Quem é esse Deus em quem acreditamos? Qual é a sua essência?
Como é que o podemos definir? A liturgia deste dia diz-nos que “Deus é amor”.
Convida-nos a contemplar a bondade, a ternura e a misericórdia de Deus, a
deixarmo-nos envolver por essa dinâmica de amor, a viver “no amor” a nossa
relação com Deus e com os irmãos.
Celebrar a solenidade do Sacratíssimo
Coração de Jesus é tributar ao Senhor um culto de adoração que manifeste, com
especiais homenagens e ternas práticas de reparação, toda a nossa gratidão
pelo mistério de amor que Ele, por
meio de sua amantíssima Redenção, dignou-se manifestar-nos. É, pois, com um
coração de carne, unido hipostaticamente à sua divina pessoa, que o Verbo
humanado simboliza, numa imagem natural e expressiva, a caridade transbordante
que Deus tem para conosco. Ao Filho eterno do Pai, com efeito, não bastou amar
a humanidade com um amor unicamente espiritual; amando-nos mais do que
poderíamos imaginar, o Redentor do gênero humano, ao fazer-se semelhante a nós
segundo a carne, amou-nos com um amor também sensível e afetivo, como convinha
a uma natureza humana íntegra e perfeitíssima, cujos sentimentos não poderiam
jamais se contrapor à infinita caridade que a Divindade tem por nós.
Índice desse divino amor — ao mesmo
tempo espiritual e sensível —, o Coração de Nosso Senhor Jesus Cristo é, nos
dizeres do Papa Pio XII, uma como que "mística escada" pela qual nos
é dado subir "ao amplexo 'de Deus nosso Salvador'" (Haurietis Aquas,
28; cf. Tt 3, 4). Prova concreta e
inequívoca de que fomos amados por primeiro (cf. 1Jo 4, 19), o
coração do Senhor, chagado pelos nossos muitos pecados, pode hoje levar-nos a
um maior comprometimento com a vida de santidade. Ao meditarmos neste dia de
festa como somos queridos por Deus, muitíssimo mais do que um filho pode ser
querido por sua mãe, peçamos ao Pai de misericórdias a graça de amarmos com
verdadeira e "louca" paixão o seu Filho unigênito. Queiramos
conhecê-lO mais nas páginas do Evangelho e nos momentos de oração; façamos,
além disso, o propósito de O imitarmos de mais perto, mantendo sempre sob olhos
os exemplos de virtude e amor que Ele, a fim de instruir-nos e dar-nos um
caminho seguro à perfeição na caridade, quis prodigalizar-nos.
Comentário dos
textos bíblicos
I leitura: Dt 7,6-11
A primeira leitura é uma catequese sobre essa história de
amor que une Jahwéh a Israel. Ensina que foi o amor – amor gratuito, incondicional,
eterno – que levou Deus a eleger Israel, a libertá-lo da opressão, a fazer com
ele uma Aliança, a derramar sobre ele a sua misericórdia em tantos momentos
concretos da história… Diante da intensidade do amor de Deus, Israel não pode
ficar de braços cruzados: o Povo é convidado a comprometer-se com Jahwéh e a
viver de acordo com os seus mandamentos.
Dizer que Israel é “um Povo consagrado ao Senhor” significa
dizer que Israel é um Povo “santo”, “separado”, “reservado para o serviço de
Jahwéh”. A santidade é uma nota constitutiva da essência de Deus; quando se
aplica a mesma noção ao Povo, significa que este entrou na esfera divina, que
passou a viver na órbita de Deus, que foi separado do mundo profano para
pertencer exclusivamente a Deus. Fica, no entanto, claro no texto que o único
responsável pela eleição de Israel é Deus. Não foi Israel que se consagrou ao
serviço de Deus, ou que se elevou até Deus; foi Deus que, por sua iniciativa,
escolheu Israel no meio de todos os outros povos, fez dele um Povo especial e
colocou-o ao seu serviço.
Porque é que Jahwéh elegeu precisamente a Israel
e não a qualquer outro Povo? Segundo a catequese do autor deuteronomista, a
eleição divina de Israel não se baseia na sua grandeza ou poder, mas no amor
gratuito de Deus e na sua fidelidade ao juramento feito aos antepassados do
Povo. A eleição não é fruto de uma conquista humana, mas é sempre pura graça de
Deus. Toca-se aqui o mistério do amor insondável e gratuito de Deus para com o
seu Povo, amor estranho e inexplicável, mas inquestionável e eterno.
