As três leituras da solenidade de Todos os Santos
nos apresentam um fato: Deus, o Santo, quer fazer de nós imagens suas. A
santidade não é uma realidade só para alguns, mas para todos. Não é um tema
simplesmente da vida privada, mas, envolvendo nosso ser mais pessoal, faz parte
de nosso testemunho diante do mundo. Ela também não é algo a ser vivido só na
outra vida, mas começa agora o que depois se plenificará.
Comentário
dos textos bíblicos
Evangelho
(Mt 5,1-12a)
As bem-aventuranças são palavras que ensinam os
discípulos, anunciando-lhes promessas e mostrando-lhes o caminho do seguimento
de Jesus. Indicam a subversão dos critérios do mundo: os que são considerados
como nada são ditos felizes. Trata-se de uma felicidade de outra dimensão, onde
o cristão se alegra não obstante os sofrimentos (v. 12: “alegrai-vos!”). As
bem-aventuranças são, assim, imagem da nova ordem, do mundo novo, do Reino que
Jesus inaugura e que já se inicia agora; são também retrato do próprio Jesus:
ele é o primeiro a ser pobre em espírito, manso, misericordioso… E, com isso,
elas são orientação para os discípulos.
Os santos viveram essa assimilação à pessoa de
Jesus. São hoje bem-aventurados no céu, mas já começaram, pela vivência
cotidiana dos valores das bem-aventuranças, a sê-lo nesta terra. A vida segundo
o evangelho não é uma vida tristonha, revoltada, mas já nos faz, aqui e agora,
saborear a bem-aventurança celeste. Quem está com Jesus já participa, na sua
vida concreta, da bem-aventurança prometida.
Não se trata, porém, de simples divisão: um é
santo, e o outro, pecador. Embora não se possa negar fundamentalmente essa
diferença, a santidade da Igreja é realidade que se verifica no interior de
cada um. Cada um pode ter em si algo da santidade e algo do pecado. A Igreja é
santa naquilo que, no coração de cada fiel, é orientado pelo amor que provém de
Deus, leva a Deus e à dedicação sem limites aos irmãos.
Bem-aventurados são, primeiramente, os “pobres em
espírito”. Não se trata nem de pobreza unicamente material nem de pobreza puramente
espiritual. Trata-se de saber renunciar às riquezas materiais, usando-as para o
bem comum, com a liberdade interior que provém dos imperativos do evangelho.
Isso é impulso para que a justiça social aconteça na sociedade. A Igreja, os
cristãos, vivendo essa pobreza evangélica, tornam-se sinais do mundo novo.
Essa atitude se expressa também na mansidão, que,
não se impondo com prepotência, mas sendo vivida em espírito de serviço, terá
sua recompensa na outra terra. E naqueles que, aflitos, resistem ao mal sem
fazer o mal e agem, com esperança em Deus, em favor do restabelecimento da
ordem querida por ele. Não se desesperam porque esperam a consolação que não
vem da justiça humana, mas de Deus. A eles estão ligados os que têm fome e sede
de justiça, aqueles que sofrem sem verem seus direitos respeitados, mas têm já
a certeza daquela justiça que nunca falhará.
Os misericordiosos são bem-aventurados porque
deixam transbordar da riqueza de seu coração algo que os faz, talvez sem se dar
conta, imagem da infinita misericórdia de Deus, a eles reservada. Os puros são
aqueles que podem estar diante de Deus sem máscaras, pois nada têm a esconder.
Mesmo se encantando com os valores deste mundo, sabem que só vale aquilo que
traz o reflexo de Deus; e, assim, elevam tudo para Deus. Os que promovem a paz
são os que vivem a reconciliação, que começa com Deus e, daí, deve se expandir
aos relacionamentos e estruturas humanas.
Por fim, bem-aventurados são os perseguidos por
causa da justiça, que mantêm as medidas justas e não se dobram perante medidas
injustas. São, assim, sinal de contradição e se tornam um desafio e mesmo uma
acusação. Por isso lhes advém a mesma sorte de Jesus: o desprezo e até o ódio.
Na versão do Evangelho de Lucas, Jesus pronuncia as
bem-aventuranças “erguendo os olhos para seus discípulos” e dizendo:
“Bem-aventurados vós, os pobres… Vós, que agora tendes fome… Vós que agora
chorais… Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem…” (Lc 6,20-23). É
como se Jesus já visse neles realizado algo da beleza das bem-aventuranças. As
bem-aventuranças não são uma teoria, mas se realizam já neste mundo. Assim, não
se deve ler as bem-aventuranças sem olhar para tantos que já agora são puros,
santos, honestos… A Igreja é santa nos céus, mas o é também naqueles que, já
aqui, se deixam guiar pela vivência radical do evangelho. Todos esses que
procuram viver o evangelho celebram, com os santos canonizados, a festa de
Todos os Santos. E podem alegrar-se e exultar porque, pela graça, terão grande
recompensa em Deus (cf. Mt 5,12).
