quarta-feira, 28 de setembro de 2016

O que ensina a Igreja Católica sobre o pecado original?


Navegando recentemente em algumas redes sociais, por acaso deparei-me com um grupo de formação católica que discutia sobre a doutrina da Imaculada Conceição, e que por sua vez acabou caindo no tema do pecado original. O que me deixou preocupado não foi apenas ter encontrado um participante expondo ideias equivocadas, mas também perceber que a grande maioria dos participantes dessa comunidade não sabia distinguir os erros que eram apresentados nessas exposições.

Entre algumas expressões preocupantes que li estavam aquelas que assumiam que o pecado original é apenas uma "concepção latina", uma "tese agostiniana", ou que os "latinos" creem que o pecado original "foi herdado" mas que isso não queria dizer que toda a Cristandade assim acreditava também; portanto, "a concepção latina não pode ser imposta a toda confissão cristã, já que a tese agostiniana é alheia ao mundo ortodoxo".

O erro mais grave em toda essa argumentação era, talvez, assumir que a doutrina do pecado original é apenas "uma concepção latina". Não estamos falando de uma mera "tese agostiniana", mas de um dogma de fé, para o qual a "Donum Veritatis" ensina (nº 22):

- "Quando o Magistério da Igreja se pronuncia de modo infalível, declarando solenemente que uma doutrina encontra-se contida na Revelação, a adesão que se requer é a da fé teologal. Esta adesão estende-se ao ensinamento do Magistério ordinário e universal quando este propõe para crer uma doutrina de fé como sendo de Revelação divina".

Referidos dogmas de fé são verdades reveladas não a um rito em particular, mas à Igreja Universal, que é católica, porque ainda que na Igreja existam mais de 20 ritos, não apenas os latinos, mas também os orientais (bizantinos, antioquenos e alexandrinos), todos, em comunhão plena com a Sé Apostólica e com o Papa, todos e cada um dos cristãos, de qualquer rito que seja, devem abraçar com fé divina e católica cada um desses dogmas; e isso inclui a doutrina do pecado original.

As igrejas ortodoxas, ainda que na verdade sejam igrejas particulares, não estão em plena comunhão com a Sé Apostólica. Os cristãos dessas igrejas possuem a obrigação moral de abraçar a verdadeira religião, que é a Católica, e suas igrejas particulares devem retornar à plena comunhão com ela. Devemos ainda dizer que o fato de seu desenvolvimento teológico teR se paralisado em razão do cisma do Oriente e não professarem adesão a todos os dogmas da fé católica nem aos últimos Concílios Ecumênicos, isto não faz com que os dogmas sejam verdades menos reveladas; e o mesmo se diga acerca do fato de existirem outros cristãos que não os professem.

Para deixar claro qual é a doutrina católica a respeito do tema do pecado original, quero compartilhar um extrato do "Manual de Teologia Dogmática", de Ludwig Ott, págs. 180 a 191. Espero que seja útil para eles:

O HOMEM E A SUA QUEDA

§20. O pecado pessoal dos nossos primeiros Pais ou pecado original originante

1. O ato pecaminoso

Nossos primeiros pais pecaram gravemente no Paraíso, transgredindo o preceito divino que Deus lhes havia imposto para provar-lhes (de fé, por ser doutrina do Magistério ordinário e universal da Igreja).

O Concílio de Trento ensina que Adão perdeu a justiça e a santidade por transgredir o preceito divino (Dz 788). Como a magnitude do castigo tem por norma a magnitude da culpa, por um castigo tão grave se percebe que o pecado de Adão também foi grave ou mortal.

A Sagrada Escritura faz referência, em Gênesis 2,17 e 3,1ss, ao pecado dos nossos primeiros pais. Como o pecado de Adão constitui a base dos dogmas do pecado original e da redenção do gênero humano, devem ser admitidos, em seus pontos essenciais, a historicidade do relato bíblico. Segundo a resposta da Comissão Bíblica, datada do ano de 1909, não é lícito duvidar do sentido literal e histórico acerca dos fatos que mencionamos a seguir:

a) Que ao primeiro homem foi imposto um preceito por Deus a fim de provar a sua obediência;

b) Que transgrediu este preceito divino por insinuação do diabo, apresentado sob a forma de uma serpente;

c) Que nossos primeiros pais se viram privados do primitivo estado de inocência (Dz 2123).

