sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Salvação eterna de pessoas não-católicas


- "As pessoas que não são católicas vão para o inferno?" 
(Da Silva - Sorocaba-SP).

É tradicional dizer-se: “Fora da Igreja, não há salvação”. O axioma, à primeira vista, causa espanto a muitos, parecendo-lhes expressão de mentalidade estreita, pouco condizente com a Misericórdia de Deus. Devidamente entendida, porém, tal máxima desvenda um pouco da infinita Bondade do Criador.

Em análise sumária, a proposição acima quer dizer que não há salvação se não por meio do Cristo e da obra redentora de Cristo. Ora, Cristo vive através dos séculos e se prolonga na Igreja, de onde se segue que toda salvação se obtém por contato com a Igreja de Cristo. Esta dedução é assaz lógica: se o Filho de Deus se dignou tornar-se o Salvador dos homens, compreende-se que não haja graça que não seja graça de Cristo, outorgada através do “Corpo de Cristo que é a Igreja” (cf. Colossenses 1,29).

Dito isto, note-se que o indispensável contato com a Igreja de Cristo, longe de se estabelecer por uma só via, pode ser alcançado de diversas maneiras:

1) O modo mais óbvio é o da incorporação à Igreja mediante a recepção do batismo de água e dos demais sacramentos. A Igreja é, sim, uma sociedade visível (porque Cristo quis aparecer entre nós de forma sensível ou num corpo); é, pois, normal que os que a ela pertencem, manifestem por algum sinal exterior a sua pertinência à Igreja.

À categoria dos homens batizados se pode agregar a daqueles que, tendo tido conhecimento de Cristo e da sua Igreja, se preparam para receber o primeiro sacramento; estes (catecúmenos), embora ainda não tenham o batismo de água, já possuem o desejo do mesmo (ou o batismo de desejo), desejo explícito, professado, em virtude do qual se salvam.

Contudo, fora dos que assim demonstram de algum modo pertencer à Igreja, contam-se outros muitos indivíduos, destituídos de qualquer vínculo externo com a Esposa de Cristo. Não obstante, pertencem-lhe sem que o saibam e sem que, por sua vez, Ela o saiba.

2) Com efeito, há uma forma invisível de fazer parte do Corpo Místico de Cristo:

Deus, em seus sábios desígnios, não julgou necessário fazer que todos os homens que vêm a este mundo cheguem ao conhecimento explícito de Cristo (tal é o caso, entre outros, dos milhões de pagãos que viveram e vivem nas selvas sem ver um missionário). O Senhor também permite que muitos dos que ouvem falar de Cristo e da sua Igreja (seja em terras incultas, seja em nossos países civilizados), o ouçam de maneira incompleta, lacônica ou não adaptada à sua psicologia, de sorte que, mesmo depois de ouvir a pregação da Igreja, não experimentam o “problema religioso”, não lhes aflora à consciência o dever de receber o sacramento do batismo; repelindo a Igreja, podem até julgar estar repelindo o erro.

Contudo, nenhum desses homens é abandonado pela Providência. O verdadeiro e único Deus se lhes dá a conhecer de outro modo. E como?

No fundo de todo e qualquer individuo, faz-se ouvir um imperativo espontâneo: “Pratica o bem, evita o mal”. Este ditame supõe um Autor da Natureza humana capaz de lhe impor preceitos e sanção, pois tal imperativo antecede a deliberação do homem e o acompanha sempre, por muito que o indivíduo faça para o sufocar (excetuam-se apenas casos de extraordinário empedernimento voluntário). Assim, quem, chegando à idade da razão, toma consciência desse imperativo fundamental e generalíssimo (e não há quem não o faça), toma ao mesmo tempo consciência, mais ou menos confusa, mais ou menos clara, de que Deus existe e é Remunerador dos que O temem. Ora, a afirmação destas duas proposições é suficiente para a salvação eterna, pois nelas se acha compendiada toda a doutrina revelada (cf. Hebreus 11,6). Se, pois, alguém com toda a boa fé segue a sua consciência, praticando tudo que esta lhe indica como “bem” e evitando tudo que ela aponta como “mal”, tal pessoa está seguindo a Deus; por conseguinte, vai-se aproximando do único Deus e da bem-aventurança sobrenatural. Para uns, o ditame básico “Faze o bem, evita o mal” significará talvez seguir tudo que, em doutrina e moral, é ensinado pelo Budismo; para outros, significará seguir o Islamismo; para terceiros, o Protestantismo ou o Espiritismo etc. Se, porém, cada um dos adeptos desses credos, aderir com fidelidade e consciência absolutamente tranquila à sua religião, ele se encaminhará para o verdadeiro Deus. É Este mesmo que se lhes dá a conhecer e os chama por via daquela ideologia que em plena boa fé eles julgam ser verídica.

Diz-se então que tais pessoas possuem o batismo de desejo não explícito, mas implícito, pois, dotadas como se acham de sinceridade na procura de Deus, se viessem a saber que o Senhor fez do batismo sacramental e da pertinência à Igreja visível a via normal para chegar ao Criador, não hesitariam em pedir o sacramento.

Repitamos, pois: se alguém, aderindo a uma ideologia não-católica, reconhece que Deus existe e é providente, pode salvar-se, caso não tenha dúvida nenhuma sobre a veracidade de sua religião e pratique fielmente tudo o que esta manda.

Não seria demasiado, porém, frisar que, para conseguir em tais casos a vida eterna, é absolutamente necessário esteja a pessoa de boa fé, pois, desde que conceba alguma suspeita sobre a sua religião, não somente Deus, mas também a dignidade humana, exige que tal indivíduo procure sair da hesitação, investigando a verdade; o homem, dotado de inteligência, é por sua natureza mesma movido a procurar em tudo a clareza; não lhe será licito, portanto, em matéria religiosa deixar-se ficar voluntariamente na penumbra ou nas trevas.

É assim que se entende que muitos e muitos indivíduos, embora não professem adesão à Igreja, a esta pertençam e por esta se salvem. Diz-se comumente que "fazem parte não do corpo, mas da alma da Igreja" — distinção pouco feliz, pois corpo e alma de um vivente são inseparáveis um do outro; fale-se, antes, de "pertinência visível e invisível à Igreja".

De quanto foi dito, seria totalmente falso deduzir que todas as religiões são boas... O homem foi feito para viver não somente da boa fé, mas da verdadeira fé, pois a apreensão da verdade é a primeira das exigências de sua natureza intelectiva (a luz necessária para se praticar o bem é a verdade). Ora, a verdadeira fé só pode ser uma: será aquela que Deus mesmo se dignou revelar pelo monoteísmo judaico-cristão, que continua o monoteísmo primitivo da humanidade e se encontra na Igreja Católica, ininterruptamente apregoado desde Cristo e os Apóstolos.

É normal, portanto, que o homem procure viver de boa fé dentro da verdadeira fé. A boa fé só supre a verdadeira fé, caso as pesquisas em demanda desta não sejam possíveis ao homem, por bem intencionado que esteja. Consciente disto, a Santa Igreja, tendo recebido de Cristo a ordem formal de ensinar a todos os povos (cf. Mateus 28,19-20), nutre continuamente o zelo de seus missionários.

Tais concepções foram ainda afirmadas pela Sagrada Congregação do Santo Ofício, em 8 de agosto de 1949. O ensejo disto foi o movimento excitado por duas entidades norte-americanas — o “St. Benedict Center” e o “Boston College” — em favor de uma interpretação mais estreita e rigorista do axioma “Fora da Igreja, não há salvação”.



D. Estêvão Tavares Bettencourt
Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 1 - jan/1958

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