I leitura
(Ap 7,2-4.9-14)
Na primeira cena da leitura de hoje, do livro do
Apocalipse, vemos os fiéis em meio a grandes provações. Sem livrá-los das
dificuldades, Deus, intervém em seu favor. Eles são marcados com “o selo do
Deus vivo”, identificados como “servos de Deus” (v. 3). A marca que recebem é o
batismo, que, na comunidade cristã primitiva, muitas vezes aparece na imagem do
“selo” (cf. 2Cor 1,21-22). Ele faz do cristão propriedade de Deus e, por isso,
é sinal que protege do juízo escatológico. Dessa forma, já agora pertencem a
Deus e depois chegarão à glória de Deus, estarão de pé diante de seu trono (v.
9).
Em seguida, o texto apresenta a visão dos eleitos
no céu, aqueles marcados com o selo (v. 9-14). Eles são incontáveis (cf. Gn
15,5: a promessa a Abraão), num número de grandeza incomparável (12 x 12 x
1.000, v. 4), e provêm de todas as partes do mundo. São admitidos onde antes
estavam só os anciãos e os quatro seres vivos: à presença de Deus (cf. Ap
5,6-8). Portam vestes brancas, a vida nova na qual entraram pelo batismo e que
se plenifica na glória celeste. E têm nas mãos palmas, símbolo da vitória (v.
9). Foram purificados pelo batismo, no qual se torna realidade a força
salvadora da cruz, e, passando pela provação, a venceram (v. 13-14).
Por isso participam da liturgia celeste. O hino que
cantam proclama Deus e o Cordeiro como autores da sua salvação (v. 10). O
batismo, a força de vencer as provações, tudo eles receberam da graça de Deus.
A eles se juntam os anjos, os anciãos e os quatro seres vivos, que cantam a
glória e a majestade de Deus (v. 11-12).
Dessa forma, em duas cenas, uma terrestre (v. 2-4)
e outra celeste (v. 9-14), o Apocalipse abre a realidade da ação salvadora de
Deus, que já nesta história santifica os seres humanos e os guia para a meta
última, a glória, na qual participarão da liturgia que não terá fim.
II leitura
(1Jo 3,1-3)
A vida do cristão transcorre entre dois momentos: o
agora e o que virá. O primeiro momento (v. 2) já é marcado pela realidade
transcendente: somos realmente filhos de Deus. No Antigo Testamento, o povo de
Israel aparece, embora raramente, como filho de Deus, mas num sentido
simbólico, para indicar a estreita relação de pertença a Deus (cf. Os 11,1) e a
realidade de ser obra das mãos de Deus, que é o Criador e aquele que formou o
povo eleito (cf. Is 64,7; 63,16). No Novo Testamento, não se trata de um
símbolo, mas de uma realidade. O único Filho de Deus, Deus como Deus, fez-se
humano. E por sua obra redentora (cruz-ressurreição) deu-nos real participação
na sua vida de Filho. Isso começa em nós pelo batismo. Essa realidade
encontra-se, contudo, marcada pelos limites da história (geral e pessoal).
O segundo momento é a vinda futura do Filho de
Deus. Então aquilo que já somos (filhos) será levado à plenitude. Quando
encontramos alguém que amamos e que nos ama, nosso semblante se ilumina.
Sorrimos, falamos… com confiança diante de um amigo. Quando encontrarmos a
Deus, sua divina face iluminará a nossa face. Nosso “semblante” será iluminado.
Resplandecerá em nós seu amor, sua divina Pessoa… Nossa semelhança com ele chegará
ao ápice.
Essa esperança deve guiar nossa vida, dando-nos
força e motivos para permanecermos fiéis, trazendo às categorias, valores e
estruturas de nossas sociedades, que tantas vezes rejeitam o evangelho, a
interpelação que vem de Deus. Assim, o cristão não só se santifica, mas
santifica a história.
DICAS PARA
REFLEXÃO
– O Concílio Vaticano II, no documento Lumen
Gentium, fala da vocação de todos à santidade. Estamos convictos de que temos o
chamado para ser santos? De que nosso testemunho perante a própria Igreja e
perante a sociedade passa pela resposta a essa vocação?
– Em que consiste a santidade da Igreja, dos
cristãos? Como ser cristão coerente num mundo em que há tantas estruturas e
valores que contrariam o evangelho?
– Nossa santidade é mais obra nossa ou de Deus?
Maria de
Lourdes Corrêa Lima
Professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio e do Instituto Superior de Teologia da
Arquidiocese do Rio de Janeiro. Doutora em Teologia (Bíblica) pela Pontifícia
Universidade Gregoriana (Roma). É membro da Ordem das Virgens da Arquidiocese
do Rio de Janeiro. E-mail: mllima@puc-rio.br
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Vida Pastoral_______________________
* No Brasil esta solenidade é celebrada no domingo seguinte, caso o dia 1º não caia num domingo. Quando, porém, o dia 2 de novembro cair em domingo, celebra-se a solenidade de Todos os Santos no dia 1º de novembro.