Os livros mais recentes da Sagrada Escritura confirmam este sentido literal e histórico: "Pela mulher teve princípio o pecado e por ela todos morremos" (Eclesiástico 25,33); "Pela inveja do diabo, a morte entrou no mundo" (Sabedoria 2,24); "Porém, eu temo que, assim como a serpente enganou Eva com sua astúcia, também corrompa os vossos pensamentos, afastando-os da sincera entrega a Cristo" (2Coríntios 2,3); cf. 1Timóteo 2,14; Romanos 5,12ss; João 8,44. Devem ser descartadas a interpretação mitológica e a puramente alegórica (dos alexandrinos).

O pecado dos nossos primeiros pais foi, em sua índole moral, um pecado de desobediência; cf. Romanos 5,19: "Pela desobediência de um, muitos foram feitos pecadores". A raiz de tal desobediência foi a soberba; cf. Tobias 4,14: "Toda perdição tem o seu princípio no orgulho"; Eclesiástico 10,15: "O princípio de todo pecado é a soberba". O contexto bíblico descarta a hipótese de que o pecado fôra de índole sexual, como sustentaram Clemente Alexandrino e Santo Ambrósio. A gravidade do pecado resulta do objetivo que o preceito divino buscava e das circunstâncias que o rodeavam. Santo Agostinho considera o pecado de Adão como "inefavelmente grande" (="ineffabiliter grande peccatum"; Op. Imperf. c. Jul. 1,105).

2. As consequências do pecado

a) Os protopais perderam, pelo pecado, a graça santificante e atraíram sobre si a cólera e a raiva de Deus (de fé; Dz 788)

A Sagrada Escritura nos aponta a perda da graça santificante ao apontar que nossos primeiros pais foram excluídos da relação familiar que tinham com Deus; Gênesis 3,10.23. Deus Se apresenta como juiz e lança contra eles o veredito condenatório; Gênesis 3,16ss.

O desagrado divino finalmente se traduz na reprovação eterna. De fato, Taciano ensinou que Adão perdeu a salvação eterna. Santo Ireneu (Adv. Haer. 3,23,8), Tertuliano (De Poenit. 12) e Santo Hipólito (Philos. 8,16) distanciavam-se dessa teoria. Segundo afirmam, é doutrina universal de todos os Padres, baseada em uma passagem do livro da Sabedoria (10,2: "ela (=a Sabedoria) o salvou em sua queda"), que os nossos primeiros pais fizeram penitência e, "pelo Sangue do Senhor", viram-se salvos da perdição eterna; cf. Santo Agostinho, De Peccat. Mer. et Rem 2,34,55.

b) Os Protopais ficaram sujeitos à morte e ao senhorio do diabo (de fé; Dz 788)

A morte e todo o mal a ela relacionado têm a sua raiz na perda dos dons de integridade. Segundo Gênesis 3,16ss, como castigo pelo pecado Deus nos impôs os sofrimentos e a morte. O senhorio do diabo é indicado em Gênesis 3,15 e expressamente ensinado em João 12,31; 14,30; 2Coríntios 4,4; Hebreus 2,14; 2Pedro 2,19.

§21. Existência do Pecado Original

1. Doutrinas heréticas contraditórias

O pecado original foi indiretamente negado pelos gnósticos e maniqueus, que atribuíam a corrupção moral do homem a um princípio eterno do mal: a matéria. Também o negavam indiretamente os origenistas e priscilianistas, os quais explicavam a inclinação do homem para o mal em razão de um pecado cometido pela alma antes da sua união com o corpo.

