Deus quis um povo para si, um povo santo, um povo
“sacerdotal”, para santificar o mundo todo em seu nome. Um povo que fizesse sua
vontade, realizasse seu reino: “um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Ex
19,6; 1ª leitura). Essa vocação do povo, por ocasião da proclamação da Lei no
monte Sinai, prefigura aquela vocação mais plena que, no monte da Galileia,
Jesus dirigiu a doze humildes galileus. Eles são como que representantes das
doze tribos de Israel, e ele os manda para a colheita messiânica, para ceifar
com a palavra do evangelho, anunciando a vinda do Reino. Eles são o começo do
verdadeiro Israel, o novo povo de Deus. Os sinais disso são os prodígios que os
acompanham na sua missão: curam enfermos, limpam leprosos, ressuscitam mortos,
expulsam demônios… (Mt 10,8, evangelho).
Comentário
dos textos bíblicos
I leitura: Ex 19,2-6a
A 1ª leitura narra que Deus
escolhe um povo para si. Este texto, que expressa a eleição de Israel como povo
de Deus, é o início do relato da Aliança do Sinai (Ex 19,1–24,11). Nas palavras
pronunciadas por Javé, Israel é chamado de reino sacerdotal e povo santo. Javé,
a quem pertencem todas as nações (v. 5: “minha é toda a terra”), faz de Israel
a sua porção escolhida (seu quinhão, sua “herança”). Não porque Deus precise
tomar posse dessa parte (tudo lhe pertence), mas para que essa parte escolhida
dê a conhecer e celebre a sua santidade (sua transcendência e perfeição) no
meio de todas as nações da terra. É essa a função “sacerdotal” do povo.
A formulação atual do texto
reflete a época, depois do exílio (por volta de 500 a.C.), quando os sacerdotes
estão empenhados em reconstituir o povo de Israel em torno do culto e do
Templo. Ensinados pela experiência histórica, eles têm consciência de que
a vocação do povo não é de exercer o domínio sobre os outros povos, mas de
testemunhar a transcendência de seu Deus e o amor fiel com que ele protege o
seu povo, que acaba de sair da opressão. De fato, assim como no texto do Êxodo
os israelitas acabam de sair da “casa da servidão” no Egito, os contemporâneos
dos autores “sacerdotais” que formularam o texto em sua forma atual acabam de
sair da opressão no exílio babilônico.
Neste sentido, o texto que fala
da libertação que aconteceu setecentos anos antes (v. 4: “Vistes o que fiz aos
egípcios e como vos levei sobre asas de águia e vos trouxe a mim”) representa o
hoje do povo depois do exílio. O povo de Deus será para o mundo o que os
sacerdotes são para as tribos de Israel: celebrantes de seu nome e santidade. O
povo é escolhido não para seu próprio proveito, mas para consagrar todas as
nações a Javé. É essa a finalidade da Lei e de suas instituições religiosas.
Isso se chama: Aliança. Como na história do Israel antigo, o mundo reconhecerá
no povo renovado a mão carinhosa e santa de seu Deus.
Evangelho: Mt 9,36-10,8
O evangelho de hoje narra a
missão dos doze apóstolos por Jesus. Anteriormente, Jesus havia mostrado por
palavras e ações portentosas a irrupção do reino de Deus (Mt 5-9). Agora,
sensibilizado pela necessidade do “rebanho sem pastor” (9,35), Jesus manda seus
discípulos como operários à colheita do tempo final, a colheita messiânica
(9,36-38). Por enquanto, a missão se restringe à região de Israel (10,5), sem
entrar nos povoados e cidades dos gentios espalhados na terra da Palestina e na
diáspora. Depois da Ressurreição, porém, a missão se estenderá ao mundo inteiro
(28,19). Os discípulos devem anunciar a chegada do Reino por palavras e sinais
(curas, prodígios), assim como Jesus o fez, pois desde que Jesus iniciou a sua
obra no meio da humanidade, o mundo está sob o signo do reino de Deus.
Mateus inseriu esse episódio,
significativamente, depois dos dois conjuntos iniciais da atividade de Jesus,
sua pregação (Mt 5-7) e sua atividade milagrosa (Mt 8-9). A missão que os
apóstolos recebem é, exatamente, a de pregar e de curar: fazer a mesma coisa
que fez o Messias. Eles são seus colaboradores e continuadores na ceifa
messiânica. Jesus quer pôr fim à situação desoladora de um povo que é como
ovelhas sem pastor (9,36). Conforme a linguagem de Ezequiel, nos últimos
tempos, Deus mesmo, através de seu Messias, reunirá as ovelhas dispersas e se
tornará o Bom Pastor (Ez 34). É nesta missão que os apóstolos vão participar,
realizando, assim, a plenitude do povo eleito, que, como aprendemos na 1ª
leitura, é a comunidade que deve manifestar a santidade e a bondade de Deus no
meio do mundo.
