sexta-feira, 13 de junho de 2014

Copa do Mundo


Com o início da Copa do Mundo algumas mensagens chamam nossa atenção: o Papa Francisco nos recordou que é um tempo de ser solidário e ocasião de diálogo, de compreensão, de enriquecimento humano reciproco. Ele lembra que o futebol deveria ser “uma escola para a construção de uma cultura de encontro, que permita a paz e a harmonia entre os povos”.

A nossa Conferência Episcopal, em sua mensagem “jogando pela vida”, recorda que a sociedade brasileira é convidada a aderir ao projeto “Copa da Paz” e à campanha “jogando a favor da vida – denuncie o tráfico humano”. Recorda que “somos convocados para formar um único time, no qual todos seremos titulares para o jogo da vida que não admite espectadores.”

A nossa Arquidiocese, detentora dos símbolos cristãos das Olimpíadas (recebemos de Londres), iniciou a campanha pelos 100 dias de paz que, embora seja um tema para 2016, já começamos a trabalhar neste ano.

Por isso, diante de tanta intolerância que assistimos nos estádios, tanta violência de uns contra outros, creio que seria bom refletir sobre essa questão ao vivermos este tempo de Copa do Mundo e a nossa missão neste tempo de tantas mudanças.

A Copa do Mundo de Futebol é um grande evento que chama a atenção de muitas pessoas desejosas de acompanharem as partidas desse esporte surgido, em sua atual modalidade, na Inglaterra do século XIX.

Não obstante à festa, existem, de modo ora mais explícito ora mais velado, episódios de racismo contra torcedores ou jogadores estrangeiros que acompanham ou participam de algumas pelejas futebolísticas. Daí a oportunidade de abordarmos a questão neste artigo à luz do documento “A Igreja e o racismo” que, publicado pela Pontifícia Comissão de Justiça e Paz, da Santa Sé, em 3 de novembro de 1988, conserva plena atualidade.

Entende-se por racismo “a consciência de pretensa superioridade biológica de determinada raça em relação às outras”, atitude que, sem dúvida, gera disputas irracionais entre seres humanos feitos à imagem e semelhança de Deus a fim de serem co-construtores de um mundo de harmonia, fraternidade, justiça e paz, em benefício de todos, e não fratricidas, como querem as ideologias racistas.


O Documento da Santa Sé historia para nós a vergonhosa chaga do racismo, demonstrando que a questão tem início, em linguagem bíblica, em Gênesis 11, quando, como fruto do pecado, os homens, desligados de Deus, mas cheios de si, tentam construir uma torre, a de Babel, cujo vértice toque os céus. Esse gesto insano, mas fracassado, de uma pretensa superioridade que desafia o Criador se voltará, em breve, também contra o próximo, pois pensa o orgulhoso: “não preciso de Deus, nem do meu semelhante. Sou autossuficiente, superior a tudo e a todos. O mundo, por conseguinte, está em minhas mãos e tudo o que há nele me é inferior e está sob o meu poderoso domínio”.

Registra-se, por exemplo, que na antiguidade Greco-romana não pareceu reinar o mito defensor de raças superiores e inferiores, embora existisse por parte dos povos vencedores a escravidão de povos vencidos em guerra. A ocorrência se dava, no entanto, devido a questões militares e não raciais.

Entre os hebreus havia a consciência de que Deus os amava de modo especial devido à escolha gratuita que fizera por eles. Era um povo diferente de grande parte dos seus vizinhos idólatras, mas mesmo assim a separação não podia ser considerada racismo, pois se fundava em motivos religiosos e não biológicos. Ao contrário, os profetas, embora conscientes da eleição de Israel, entendem a mensagem de Deus como universal e, por isso, apta a chamar todos os homens e mulheres da Terra à mesma fé.

O Cristianismo confirmou e plenificou essa universalidade, uma vez que a mensagem do Evangelho devia chegar a todos os povos (cf. Mt 28,19). Daí, a Idade Média não conheceu um racismo propriamente dito, mesmo que os povos se dividissem entre cristãos, judeus e outros, isso levou os judeus a sofrerem muitos desprezos, mas por critérios mais uma vez religiosos, não biologicistas.