Os pelagianos negaram diretamente a doutrina do pecado original, ensinando que:

a) O pecado de Adão não se transmitia por herança aos seus descendentes, mas que estes imitavam o mau exemplo daquele ("imitatione, non propagatione").

b) A morte, os sofrimentos e a concupiscência não são castigos pelo pecado, mas efeitos do estado de natureza pura.

c) O batismo das crianças não se administra para a remissão dos pecados, mas para que estas sejam recebidas na comunidade da Igreja e alcancem o "reino dos céus" (que é um grau de felicidade superior ao "da vida eterna").

A heresia pelagiana foi combatida principalmente por Santo Agostinho e condenada pelo Magistério da Igreja nos sínodos de Mileve (416), Cartago (418), Orange (529) e, mais recentemente, pelo Concílio de Trento (1546); Dz 102, 174s; 787ss.

O pelagianismo sobreviveu no racionalismo desde a Idade Moderna até os tempos atuais (socinianismo, racionalismo do tempo da "Ilustração", teologia protestante liberal, incredulidade moderna).

Na Idade Média, o sínodo de Sens (1141) condenou a seguinte proposição de Pedro Abelardo: "Quod non contraximus culpam ex Adam, sed poenam tantum" (Dz 376).

Os reformadores, baianistas e jansenistas conservaram a crença no pecado original, porém desfiguraram a sua essência e os seus efeitos, fazendo-o consistir na concupiscência e considerando-o como uma total corrupção da natureza humana (cf. Conf. Aug., art. 2).

2. Doutrina da Igreja

O pecado de Adão se propaga a todos os seus descendentes por geração, não por imitação (de fé).

A doutrina da Igreja sobre o pecado original acha-se contida no "Decretum super peccato originali", do Concílio de Trento (Sess. V, 1546), que às vezes segue literalmente as definições dos sínodos de Cartago e Orange. O Tridentino condena a doutrina de que Adão perdeu apenas para si e não também para nós a justiça e santidade que havia recebido de Deus; e [condena] aquela outra [doutrina] de que Adão transmitiu aos seus descendentes apenas a morte e os sofrimentos corporais, mas não a culpa do pecado. Ensina positivamente que o pecado, que é a morte da alma, se propaga de Adão para todos os seus descendentes por geração e não por imitação; e que é inerente a cada indivíduo. Tal pecado é apagado pelos méritos da redenção de Jesus Cristo, os quais se aplicam ordinariamente tanto aos adultos quanto às crianças através do sacramento do Batismo. Por isso, até mesmo as crianças recém-nascidas recebem o batismo para a remissão dos pecados (Dz 789-791).

3. Prova obtida das fontes de Revelação

a) Prova da Escritura

O Antigo Testamento somente contém insinuações sobre o pecado original; cf. particularmente o Salmo 50,7: "Eis que nasci na culpa e em pecado me concebeu a minha mãe"; Jó 14,4 (segundo a Vulgata): "Quem poderá nascer puro se foi concebido de uma semente imunda?" (Massorético: "Quem poderá fazer de um imundo uma pessoa limpa?"). Em ambos os lugares fala-se de uma pecaminosidade inata ao homem, quer se entenda no sentido de pecado habitual, quer no de mera inclinação ao pecado, porém sem relacioná-la causalmente ao pecado de Adão. Porém, o Antigo Testamento claramente conheceu o nexo causal que existe entre a morte de todos os homens e o pecado dos nossos primeiros pais (a herança da morte); cf. Eclesiástico 25,33; Sabedoria 2,24. A prova clássica da Escritura é a de Romanos 5,12-21. Nesta passagem, o Apóstolo estabelece um paralelo entre o primeiro Adão - que transmitiu o pecado e a morte a todos os homens - e Cristo - o segundo Adão, que difundiu sobre todos a justiça e a vida; versículo 12: "Assim, portanto, por um homem o pecado entrou no mundo; e, pelo pecado, a morte; e assim a morte passou para todos os homens, já que todos haviam pecado (='in quo omnes peccaverunt')"... Versículo 19: "Portanto, como pela desobediência de um muitos foram feitos pecadores, assim também pela obediência de um muitos serão feitos justos".