De resto, a eleição divina de Israel não é um
piedoso desejo do Povo, ou conversa abstrata de teólogos; mas é uma realidade
que Israel pôde confirmar na sua história… A libertação do Egipto, a derrota do
poder opressor do faraó, a fuga do Povo oprimido para a segurança libertadora
do deserto confirmam a eleição de Israel e o amor de Deus pelo seu Povo.
Qual deve ser a resposta de Israel ao amor de
Deus?
Antes de mais, Israel deve reconhecer que Jahwéh
“é que é Deus”. Israel é convidado a prescindir de outros deuses, de outras
referências, e a construir toda a sua existência à volta de Jahwéh, do seu amor
e da sua bondade (vers. 9-10). Depois, a resposta do Povo ao amor de Deus deve
traduzir-se na observância dos “mandamentos, leis e preceitos” que Jahwéh
propõe ao seu Povo (vers. 11). Os mandamentos são os sinais que permitem a
Israel manter-se em comunhão com Deus, como Povo “santo” consagrado ao Senhor.
II leitura: 1 Jo 4,7-16
A segunda leitura define, numa frase lapidar, a essência de
Deus: “Deus é amor”. Esse “amor” manifesta-se, de forma concreta, clara e
inequívoca em Jesus Cristo, o Filho de Deus que Se tornou um de nós para nos
manifestar – até à morte na cruz – o amor do Pai. Quem quiser “conhecer” Deus,
permanecer em Deus ou viver em comunhão com Deus, tem de acolher a proposta de
Jesus, despir-se do egoísmo, do orgulho e da arrogância e amar Deus e os
irmãos.
O autor vai, pois, dizer aos crentes que o amor é um elemento
essencial da identidade cristã. É o amor que distingue aqueles que são de Deus
daqueles que não são de Deus.
O ponto de partida é a constatação de que Deus é
amor (vers. 8.16). O que é que isso significa? Significa que o amor é a
essência de Deus, a sua característica mais acentuada, a sua atividade mais
específica. Significa que, ao relacionar-se com os homens, Deus não pode deixar
de tocá-los com a sua bondade, a sua ternura, a sua misericórdia.
Dizer que Deus é amor não significa, portanto,
falar de uma qualidade abstrata de Deus, mas falar de ações concretas de Deus
em favor do homem. O amor de Deus manifesta-se de forma clara, insofismável,
inequívoca, no envio de Jesus, o Filho, que se tornou um homem como nós, que
partilhou a nossa humanidade, que nos ensinou a viver a vida de Deus e, levando
ao extremo o seu amor pelos homens, morreu na cruz. A cruz manifesta a
“qualidade” do amor de Deus pelos homens: amor gratuito, incondicional, de
entrega total, de dom radical, que transforma os homens e os projeta para a
vida nova da felicidade sem fim.
Ora, se Deus é amor, aqueles que nasceram de
Deus e que são de Deus devem viver no amor. “Se Deus nos amou, também nós
devemos amar-nos uns aos outros” (vers. 11). Para um cristão, não chega
descobrir que Deus o ama e ficar de braços cruzados a contemplar, com
beatitude, esse amor. É que o amor de Deus transforma o coração do homem,
insere-o numa dinâmica de vida nova, convida-o a rejeitar o egoísmo, o orgulho,
a auto-suficiência e a viver na comunhão com Deus e com os irmãos. Como o amor
que Deus tem por nós, também o nosso amor pelos irmãos deve ser gratuito,
incondicional, total, até à morte.
Viver no amor é escolher Deus, permanecer em
Deus, viver em comunhão com Deus. Quando mantemos essa relação com Deus, o
Espírito reside em nós e opera, por nosso intermédio, obras grandiosas em favor
do homem – obras que dão testemunho do amor de Deus.
