifesta em seu amor por todos e chegou ao
ápice no seu sacrifício da cruz, caminho para sua glorificação. Ele é o Messias
transcendente, que veio e retornará em poder.
Comentário
dos textos bíblicos
I leitura
(Dn 7,13-14)
Após a visão de quatro animais (Dn 7,2-8), Daniel
reporta a visão do trono de Deus e de seu juízo sobre o mundo (v. 9-12). Os v.
13-14 mencionam a visão do filho de homem que se apresenta diante do trono de
Deus. A partir do v. 15, o texto traz a interpretação das visões (v. 15-28).
O “filho de homem” é figura que ganhou grande
importância na tradição judaica e cristã. Literalmente, significa “ser humano”
(cf. Sl 144,3; Jó 16,21; Jr 49,18.33 etc.). Mas não é simplesmente tal, pois é
apresentada em forma de comparação: “como um filho de homem”. O “como” indica que
ele é percebido numa visão, não distintamente, mas de modo pouco claro. Pode ou
não ser um ser humano. Como, no livro, “homem” muitas vezes se refere a anjos
ou seres celestes (cf. Dn 8,15; 9,21; 10,5; 12,5-7), o “filho de homem” poderia
representar um ser celestial. Isso é confirmado pelo fato de vir “nas/com as
nuvens do céu”, ou seja, ter origem celeste; ele é transcendente. No Novo
Testamento, particularmente nos evangelhos, a expressão “Filho de homem”
referir-se-á quase exclusivamente a Jesus Cristo, o que bem expressará, além de
outras características, sua origem divina.
Os quatro animais são representações esquemáticas
de reis e reinos que se sucederam na história (não exatamente em número de
quatro), até o reinado helenista da época de Daniel. Isso faz pensar que também
o filho de homem seja uma figura régia. Como ele é associado aos santos do
Altíssimo, que receberão o Reino (v. 18.27), pode ser considerado um ser
individual que representa todo o povo que participará do Reino eterno.
O “filho de homem” se apresenta diante do Ancião,
figura de Deus que vive para sempre. Dele recebe o império, um domínio
universal, permanente e indestrutível. Tomará, portanto, o lugar dos reinos que
dominaram a história, que não são nem universais, nem permanentes, nem
indestrutíveis.
Há evidente contraste entre as feras que sobem do
mar (v. 3) e o filho de homem, que vem nas nuvens do céu. Seu reinado não será
fruto das vicissitudes de uma história que tantas vezes se apresenta dominada
pelos poderes do caos (o mar), daquilo que é o oposto de Deus. Não são os
poderes deste mundo que determinam a história, mas o verdadeiro senhor da
história, Deus, é que, afinal, fará triunfar seu Reino. E o fará por meio de
alguém que vem de seu mundo divino. A comunidade pode então confiar que a
última palavra pertence a Deus. E adquirir, assim, a chave para interpretar a
história, para enfrentar perseguições, sem se deixar subjugar pelo aparente
poder mundano, mas mantendo-se firme na fé no poder de Deus.
II leitura
(Ap 1,5-8)
O texto, que praticamente abre o livro do
Apocalipse, apresenta a glória e o poder de Jesus Cristo e as consequências de
sua obra para nós.
A pessoa de Jesus ocupa o centro da mensagem.
Diversos predicados seus são aí descritos.
a) Ele, o Ressuscitado, é rei, com poder e glória
plenos (v. 5a.6b).
b) Ele vem. Ele vem “em meio a nuvens” (v. 7), como
o “filho de homem” de Daniel, numa clara indicação de seu caráter transcendente
e de seu domínio universal.
No v. 8, Deus se autoapresenta como “aquele que é e
que era e que vem”. Trata-se de uma releitura de Ex 3,14, onde Deus se revela
como o “Eu sou”. A tradição judaica já havia explicado esse nome com a
expressão: “aquele que é, que era e que será”. O Apocalipse, porém, muda essa
fórmula, substituindo “o que será” pelo “o que vem”. Com isso, a expressão diz
respeito a Deus Pai, que garante o que foi dito anteriormente (ele é o alfa e o
ômega em Ap 21,6), mas, ao mesmo tempo, abre-se para indicar Jesus (ele é o
alfa e o ômega em Ap 22,13). No Apocalipse, marca-se de modo muito forte a
unidade (na diversidade das Pessoas) entre o Pai e o Filho.
Aquele que vem é o Filho de homem poderoso, mas que
sofreu na cruz, que foi traspassado (v. 7, cf. Zc 12,10.14), que derramou seu
sangue (v. 5). A união da figura do Filho de homem poderoso com a do
traspassado de Zc 12, dois aspectos tão contraditórios, mostra a novidade do
Novo Testamento quanto ao Salvador. Seu poder se manifesta não afastando a
morte, mas assumindo-a e transformando-a. Por isso, seu poder alcança a todos
(v. 7), mesmo os responsáveis por sua morte. Seu triunfo será universalmente
reconhecido.
c) Ele é aquele que nos ama e nos libertou de
nossos pecados (v. 5). Sua obra de redenção, realizada na cruz (ele nos
libertou, no passado), é fruto de seu amor, que não é um ato (só) passado, mas
presente (ele nos ama).