α) O vocábulo "pecado" (tomado aqui no seu sentido mais amplo e personificado) engloba também o pecado original. Pretende-se expressar a culpa do pecado, não as suas consequências. Faz-se distinção explícita entre o pecado e a morte, a qual é considerada como consequência do pecado. Resta bem claro que São Paulo, ao falar do pecado, não se refere à concupiscência porque, segundo ele (versículo 18s), nos vemos livres do pecado pela graça redentora de Cristo, de modo que a experiência nos diz que, apesar de tudo, a concupiscência continua em nós.

β) As palavras "in quo" (versículo 12d) foram interpretadas em sentido relativo por Santo Agostinho e por toda a Idade Média, fazendo referência a "unum hominem": "Por um homem... no qual todos pecaram". Desde Erasmo de Roterdã foi se impondo cada vez mais a interpretação conjuncional, muito melhor fundada linguisticamente e que já foi sustentada por numerosos Santos Padres, sobretudo gregos: "já que todos temos pecado" ou "visto que todos temos pecado" (ver as passagens paralelas de 2Coríntios 5,4; Filipenses 3,12; 4,10; Romanos 8,3). Como aqueles que não têm pecados pessoais também morrem (as crianças que não fazem uso da razão), a causa da morte corporal não pode ser nenhuma culpa pessoal, mas a culpa herdada de Adão. Cf. os versículos 13s e 19, onde se diz expressamente que o pecado de Adão é a razão de que muitos foram feitos pecadores. A interpretação conjuncional, que hoje é a que encontra aceitação geral, coincide com a ideia da interpretação de Santo Agostinho: "Todos pecaram em Adão e por causa disto todos morrem".

ϒ) As palavras "Muitos foram feitos pecadores" (versículo 19a) não restringem a universalidade do pecado original, pois a expressão "muitos" (em contraste com um só Adão ou com um só Cristo) é paralela a "todos", empregada nos versículos 12d e 18a.

b) Prova da Tradição

Santo Agostinho invoca contra o bispo pelagiano Juliano de Eclana a Tradição eclesiástica: "Não fui eu que inventei o pecado original, pois a Fé Católica crê nele desde a antiguidade; mas tu, que o negas, és, sem dúvida, um novo herege" (De Nupt. et Concup. 11 12, 25). Santo Agostinho, na sua obra Contra Iulianum (1,1.11) apresenta desde logo uma verdadeira prova da Tradição citando Ireneu, Cipriano, Retício de Autún, Olímpio, Hilário, Ambrósio, Inocêncio I, Gregório de Nanzianzo, João Crisóstomo, Basílio e Jerônimo como testemunhas da doutrina católica. Muitas expressões dos Padres gregos, que parecem insistir bastante que o pecado é uma culpa pessoal e que parecem prescindir totalmente do pecado original, são facilmente entendidas se considerarmos que foram escritas para combater o dualismo dos gnósticos e maniqueus, e contra o preexistencialismo origenista. Santo Agostinho desde logo defendeu a doutrina de Crisóstomo para preservá-la das deturpadas interpretações dadas pelos pelagianos: "vobis nondum litigantibus securius loquebatur" (Contra Iul. 1,6,22).

Uma prova positiva e que não admite contestação de quão convencida a Igreja Primitiva estava da realidade do pecado original é a prática de batizar as crianças "para a remissão dos pecados" (cf. São Cipriano, Ep. 64,5).

4. O dogma e a razão

A razão natural não é capaz de apresentar um argumento contundente a favor da existência do pecado original, mas unicamente o infere por probabilidade, com base em certos indícios: "Peccati originalis in humano genere probabiliter quaedam signa apparent" (S.C.G. IV,52). Tais indícios são as espantosas aberrações morais da humanidade e a apostasia da fé no verdadeiro Deus (politeísmo, ateísmo).