Em conclusão: a esses pregadores heréticos para
quem é possível “conhecer Deus”, sem aceitar Jesus Cristo como o Filho de Deus
encarnado e sem amar os irmãos, o autor da Primeira Carta de João diz: Deus é
amor e Jesus Cristo, o Filho de Deus que veio ao nosso encontro para nos
apresentar o projeto salvador do Pai, é a manifestação clara e concreta do amor
do Pai; aceitar Jesus Cristo e segui-l’O insere-nos numa lógica de amor
gratuito, absoluto, incondicional, que transforma o nosso coração, que nos
liberta do egoísmo e que nos leva a amar os nossos irmãos… Quem vive nesta
dinâmica, “conhece” Deus e vive em comunhão com Ele; quem não vive pode ter
todas as pretensões que quiser de “conhecer” a Deus, mas está muito longe
d’Ele.
Evangelho: Mt 11,25-30
O Evangelho que hoje nos é proposto faz parte de uma secção
em que Mateus apresenta as reações e atitudes que as várias pessoas e grupos
assumem frente a Jesus e à sua proposta de “Reino” (cf. Mt 11,2-12,50) e
garante-nos que esse Deus que é amor tem um projeto de salvação e de vida
eterna para oferecer a todos os homens. A proposta de Deus dirige-se
especialmente aos pequenos, aos humildes, aos oprimidos, aos excluídos, aos que
jazem em situações intoleráveis de miséria e de sofrimento: esses são não só os
mais necessitados, mas também os mais disponíveis para acolher os dons de Deus.
Só quem acolhe essa proposta e segue Jesus poderá viver como filho de Deus, em
comunhão com Ele.
Nos versículos que antecedem este episódio (cf.
Mt 11,20-24), Jesus havia dirigido uma veemente crítica aos habitantes de
algumas cidades situadas à volta do lago de Tiberíades (Corozaim, Betsaida,
Cafarnaum), porque foram testemunhas da sua proposta de salvação e
mantiveram-se indiferentes. Estavam demasiado cheios de si próprios, instalados
nas suas certezas, calcificados nos seus preconceitos e não aceitavam
questionar-se, a fim de abrir o coração à novidade de Deus.
Agora, Jesus manifesta-Se convicto de que essa
proposta, rejeitada pelos habitantes das cidades do lago, encontrará
acolhimento entre os pobres e marginalizados, desiludidos com a religião
“oficial” e que anseiam pela libertação que Deus tem para lhes oferecer.
O nosso texto consta de três “sentenças” que,
provavelmente, foram pronunciados em ambientes diversos deste que Mateus nos
apresenta. Dois desses “ditos” (cf. Mt 11,25-27) aparecem também em Lucas (cf.
Lc 10,21-22) e devem provir de um documento que reuniu os “ditos” de Jesus e que
tanto Mateus como Lucas utilizaram na composição dos seus Evangelhos. O
terceiro (cf. Mt 11,28-30) é exclusivo de Mateus e deve provir de uma fonte
própria.
Reflexão
Hoje, a Palavra de Deus diz-nos que os
mandamentos de Deus são provas do seu amor. Guardá-los é a nossa maneira de
reconhecer que Deus nos ama e de Lhe manifestar a adesão do nosso coração. A
nossa história humana escreve-se com as letras do amor de Deus que nos ama e
que se decidiu a vir ao nosso encontro, a escolher-nos, a ungir-nos e a
enviar-nos em missão.
Isto mesmo diz Moisés ao Povo de
Israel. Isto afirma, com manifesto encanto e impressionante beleza, o apóstolo
S. João na sua primeira Carta, segundo a leitura que acabamos de escutar.
Este amor de Deus revelado aos simples
e aos pequeninos, como nos diz o Evangelho de hoje, tem em Cristo o seu pleno
cumprimento. São de Cristo estas palavras a manifestar outros tantos e divinos
sentimentos: “Vinde a mim todos vós que andais cansados e oprimidos, e
Eu vos aliviarei” (Mt 11, 25-30).
A vocação de todo o discípulo de Jesus
radica-se nesta confiança no amor compassivo e misericordioso de Deus, que de
nós faz mensageiros e ministros da sua graça.
Recorramos, por fim, àquela
que, sendo mãe dos membros de Cristo, é um dom preciosíssimo do mesmo
Sacratíssimo Coração. Genitora espiritual de toda a família cristã, a Virgem
Santíssima por certo se alegrará em ouvir, especialmente hoje, as nossas súplicas
por seus auxílios; imploremos-lhe, portanto, a alegria de amar a Deus com
generosidade e audácia, colocando por inteiro o nosso pobre e miserável coração
em cada pequeno ato de caridade que, com a ajuda da graça, formos capazes de
produzir.
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