segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Discurso do Papa Francisco aos bispos no Encontro das Famílias


Discurso
Papa Francisco fala aos bispos no Encontro Mundial das Famílias
Filadélfia, Estados Unidos

Queridos Irmãos Bispos!

Sinto-me feliz por ter a oportunidade de partilhar estes momentos de reflexão pastoral convosco, na jubilosa ocasião do Encontro Mundial das Famílias.

De facto, para a Igreja, a família não é primariamente um motivo de preocupação, mas a feliz confirmação da bênção de Deus à obra-prima da criação. Cada dia, em todos os cantos do planeta, a Igreja tem motivos para se alegrar com o Senhor pelo dom daquele povo numeroso de famílias que, mesmo nas mais duras provas, honram as promessas e guardam a fé.

Assim eu diria que o primeiro impulso pastoral, que nos pede esta desafiadora transição de época, é precisamente um passo decidido na linha de tal reconhecimento. A estima e a gratidão devem prevalecer sobre o lamento, apesar de todos os obstáculos que enfrentamos. A família é o lugar fundamental da aliança da Igreja com a criação de Deus. Sem a família, a Igreja também não existiria: não poderia ser aquilo que deve ser, isto é, sinal e instrumento da unidade do gênero humano (cf. Lumen gentium, 1).

Naturalmente a compreensão que dela possuímos, plasmada com base na integração da forma eclesial da fé e da experiência conjugal da graça, abençoada pelo sacramento, não deve fazer-nos esquecer a profunda transformação do contexto atual, que incide sobre a cultura social – e agora também legal – dos laços familiares e que nos afeta a todos, crentes e não-crentes. O cristão não está «imune» das mudanças do seu tempo; e este mundo concreto, com as suas múltiplas problemáticas e possibilidades, é o lugar onde temos de viver, acreditar e anunciar.

Em tempos passados, vivíamos num contexto social em que as afinidades entre a instituição civil e o sacramento cristão eram substanciais e compartilhadas: os dois estavam interligados e apoiavam-se mutuamente. Agora já não é assim.

Para descrever a situação atual, escolheria duas imagens típicas da nossa sociedade: duma parte as conhecidas lojas, pequenos negócios das nossas terras; da outra os grandes supermercados ou centros comerciais.

Algum tempo atrás, podia-se encontrar numa mesma loja todas as coisas necessárias para a vida pessoal e familiar – é certo que expostas pobremente, com poucos produtos e, consequentemente, poucas possibilidades de escolha.

Havia uma ligação pessoal entre o vendedor e os clientes da vizinhança. Vendia-se a crédito, isto é, havia confiança, conhecimento, proximidade. Um fiava-se do outro. Tinha a coragem de fiar-se. Em muitos lugares, tal negócio era conhecido como «a venda local».

Entretanto, nas últimas décadas, desenvolveram-se e expandiram-se negócios de outro tipo: os centros comerciais, espaços imensos com grande variedade de mercadorias. O mundo parece que se tornou um grande supermercado, onde a cultura adquiriu uma dinâmica competitiva. Já não se vende a crédito, não se pode confiar nos outros. Não há ligação pessoal, relação de vizinhança. A cultura atual parece incentivar as pessoas para entrarem na dinâmica de não se prender a nada nem a ninguém. Não confiar, nem fiar-se. É que hoje a coisa mais importante parece ser esta: correr atrás da última tendência ou atividade.

E isto também a nível religioso. O consumo é que determina o que é importante hoje. Consumir relações, consumir amizades, consumir religiões, consumir, consumir… Não importa o custo nem as consequências. Um consumo que não gera ligações, um consumo que pouco tem a ver com as relações humanas. As ligações são meramente um «meio» para satisfazer as «minhas necessidades».

O próximo, com o seu rosto, com a sua história, com os seus afetos, deixou de ser importante.Este comportamento gera uma cultura que descarta tudo aquilo que já «não serve» ou «não satisfaz» os gostos do consumidor. Fizemos da nossa sociedade uma imensa vitrine multicultural, atenta apenas aos gostos de alguns «consumidores», enquanto muitos, muitíssimos outros «comem as migalhas que caem da mesa de seus donos» (Mt 15, 27).

Isto provoca uma grande ferida. Atrevo-me a dizer que uma das principais pobrezas ou raízes de muitas situações contemporâneas é a solidão radical a que se vêem forçadas muitas pessoas. E assim, indo atrás do que «me agrada», olhando ao aumento do número de «seguidores» numa rede social qualquer, as pessoas seguem a proposta oferecida por esta sociedade contemporânea. Uma solidão temerosa de qualquer compromisso, numa busca frenética de se sentir conhecido.

Devemos condenar os nossos jovens por terem crescido nesta sociedade? Devemos excomungá-los, porque vivem neste mundo? Será preciso ouvirem da boca dos seus pastores frases como estas: «dantes era melhor», «o mundo está um desastre e, se continuar assim, não sabemos como iremos acabar»? Não, não creio que seja esta a estrada. Nós pastores, seguindo os passos do Pastor, somos convidados a procurar, acompanhar, erguer, curar as feridas do nosso tempo. Olhar a realidade com os olhos de quem sabe que é chamado a mover-se, é chamado à conversão pastoral. O mundo atual pede-nos com insistência esta conversão. «É vital que hoje a Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho é para todo o povo, não se pode excluir ninguém» (Evangelii gaudium, 23).