§22. Essência do pecado original

1. Opiniões errôneas

a) O pecado original, contra o que pensava Pedro Abelardo, não consiste na dívida da pena eterna, isto é, no castigo condenatório a que os descendentes de Adão teriam herdado deste, que era a cabeça do gênero humano (pena original e não culpa original). Segundo a doutrina do Concílio de Trento, o pecado original é verdadeiro e estrito pecado, isto é, dívida da culpa (cf. Dz 376, 789, 792). São Paulo nos fala de verdadeiro pecado; Romanos 5,12: "...porquanto todos temos pecado" (cf. Romanos 5,19).

b) O pecado original, contra o que ensinaram os reformadores, baianistas e jansenistas, não consiste tampouco na má concupiscência habitual (isto é, na habitual inclinação para o pecado), que persistiria ainda nos batizados como verdadeiro e estrito pecado, ainda que neste caso não se lhes sejam imputados os efeitos do castigo. O Concílio de Trento ensina que pelo sacramento do Batismo é apagado tudo o que é verdadeiro e estrito pecado e que a concupiscência (que permanece após o batismo como prova moral) apenas pode ser considerada como pecado em sentido impróprio (Dz 792).

É incompatível com a doutrina de São Paulo (que considerava a justificação como uma transformação e renovação internas) aquela [doutrina] em que o pecado permanece no homem, ainda que não lhe sejam imputados os efeitos do castigo. Quem foi justificado encontra-se livre do perigo da reprovação porque tem distante de si a razão da reprovação, que é o pecado; Romanos 8,1: "Portanto, já não há condenação alguma para os que são de Cristo Jesus".

Como a natureza humana é composta por corpo e espírito, a concupiscência existiria também no estado de natureza pura como um mal natural e, portanto, não pode ser por si mesma considerada como pecaminosa, porque Deus fez tudo bom (Dz 428).

c) O pecado original, contra o que ensinaram Alberto Pighio (†1542) e Ambrósio Catarino, OP (†1553), não consiste em uma imputação meramente extrínseca do pecado atual de Adão (teoria da imputação). Segundo a doutrina do Concílio de Trento, o pecado de Adão se propaga por herança a todos os seus descendentes e é inerente a cada um deles como pecado próprio seu: "propagatione, non imitatione transfusum ómnibus, inest unicuique proprium" (Dz 790); cf. Dz 795: "propriam iniustitiam contrahunt". O efeito do Batismo, segundo a doutrina do mesmo Concílio, é realmente apagar o pecado e não obter tão somente que não nos seja imputada uma culpa estranha (Dz 792; cf. 5, 12 e 19).

2. Solução positiva

O pecado original consiste no estado de privação da graça que, por ter sua causa no voluntário pecado atual de Adão, cabeça do gênero humano, é culpável (sentido comum).

a) O Concílio de Trento chama o pecado original de "morte da alma" (="mors animae"; Dz 789). A morte da alma é a falta da vida sobrenatural, isto é, da graça santificante. No Batismo o pecado original é apagado através da infusão da graça santificante (Dz 792). Disto se segue que o pecado original é um estado de privação da graça. Isto mesmo se deduz do paralelo que São Paulo estabelece entre o pecado que procede de Adão e a justiça que procede de Cristo (Romanos 5,19). Como a justiça que Cristo nos confere consiste formalmente na graça santificante (Dz 799), o pecado herdado de Adão consistirá formalmente na falta dessa graça santificante. E a falta dessa graça, que por vontade de Deus tinha que haver na alma, tem caráter de culpa, já que se trata do distanciamento de Deus.

Como o conceito de pecado em sentido formal inclui o ser voluntário (="ratio voluntarii), isto é, a incorrência voluntária no mesmo, e as crianças, antes de chegar ao uso da razão, não podem praticar atos voluntários pessoais, deve-se explicar, portanto, que a nota de voluntariedade no pecado original tem conexão com o voluntário pecado atual de Adão. Adão era o representante de todo o gênero humano. Da sua livre decisão dependia que se conservassem ou se perdessem os dons sobrenaturais que não foram concedidos pessoalmente a ele, mas a toda a natureza humana; dons que, pela voluntária transgressão de Adão ao preceito divino, foram perdidos não somente por ele, mas também para toda a linhagem humana que se formaria da sua descendência.