II leitura: Rm 5,6-11
A 2ª leitura não está diretamente
ligada ao tema principal da liturgia de hoje, mas, ainda assim, oferece um
pensamento que enriquece o tema principal. Continuando a lectio continua da carta de Paulo aos Romanos,
como nos domingos anteriores, o texto de Rm 5,6-11 vem oportunamente sublinhar
um subentendido fundamental das duas outras leituras: a “compaixão”, a misericórdia,
o amor gratuito de Deus. Ele nos amou enquanto éramos inimigos (prova maior da
gratuidade do amor!) e deu seu Filho por nós.
Se, porém, se quiser escolher um
texto alternativo que acompanhe melhor as duas outras leituras, ou embuti-lo na
homilia, apresenta-se o texto da 1ª carta de Pedro que descreve a comunidade
cristã como nação santa, sacerdócio real (1Pd 2,5-10). O conjunto da carta
mostra, então, como o autor concebia, naquele tempo da segunda geração cristã,
a vocação desse novo povo de Deus e novo Templo, construído com pedras vivas: a
vida santa da comunidade testemunhal no meio de um mundo desorientado, mas ao
mesmo tempo em busca de valores superiores e disposto a perguntar aos cristãos
acerca das “razões de sua esperança” (1Pd 3,15).
Dicas para reflexão: O novo povo de
Deus
O evangelho narra a vocação e
missão dos doze apóstolos de Jesus. No Antigo Testamento, Deus escolheu as doze tribos de Israel para ser seu “povo
sacerdotal”, povo que devia celebrar e mostrar aos outros povos a santidade de
Javé, sua Lei e seu reinado (1ª leitura). Ora, o evangelho conta que Jesus
encontrou a massa popular abatida e exausta. Pede a seus discípulos, em número
não especificado, que rezem para que Deus envie “trabalhadores” para a
“colheita messiânica”, ou seja, para reconstituir, a partir dessa massa
dispersa, o povo de Deus. De acordo com a estrutura do antigo povo das doze
tribos, Jesus chama doze “trabalhadores”
para dar início à colheita que deve constituir o novo povo de Deus. Esses doze trabalhadores, Jesus
os manda anunciar o Reino e curar as doenças. E, pensando no “aqui e agora”,
manda-os primeiro às ovelhas desgarradas de Israel, para, depois de sua
ressurreição, enviá-los a todas as nações (Mt 28,16-20).
Nosso povo também está abatido, oprimido.
Observamos a decadência social, e até física, das populações das periferias e
do interior, a desorientação dos jovens, a violência crescente, o desinteresse
pelo empenho político por uma sociedade justa e fraterna… Tudo isso não nos
deve desanimar: é um desafio. A tarefa de congregar o povo na justiça e na
fraternidade continua. A consciência comunitária e a missão evangelizadora
poderão transformar a situação, como acontece, por exemplo, nas comunidades que
se articulam preferencialmente com aqueles que sempre são passados para trás,
os pobres, os marginalizados, para viver realmente o evangelho.
Jesus envia os doze a anunciar e
a curar. As curas são sinais de que no âmbito da missão de Jesus se realiza
aquilo que Deus deseja, o bem de seus filhos. Em nossa missão evangelizadora, a
palavra deve vir acompanhada da prática transformadora. É preciso apresentar
“amostras do Reino”. As palavras falam, os exemplos atraem.
A vocação que Cristo dirige aos
“trabalhadores” não é algo meramente individual, só para nossa santificação
pessoal. Chamando doze trabalhadores, o número
das tribos de Israel, Jesus manifesta a intenção de constituir um povo para Deus. Se Jesus toma como referência as
doze tribos de Israel, símbolo de sua própria tradição religiosa e cultural,
isso é uma lição para nós. Povo para Deus não se constrói destruindo sua
identidade. Será que nós respeitamos, ou melhor, devolvemos à multidão popular
(índios, negros…) a sua identidade? E enviamos a eles “trabalhadores” que
representem as feições próprias deles?
Deus e Jesus quiseram a ajuda de um
povo. O reino
de Deus não pode ser realizado sem o povo, ainda que seja fraco e até
inconfiável (como revela o caso de Judas no tempo de Jesus e a fragilidade do
povo que se entrega às ilusões do consumismo hoje). O paternalismo pastoral
(fazer para, mas não com…) não leva
a nada. Para serem “povo”, é preciso que as pessoas participem ativamente, pelo
anúncio e pela ação transformadora, da realização do reino de Deus.
Pe. Johan Konings, sj
Nascido na
Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É autor em
teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade
Católica de Lovaina. Atualmente é professor de Exegese Bíblica na FAJE, em Belo
Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e
Novo Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica
bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia;
A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos
fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A
Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e
Lucas e da “Fonte Q”. E-mail: konings@faculdadejesuita.edu.br
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Vida Pastoral
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