Nos séculos XV e XVI, ocorreram as descobertas de novas terras do chamado “Novo Mundo”, que levou a abusos de alguns comerciantes para com os povos recém-encontrados. Sim, alegando a inferioridade dos indígenas e negros, se recorreu à escravização dessas pessoas. O tema da escravidão ganhou forças e mereceu a condenação de homens da Igreja, como Bartolomeu de Las Casas, bispo dominicano; Francisco de Vitória e Francisco Soarez, renomados teólogos, que muito insistiram na doutrina da igualdade fundamental entre todos os homens e mulheres do mundo.

Em nome da Igreja, o Papa Paulo III, na Bula Sublimis Deus, de 2 de junho de 1537, denunciava aqueles que afirmavam serem os habitantes das novas terras considerados como animais irracionais e que, por isso, poderiam ser usados para proveito de terceiros. Textualmente, o mesmo Pontífice afirmava: “No desejo de remediar o mal que foi causado, Nós decidimos e declaramos que os chamados indígenas, bem como todas as outras populações com que no futuro a cristandade entrará em relação, não deverão ser privados de sua liberdade e dos seus bens – não obstante as alegações contrárias –, ainda que eles não sejam cristãos e que, ao contrário, deverão ser deixados em pleno gozo da sua liberdade e dos seus bens”.

Esse documento foi quase ignorado, pois devido à Lei do Padroado, que fazia do poder temporal (O Estado) ser como que um protetor do poder espiritual (A Igreja), o governo civil invadia, por interesses escusos, o campo de ação eclesiástica e sabotava a publicação e a difusão dos pronunciamentos dos Papas ou Bispos.

No século XVIII, aparece a ideologia racista contrária aos ensinamentos da Igreja, pois se justificaria na cor da pele e nos caracteres corporais do indivíduo, devido a heranças hereditárias, a existência de raças inferiores e superiores. Aqui aparece pela primeira vez o termo “raça”, a fim de promover classificações de acordo com pressupostos biológicos a dividir os seres humanos entre raças fortes e raças fracas, de cuja mistura resultaram as quedas das grandes civilizações, dizia-se.

Fundamentado nessa tese, pretensamente científica, surgiu a eugenia, que alimentou o nazismo alemão do século XX menosprezador das consideradas raças inferiores, tais como judeus e ciganos, exterminados aos milhões em campos de concentrações junto a pessoas deficientes físicas ou mentais. Ora, a Igreja mais uma vez ergueu sua voz pelas palavras do Papa Pio XI, na Encíclica Mit Brennender Sorge (Com candente preocupação), de 1937, ao asseverar que “todo aquele que toma a raça ou o povo ou o Estado..., ou qualquer outro valor fundamental da comunidade humana... para os retirar da sua escala de valores... e os divinizar com um culto idolátrico, perverte e falsifica a ordem das coisas por Deus criada e estabelecida” (Acta Apostolica Sedis XXIX, 149).

Também o Papa Pio XII, em sua Radiomensagem de Natal de 1942, afirmou que entre as pretensões do positivismo jurídico, o direito que de o homem seja a instância máxima de legislação, “se deve incluir uma teoria que reivindica para uma determinada nação, raça ou classe o instituto jurídico, imperativo supremo e norma sem apelo... O anseio de uma ordem social nova e melhor, a humanidade o deve a centenas de milhares de pessoas que, sem culpa alguma, mas simplesmente porque pertencem a tal raça ou nacionalidade, estão destinadas à morte ou a um definhamento progressivo” (Acta Apostolica Sedis XXXV, 1943, 14.23).