Pio V condenou a proposição de Baio que afirmava que o pecado original possui em si mesmo o caráter de pecado sem relação alguma com a vontade da qual teve origem o referido pecado (Dz 1047). Cf. Santo Agostinho, Retract. 1,12(13),5; [São Tomás de Aquino], S.th. 1,2,81,1.

b) Segundo a doutrina de São Tomás, o pecado original consiste formalmente na ausência da justiça original e, materialmente, na concupiscência desordenada. São Tomás distingue em todo pecado um elemento formal e outro material, o distanciamento de Deus (="aversio a Deo") e a conversão à criatura (="conversio ad creaturam"). Como a conversão à criatura se manifesta principalmente na má concupiscência, São Tomás, juntamente com Santo Agostinho, enxerga na concupiscência - a qual é em si mesma uma consequência do pecado original -, o elemento material do referido pecado: "peccatum originale materialiter quidem est concupiscentia, formaliter vero est defectus originalis iustitiae" (S.th. 1,11,82,3). Essa doutrina de São Tomás encontra-se em parte sob a influência de Santo Anselmo de Canterbury, que coloca a essência do pecado original exclusivamente na privação da justiça primitiva e, em outra parte, sob a influência de Santo Agostinho, o qual define o pecado original como a concupiscência com sua dívida de culpa (="concupiscentia cum suo reatu") e comenta que a dívida de culpa é eliminada pelo Batismo, enquanto que a concupiscência continua em nós como um mal, não como um pecado, para nos fazer exercitar na luta moral (="ad agonem"); cf. Op. Imperf. c. Jul. 1,71.

A maioria dos teólogos pós-tridentinos não considera a concupiscência como elemento constitutivo do pecado original, mas como consequência do mesmo.

§23. Propagação do pecado original

O pecado original se propaga por geração natural (de fé).

O Concílio de Trento diz: "propagatione, non imitatione transfusum omnibus" (Dz 790). Ao batizar uma criança, resta apagado pela regeneração aquilo que havia incorrido pela geração (Dz 791).

Como o pecado original é "peccatum naturae", propaga-se do mesmo modo que a natureza humana: pelo ato natural da geração. Mesmo quando tal pecado em sua origem seja apenas um (Dz 790) - a saber, o pecado do nosso primeiro pai (o pecado de Eva não é a causa do pecado original) - multiplica-se tantas vezes quantas ocorrer a geração de um novo filho de Adão. Em cada geração se transmite a natureza humana desnudada da graça original.

A causa principal ("causa efficiens principalis") do pecado original é apenas o pecado de Adão. A causa instrumental (="causa efficiens instrumentalis") é o ato natural da geração, pelo qual se estabelece a conexão moral do indivíduo com Adão, cabeça do gênero humano. A concupiscência atual vinculada ao ato gerador (o prazer sexual, a libido), contra o que opina Santo Agostinho (De nuptiis et concup. 1,23,25; 1,24,27), não é causa eficiente nem condição indispensável para a propagação do pecado original. Nada mais é que um fenômeno concomitante do ato gerador, ato que, considerado em si mesmo, não é senão a causa instrumental da propagação do pecado original (cf. S.th. 1,2,82,4 ad 3).

Objeções: Da doutrina católica sobre a transmissão do pecado original não se segue - como garantiam os pelagianos - que Deus seja a causa do pecado. A alma que Deus cria é boa, considerada no seu aspecto natural. O estado de pecado original significa a falta de uma excelência sobrenatural para a qual a criatura não pode apresentar título algum. Portanto, Deus não está obrigado a criar a alma com o ornamento sobrenatural da graça santificante. Ademais, Deus não tem culpa de que se recusem os dons sobrenaturais à alma que acaba de ser criada; a culpa disto foi do homem, que fez mal uso da sua liberdade. Da doutrina católica não se segue tampouco que o matrimônio em si seja algo mau. O ato conjugal da procriação é em si bom, porque objetivamente (isto é, segundo a sua finalidade natural) e subjetivamente (isto é, segundo a intenção dos progenitores) tende a alcançar um bem, que é a propagação do gênero humano, conforme a ordem de Deus.

