Nos domingos depois da Páscoa, a liturgia nos põe em contato com a
primeira comunidade cristã. As primeiras leituras são uma sequência de leituras
tomadas dos Atos dos Apóstolos. Nas leituras do evangelho, é-nos apresentada a
“suma teológica” do século I, o Evangelho de João. As segundas leituras são
tomadas de outros escritos muito significativos quanto aos temas batismais e da
fé; no ano A, a primeira carta de Pedro.
O segundo domingo pascal, especificamente, é marcado pelo tema da fé batismal. É o antigo domingo in albis (“em vestes
brancas”). Nesse domingo, os neófitos (os novos fiéis, literalmente “brotos
novos”), batizados na noite pascal, apresentavam-se vestidos com a veste branca
que receberam na noite de seu batismo: são “como crianças recém-nascidas” (como
se dizia no canto da entrada). A oração do dia pede que progridamos na
compreensão dos mistérios básicos da nossa fé, os “sacramentos da iniciação
cristã” — batismo, eucaristia e confirmação —, e a oração depois da comunhão
reza por mais profundo entendimento do mistério da ressurreição e do batismo.
Quanto às leituras, embora não exista estrita coerência temática entre as três,
todas elas nos fazem participar do espírito do mistério pascal.
Comentário dos textos bíblicos
I leitura (At 2,42-47)
A primeira leitura nos apresenta
o ideal da comunidade cristã: a comunidade primitiva dos cristãos de Jerusalém.
A descrição de At 2,42-47 acentua especialmente a comunhão dos bens, que
corresponde ao sentido do partir o pão — comemoração do Senhor Jesus. Outros
textos semelhantes sobre a vida da comunidade encontram-se em At 3,32-37 e
5,12-16. Tanto essa comunhão perfeita como os prodígios operados pelos
apóstolos serviam de testemunho para os demais habitantes de Jerusalém,
testemunho que não deixava de ter sua eficácia. Essa leitura é, portanto, mais
do que um documento histórico sobre os primeiros tempos depois da Páscoa: é
convite para restabelecermos a pureza cristã das origens.
II leitura (1Pd 1,3-9)
A segunda leitura é tomada da
primeira carta de Pedro, que é uma espécie de homilia batismal. Na perspectiva
de seu autor, a volta gloriosa do Senhor estava próxima; os cristãos deviam
passar por um tempo de prova, como ouro na fornalha, para depois brilhar com
Cristo na sua glória. Nessa perspectiva, a fé batismal se concebe como
antecipação da plena revelação escatológica: é amar aquele que ainda não vimos
e nele crer, o coração já repleto de alegria diante da salvação que se aproxima
(e já alcançada na medida em que a fé nos põe em verdadeira união com Cristo).
Evangelho (Jo 20,19-31)
O evangelho constitui o fim do
Evangelho de João: Jo 20,19-31 (o capítulo 21 de João é um epílogo que excede a
estrutura literária do evangelho propriamente). O Evangelho de João é composto
de dois painéis, introduzidos pelo prólogo (1,1-18). O primeiro painel,
1,19-12,50, narra os “sinais” de Jesus. Esses sinais manifestam que Jesus é o
enviado de Deus e que Deus está com ele e, ao mesmo tempo, revelam
simbolicamente o dom que Jesus mesmo é. No segundo painel, os capítulos 13-20,
Jesus, na hora de sua despedida, abre o seu mistério de união com o Pai e
inclui nele os seus discípulos, antes de assumir, livremente, a morte por amor
e ser ressuscitado por Deus. Sua ressurreição é o sinal de que ele vive e sobe
à glória do Pai (20,17). No trecho que ouvimos hoje, manifesta-se o dom do
Espírito de Deus a partir da glorificação/exaltação de Jesus (cf. 7,37-39). Na
sua despedida, Jesus prometeu aos seus o Espírito e a paz (14,15-17.26-27).
Agora, o Ressuscitado, enaltecido e revestido com a glória do Pai, traz esses
dons aos seus (20,21-22), que serão seus enviados como ele o foi do Pai
(20,21). Para essa missão, recebem o poder de perdoar, poder que, segundo a
Bíblia, é exclusivo de Deus e, portanto, só pode ser comunicado por quem
comunga de sua autoridade. De fato, já no início do Evangelho de Marcos, Jesus
se caracteriza como o “Filho do homem” (cf. Dn 7,13-14), que recebe de Deus
esse poder (Mc 2,10). Segundo Jo 20,19-23, o Ressuscitado dá à comunidade dos
fiéis o Espírito de Deus e a missão de tirar o pecado do mundo — também a
missão que João Batista reconheceu em Jesus no início do evangelho (Jo 1,29). À
maneira semítica e bíblica, a missão de perdoar é expressa na forma afirmativa
(“a quem perdoardes os pecados, serão perdoados”) e negativa (“a quem os
retiverdes [= não perdoardes], serão retidos”, Jo 20,23). Mas isso não
significa que os seguidores e sucessores de Jesus poderão administrar o perdão
arbitrariamente. Muito antes, trata-se do poder de administrar o perdão
concedido por Deus: munida do Espírito de Deus, a comunidade reconhecerá quem
recebe dele o perdão e quem não. E não deixa de ser significativo que Jesus
exprima essa presença do Espírito exatamente pelo perdão e não pelo dom das
línguas ou algo assim. Pois o que o ser humano procura, em profundidade, é
exatamente esse “estar bem com Deus e com os irmãos” que o pecado impede, mas o
perdão possibilita. Todo o culto judaico girava em torno da reconciliação com
Deus e com a comunidade. A carta aos Hebreus explica que Jesus, enquanto sumo
sacerdote definitivo, realiza essa reconciliação de uma vez para sempre. O que
Jesus confia aos seus em Jo 20,22-23 é mais que mera “jurisdição”. É o dom da
vida nova, na “paz”, no shalom, o dom do
Messias por excelência. Unidos na comunhão da verdadeira videira que é Jesus
(Jo 15,1-8), temos a vida em abundância (Jo 10,10).