Daí surgem as consequências para nós: pelo poder de
seu amor, somos libertados do pecado (v. 5) e, com isso, adquirimos dignidade
régia e sacerdotal. O que era promessa para o povo judeu, após a libertação do
Egito, se guardasse a aliança (cf. Ex 19,6), agora se tornou realidade, por sua
cruz e ressurreição. Aquilo que Jesus é, ele o participa a seus fiéis.
Se é assim, a comunidade eclesial tem só uma coisa
a dizer: “a ele seja a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém” (v.
6).
Evangelho
(Jo 18,33b-37)
A cena é a do processo contra Jesus. Pilatos
pergunta-lhe se ele é o “rei dos judeus” (Jo 18,33). Tal pergunta remete à
acusação que o levou ao tribunal (cf. Jo 19,31), da qual Pilatos se distancia
(“Acaso sou eu judeu?”, v. 35), negando implicitamente que tivesse nela
qualquer responsabilidade. Na boca do juiz romano, porém, tal pergunta poderia
denotar certo desprezo pelos judeus, pois ele apresenta aos acusadores Jesus,
já flagelado e escarnecido, como “o vosso rei” (cf. 19,14-15) e o caracteriza,
no letreiro colocado na cruz, como o “rei dos judeus” (19,19).
Jesus, porém, eleva o nível da pergunta de Pilatos.
Responde com uma interrogação que lembra aquela que, nos sinóticos, fizera aos
discípulos: “Quem dizem os homens que eu sou? E vós, quem dizeis que eu sou?”
(Mc 8,27.29). Pilatos não alcança, porém, a interrogação de Jesus e responde enfocando
o essencial no processo: “Que fizeste?” (v. 35). É neste momento que Jesus
responde se ele é ou não o rei dos judeus: “Eu sou rei… Meu reino não é daqui”
(v. 36-37). Jesus define sua realeza. Ele não é “rei dos judeus”; é
simplesmente “Rei”. Os judeus que a ele se opuseram não o aceitam como seu rei
(cf. 19,15.21): o rei deles é César. Sua realeza, embora abarque Israel (cf.
12,15), ultrapassa as fronteiras israelitas. Seu poder é universal.
Jesus possui dignidade régia, pois recebeu de seu
Pai todo o poder (cf. 3,35; 10,29; 13,3). Em sua cruz-ressurreição, em sua
glorificação, ele inaugura sua realeza, ao desbancar o “príncipe deste mundo”
(cf. 12,31-32).
A partir daqui, entende-se melhor o que significa
que seu reino não seja deste mundo. João normalmente indica, por meio da menção
da origem (de onde é algo), o que determinada coisa é. A realeza de Jesus não
vem deste mundo (cf. 6,15, sua recusa a ser feito rei), embora se manifeste no
mundo e para o mundo. Mas tem origem e natureza transcendente. Assim, Jesus
explica a Pilatos que não é um agitador político que quer impor seu poder pela
violência. Seu reino não se reduz a pretensões mundanas, mas, mesmo começando a
instaurar-se aqui, visa a algo que ultrapassa esta história.
O v. 37 expressa positivamente a realeza de Jesus:
ele tem origem divina, “veio” (do Pai) ao mundo. Ele é o revelador único da
verdade salvífica e convida a aceitá-la. Aquele que “ouve a sua voz” e a acolhe
começa a ser “da verdade”, entra no âmbito de seu poder vitorioso:
Minhas ovelhas ouvem
a minha voz. Eu as conheço e elas me seguem.
Eu lhes dou a vida eterna.
Elas jamais perecerão e ninguém as arrebatará de
minha mão (Jo 10,27-28).
Ele é Rei, mas exerce sua realeza exatamente
aceitando a cruz. Assim, ele instaura um reinado que contradiz os poderes
mundanos, pautados tantas vezes pela violência. Seu reinado já se iniciou. Por
sua glorificação, os reinos deste mundo já foram relativizados, e já tem lugar
o reinado do Filho do homem; mas tal realidade ainda não penetrou todas as
realidades desta história, o que ocorrerá somente quando “aquele que vem” (Ap
1,8) completar sua obra redentora.
III. Pistas
para reflexão
– Permito que Jesus exerça sua realeza na minha
vida, na vida de minha comunidade, por meio da abertura à sua Palavra, à sua
vontade, ao seu perdão, ao seu amor, e pela solidariedade com tantos que sofrem
e procuram um sentido para a vida?
– Creio/cremos realmente na cruz como caminho para
a glorificação? Ou procuro/procuramos a glória sem a cruz? Como isso se
demonstra no dia a dia?
– Sei/sabemos discernir o que contribui para o
reinado de Cristo daquilo que a ele se opõe e, ao contrário, contribui para o
reino do maligno?
Maria de
Lourdes Corrêa Lima
Professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio e do Instituto Superior de Teologia da
Arquidiocese do Rio de Janeiro. Doutora em Teologia (Bíblica) pela Pontifícia
Universidade Gregoriana (Roma). É membro da Ordem das Virgens da Arquidiocese
do Rio de Janeiro. E-mail: mllima@puc-rio.br
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Vida Pastoral