§24. Consequências do pecado original

Os teólogo escolásticos, inspirando-se em Lucas 10,30, resumiram as consequências do pecado original no seguinte axioma: O homem foi, pelo pecado de Adão, despojado dos seus bens sobrenaturais e ferido nos bens naturais ("spoliatus gratuitis, vulneratus in naturalibus"). Tenha-se em conta que o conceito de "gratuita de ordinario" estende-se apenas aos dons absolutamente sobrenaturais e que no conceito de "naturalia" se inclui o dom da integridade de que estavam dotadas as disposições e forças naturais do homem antes da Queda (="naturalia integra"); cf. São Tomas, Sent. 2,29,1,2; S.th. 1,2,85,1.

1. Perda dos dons sobrenaturais

No estado de pecado original, o homem encontra-se privado da graça santificante e de todas as suas sequelas, assim como também dos dons preternaturais de integridade (de fé no que diz respeito à graça santificante e ao dom da imortalidade; Dz 788s).

A falta da graça santificante, considerada como decorrência de o homem ter se afastado de Deus, tem caráter de culpa; considerada como decorrência de Deus ter se afastado do homem, tem caráter de castigo. A falta dos dons de integridade traz como consequência que o homem se encontre submetido à concupiscência, aos sofrimentos e à morte. Tais consequências persistem ainda depois de o pecado original ter sido apagado [pelo Batismo], mas a partir daí já não são consideradas como castigo, mas como penalidades, isto é, como meios para se praticar a virtude e oferecer prova da própria moralidade. Aquele que se encontra no pecado original está na servidão e sob cativeiro do demônio, a quem Jesus chamou de "príncipe deste mundo" (João 12,31; 14,30); e São Paulo o chama de "deus deste mundo" (2Coríntios 4,4); cf. Hebreus 2,14; 2Pedro 2,19.

2. Vulnerabilidade da natureza

A ferida que o pecado original abriu na natureza não deve ser concebida como uma total corrupção da natureza humana, como pensam os reformadores e jansenistas. O homem, ainda que se encontre no estado de pecado original, continua possuindo a faculdade para conhecer as verdades religiosas naturais e realizar ações moralmente boas na ordem natural. O Concílio do Vaticano ensina que o homem pode conhecer com certeza a existência de Deus apenas com as forças da sua razão natural (Dz 1785, 1806). O Concílio Tridentino ensina que pelo pecado de Adão o livre arbítrio não foi perdido nem se extinguiu (Dz 815).

A ferida aberta na natureza interessa ao corpo e à alma. O Concílio de Orange II (529) declarou: "totum, i. e. secundum corpus et animam, in deterius hominem commutatum (esse)" (Dz 174; cf. Dz 181, 199, 793). Além da sensibilidade ao sofrimento (="passibilitas" e da sujeição à morte (="mortalitas") - as duas feridas que afetam o corpo - os teólogos, seguindo São Tomás (S.th. 1,2,85,3), enumeram quatro feridas da alma, opostas respectivamente às quatro virtudes cardeais:

a) A ignorância - isto é, a dificuldade para conhecer a verdade (opõe-se à prudência);

b) A malícia - isto é, a debilidade da nossa vontade (opõe-se à justiça);

c) A fragilidade (="infirmitas") - isto é, a covardia diante das dificuldades que encontramos para tender ao bem (opõe-se à fortaleza);

d) A concupiscência em sentido estrito - isto é, o apetite desordenado para satisfazer aos sentidos que são contrários às normas da razão (opõe-se à temperança).

A ferida do corpo tem o seu fundamento na perda dos dons preternaturais da impassibilidade e imortalidade; a ferida da alma, na perda do dom preternatural da imunidade da concupiscência.

É objeto de controvérsia se a ferida aberta na natureza consiste exclusivamente na perda dos dons preternaturais ou se a natureza humana sofre também, de modo acidental, de uma debilidade intrínseca. Os que seguem a primeira sentença (São Tomás e a maior parte dos teólogos) afirmam que a natureza foi ferida apenas relativamente, isto é, se quando comparada com o estado primitivo de justiça original. Os defensores da segunda sentença concebem a ferida da natureza em sentido absoluto, isto é, como situação inferior em relação ao estado de natureza pura.