A segunda parte do evangelho de
hoje conta a história de Tomé. O texto põe em evidência Tomé entre os que viram
o Ressuscitado (cf. At 10,41; 1Jo 1,1-3), mas visa às gerações seguintes, que,
sem terem visto, deverão crer — com base no testemunho das testemunhas
privilegiadas. “Felizes os que não viram e, contudo, creram” (Jo 20,28) é
bem-aventurança que se dirige a nós (cf. 1Pd 1,8, primeira leitura de hoje). E
é para esse fim que os que viram nos transmitiram, por escrito, o testemunho
evangélico, como diz o autor nas palavras finais (Jo 20,30-31).
Daí podermos dizer: “Cremos na fé
dos que testemunharam”, a fé dos apóstolos, a fé apostólica. A Tomé é dado
experimentar a realidade do Crucificado que ressuscitou, e o apóstolo proclama
a sua fé, tornando-se verdadeiro fiel. Mas há outros a quem não será dado esse
tipo de provas que Tomé requereu e recebeu; eles terão de acreditar também e
são chamados felizes por crerem sem ter visto. Esses “outros” somos todos nós,
cristãos das gerações pós-apostólicas. Mas, em vez de provas palpáveis, a nós é
transmitido o testemunho escrito das testemunhas oculares, para que nós
creiamos e, crendo, tenhamos a vida em seu nome (20,30-31). A fé dos apóstolos é nossa.
Pistas para reflexão: Nossa fé
“apostólica”
Todo mundo gosta de ter provas
palpáveis para acreditar. Mas para que ainda acreditar quando se têm provas
palpáveis? E as pretensas provas, que certeza dão? Nossa fé não vem de provas
imediatas, mas da fé das “testemunhas designadas por Deus” (At 10,41),
principalmente dos apóstolos.
Os apóstolos foram as testemunhas
da ressurreição de Jesus. Eles puderam ver o Ressuscitado e por isso acreditaram.
Tomé foi convidado por Jesus a tocar nas chagas das mãos e do lado (evangelho).
Tomé pôde verificar e acreditou: “Meu Senhor e meu Deus!”. Nós não temos esse
privilégio. Seremos felizes se crermos sem ter visto (Jo 20,29). Mas, para que
isso fosse possível, os apóstolos nos deixaram os evangelhos, testemunho
escrito do que eles viram e da fé no Cristo e Filho de Deus que abraçaram (Jo
20,30-31).
O Cristo descrito nos evangelhos
é visto com os olhos da fé dos apóstolos. Um incrédulo o veria bem diferente.
Nós cremos em Jesus como os apóstolos o viram. A participação na fé dos
apóstolos nos dá a possibilidade de “amar Cristo sem tê-lo visto” e de
“acreditar nele (como Senhor e fonte de nossa glória futura), embora ainda não
o vejamos” (2ª leitura).
Nós acreditamos na fé dos
apóstolos e da Igreja que eles nos deixaram. Então, nossa fé não é coisa
privada. É apostólica e eclesial. Damos crédito à Igreja dos apóstolos. Os
primeiros cristãos faziam isso materialmente: entregavam os seus bens para que
ela os transformasse em instrumentos do amor do Cristo. Crer não é somente
aceitar verdades. É agir segundo a verdade do ser discípulo e seguidor do
Cristo.
É inútil querer verificar e
provar nossa fé sem passar pelos apóstolos e pela corrente de transmissão que
eles instituíram, a Igreja. É impossível verificar, por evidências fora do
âmbito dos evangelhos, a ressurreição de Cristo. Ora, o importante não é
“verificar”, ao modo de Tomé, mas viver o sentido da fé que os apóstolos
(incluindo Tomé) transmitiram. A fé dos apóstolos exige que creiamos em seu
testemunho sobre Jesus morto e ressuscitado e também que pratiquemos a vida de
comunhão fraterna na comunidade eclesial que brotou de sua pregação.
Num tempo de hiperindividualismo,
como é o nosso, essa consciência de acreditarmos naquilo que os apóstolos
acreditaram é muito importante. Deles recebemos a fé, nossa “veste branca”, e,
na comunidade que eles fundaram, nós a vivemos. Ora, por isso mesmo é tão
importante que essa comunidade, por todo o seu modo de viver o legado do
Ressuscitado, seja digna de fé.
Pe. Johan Konings, sj
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