Ainda hoje, essa forma de pensamento não está erradicada e se associa a outras não menos nocivas, dentre as quais o “apartheid”, que oprimiu e dizimou muitos negros sob o poder branco na África e gerou fortes desavenças também nos Estados Unidos; a perseguição a populações nativas de alguns países contra as quais se praticou ou se tenta praticar um verdadeiro genocídio; a limitação dos direitos de minorias à prática religiosa (lembremo-nos das perseguições aos cristãos em terras do Oriente); o etnocentrismo, prática que leva um povo a se autoafirmar, tentando menosprezar ou mesmo aniquilar o outro, ato que, infelizmente, acontece também em não poucas torcidas de futebol dentro de um mesmo país ou no confronto de uma nação para com a outra; populações que foram desinstaladas de seus terrenos e vivem, forçadamente, como nômades em outros locais ou, então, sofrem segregação dos antigos habitantes locais ao se mudarem de uma região para outra dentro do mesmo país ou para o estrangeiro, ou também a tentativa, já consumada, de se criarem cidadãos de primeira e segunda classe por meio de manipulações genéticas em laboratórios, separando os que merecem viver e os que não merecem devido às suas características físicas e psíquicas, pré-selecionadas, lamentavelmente, às vezes, pelos próprios pais.

Ora, após a apresentação desse quadro sombrio e o perigo, pensamos em atos mais ou menos contundentes e vergonhosos de racismo que possam ocorrer, de algum modo, na Copa do Mundo. Daí, importa saber que a Igreja defende a dignidade do gênero humano independentemente do país em que ele viva, da posição social, cultural ou de saúde que tenha. Ensina que todos fomos criados à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27) e, em Deus, há acolhida para com todos, conforme fez o Senhor Jesus (cf. Mt 25,38-40), e não distinções segregatórias (Gl 3,11.28), de modo a não haver mais discriminações devido à raça, nacionalidade ou sexo, haja vista que a mulher também foi marginalizada na história (cf. Lumen Gentium n. 1 e n. 32).

Contudo, a Igreja está ciente de que não é só com discursos que se caminha na eliminação do racismo, mas, sim, com o combate constante da fonte onde ele nasce e cresce, ou seja, no coração humano. É aí que devem ser fortalecidas as convicções de que é preciso respeitar as diferenças a fim de se viver em fraternidade que leva, necessariamente, à prática da solidariedade ou da ajuda ao outro, independentemente de quem seja ele.

No dia a dia, a Igreja pede disponibilidade para a ajuda mútua entre todos, a defesa das vítimas de racismo e a denúncia dessa prática desumana, a conscientização de que somos todos iguais em nossa dignidade humana, e isso deve ser ensinado na família, na escola ou nos meios de comunicação, defende a criação ou a manutenção de leis que se oponham ao menosprezo do próximo por razões raciais, além de estimular a elaboração de grandes documentos em nível internacional, nos meios civis e eclesiásticos, denunciando a prática das segregações raciais ou prevenindo-as.

Possam, pois, esses dados históricos e doutrinários levar-nos a entender que somos, apesar das diferenças acidentais, todos irmãos e devemos encontrar, como tem insistentemente lembrado nosso querido Papa Francisco, muito mais o que nos une para o diálogo do que aquilo que nos desune e pode levar a graves contendas.

Nesse contexto, em que pesem todas as manifestações legítimas contra os gastos com a construção de estádios para a Copa do Mundo em nosso país e as justas aspirações do povo brasileiro por maior transparência na administração pública, não se deve hostilizar os estrangeiros que aqui vêm, uma vez que não têm culpa de nossos problemas internos.

Façamos, pois, jus aos nossos dotes peculiares de sermos bons acolhedores dentro de nossa cordialidade, que faz caber nesta nação-continente, de modo harmonioso, uma parcela do mundo, e isso muito nos enriquece social e culturalmente.


Peçamos a Deus, por intercessão da Senhora Aparecida, Rainha e Padroeira do Brasil que, sem deixarmos de cobrar nossos direitos dos que realmente nos devem explicações, saibamos não misturar as coisas e acolhermos bem nossos visitantes, tendo presente a obra de misericórdia ensinada pelo Cristo Jesus: “Fui peregrino e me hospedastes” (Mt 25).


Cardeal Orani João Tempesta
Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ)

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