Conforme a primeira sentença, em relação ao homem em estado de natureza pura, o homem em pecado original é uma pessoa que foi despojada das suas vestes (desnudada) enquanto que aquele é uma pessoa que nunca se cobriu com quaisquer vestes (desnuda; "nudatus ad nudum"). Conforme a segunda sentença, a relação que existe entre ambos é como aquela que existe entre um doente e uma pessoa sã ("aegrotus ad samtm").

Sem dúvida, deve-se preferir a primeira opinião, pois o pecado atual de Adão - uma ação singular - não pôde criar na sua própria natureza, nem na dos seus descendentes, qualquer mau hábito, e, portanto, nem a consequente debilitação das forças naturais (cf. S.th. 1,2,85,1). Porém, deve-se conceder que a natureza humana decaída, pelos extravios dos indivíduos e das coletividades, tem experimentado certa corrupção ulterior, de modo que se encontra atualmente em uma situação concreta inferior à do estado de natureza pura.

§25. A sorte das crianças que morrem em pecado original

As almas que deixam esta vida em estado de pecado original estão excluídas da visão beatífica de Deus (de fé).

O Concílio Ecumênico de Lião II (1274) e o Concílio de Florença (1438-45) declararam: "Illorum animas, qui in actuali mortali peccato vel solo originali decedunt, mox in infernum descenderé, poenis tamen disparibus puniendas" (Dz 464,693; cf. 493a).

Este dogma fundamenta-se nas palavras do Senhor: "Se alguém não renascer da água e do Espírito Santo [através do Batismo], não poderá entrar no reino dos céus" (João 3,5).

Todavia, os que não chegaram ao uso da razão podem obter a regeneração de maneira extra-sacramental graças ao batismo de sangue (recorde-se a matança dos Santos Inocentes). Em atenção à vontade universal salvífica de Deus (1Timóteo 2,4), muitos teólogos modernos, especialmente os contemporâneos, admitem substitutos do Batismo para as crianças que morrem sem o Batismo sacramental, tais como as orações e o desejo dos pais ou da Igreja (batismo de desejo representativo, cf. Caetano); ou a concessão do uso da razão no momento da morte, de forma que a criança agonizante possa decidir-se a favor ou contra Deus (batismo de desejo, cf. H. Klee); ou que os sofrimentos e a morte da criança sirvam como um quase-sacramento (batismo de dor, cf. H. Schell). Estes e outros substitutos para o Batismo são certamente possíveis, mas nada se pode provar pelas fontes de Revelação sobre a existência dos mesmos (cf. Dz 712; AAS 50 [1958], 114).

Os teólogos, ao falar das penas do inferno, fazem distinção entre pena de dano (que consiste na exclusão da visão beatífica) e pena de sentido (produzida por meios extrínsecos e que, após a ressurreição do corpo, será experimentada também pelos sentidos). Enquanto Santo Agostinho e muitos Padres latinos opinam que as crianças que morrem em pecado original devem suportar também uma pena de sentido, ainda que bastante benigna ("mitissima omnium poena"; Enchir. 93), os Padres gregos (p.ex., São Gregório de Nanzianzo, Or. 40,23) e a maioria dos teólogos escolásticos e modernos ensinam que não sofrem nada além da pena de dano. Em favor desta doutrina está a explicação do Papa Inocêncio III: "Poena originalis peccati est carencia visionis Dei (poena damni), actualis vero poena peccati est gehennae perpetuae cruciatus (poena sensus)" (Dz 410). Um estado de felicidade natural é, com efeito, compatível com a pena de dano (cf. São Tomás, De malo, Sent. 2,33,2,2).

Os teólogos costumam a admitir que existe um lugar especial para onde vão as crianças que morrem sem o Batismo, ao qual dão o nome de "limbo das crianças". Pio VI defendeu esta doutrina diante da interpretação pelagiana dos jansenistas, que falsamente queriam explicá-lo como um estado intermediário entre a condenação e o reino de Deus (Dz 1526).
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Fonte: InfoCatólica
Tradução: Carlos Martins Nabeto

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