Enganar-nos-íamos se interpretássemos a desafeição, que a cultura do mundo atual tem pelo matrimônio e a família, só em termos de puro e simples egoísmo. Será que os jovens deste tempo se tornaram todos irremediavelmente medrosos, frágeis, inconsistentes? Não nos deixemos cair na cilada! Muitos jovens, no quadro desta cultura dissuasiva, interiorizaram uma espécie de medo inconsciente, que os paralisa relativamente aos impulsos mais belos e mais altos, e também mais necessários. Há muitos que adiam o matrimônio à espera das condições ideais de bem-estar. Entretanto a vida é consumida, sem sabor. É que a sabedoria dos verdadeiros sabores matura com o tempo, como fruto de um generoso investimento da paixão, da inteligência, do entusiasmo.

Estamos vivendo uma cultura que impulsiona e convence os jovens a não fundar uma família, pela falta de meios e por ter tantos meios que está cômodo assim. Essa é a tentação, não fundar uma família.

Como pastores, nós bispos, somos chamados a reunir as forças e a relançar o entusiasmo pelo nascimento de famílias que correspondam mais plenamente à bênção de Deus, segundo a sua vocação. Devemos investir as nossas energias não tanto para explicar uma vez e outra os defeitos da atual condição hodierna e os valores do cristianismo, como sobretudo convidar com audácia os jovens a serem ousados na opção do matrimônio e da família. Também aqui é precisa uma santa ousadia! Quantas mulheres se lamentavam:  meu filho tem 30 anos e não se casa!. Temos que entusiasmar os jovens para que se casem.  Temos que acompanhar e fazer amadurecer o compromisso do matrimônio. Um cristianismo, que pouco «faz» na realidade e «se explica» infinitamente na formação, vive numa desproporção perigosa; diria, num verdadeiro e próprio círculo vicioso. O pastor deve mostrar que o «Evangelho da família» é verdadeiramente a «boa notícia» num mundo em que a atenção para consigo mesmo parece reinar soberana. Não se trata de fantasia romântica: a tenacidade em formar uma família e levá-la por diante transforma o mundo e a história.

O pastor anuncia serena e apaixonadamente a Palavra de Deus, encoraja os crentes a apostarem alto. Tornará os seus irmãos e irmãs capazes de acolher e praticar a promessa de Deus, que alarga a própria experiência da maternidade e da paternidade para o horizonte duma nova «familiaridade» com Deus (cf. Mc 3, 31-35). O pastor vela pelo sonho, a vida, o crescimento das suas ovelhas. Este «velar» não nasce dos discursos feitos, mas do cuidado pastoral. Só é capaz de velar quem sabe estar «no meio», quem não tem medo das perguntas, do contacto, do acompanhamento. O pastor vela, antes de tudo, com a oração, sustentando a fé do seu povo, transmitindo confiança no Senhor, na sua presença. O pastor permanece sempre vigilante, ajudando a levantar o olhar quando aparecem o desânimo, a frustração ou as quedas. Seria bom perguntar-nos se, no nosso ministério pastoral, sabemos «perder» tempo com as famílias.

Sabemos estar com elas, partilhar as suas dificuldades e as suas alegrias? Naturalmente, viver o espírito desta jubilosa familiaridade com Deus e propagar a sua emocionante fecundidade evangélica é, em primeiro lugar, o traço fundamental do estilo de vida do bispo. Assim nós mesmos, aceitando humildemente a aprendizagem cristã das virtudes familiares do povo de Deus, assemelhar-nos-emos cada vez mais a pais e mães (como Paulo; veja-se 1 Ts 2, 7.11), evitando transformar-nos em pessoas que aprenderam simplesmente a viver sem família. De fato, o nosso ideal não é viver sem afetos.

A nós pastores nos tocam duas coisas: a oração e a pregação. Qual é o primeiro trabalho do bispo? Orar, rezar. O segundo trabalho que vai junto com esse: pregar. Ajuda-nos esta definição.  O bispo tem a missão de pastorear com a oração e o anúncio.

O bom pastor renuncia a afetos familiares próprios, para destinar todas as suas forças – e a graça da sua vocação especial – à bênção evangélica dos afetos do homem e da mulher que dão vida ao desígnio da criação de Deus, a começar pelos afetos perdidos, abandonados, feridos, arrasados, humilhados e privados da sua dignidade. Esta entrega total ao amor de Deus não é, por certo, uma vocação alheia à ternura e ao bem-querer! Bastar-nos-á olhar para Jesus, para entendermos isso (cf. Mt19,12). A missão do bom pastor segundo o estilo de Deus – só Deus o pode autorizar, não a sua presunção! – imita, em tudo e para tudo, o estilo afetivo do Filho para com o Pai, que se reflete na ternura da sua entrega: em favor, e por amor, dos homens e mulheres da família humana.

Na perspectiva da fé, este é um tema precioso. O nosso ministério tem necessidade de desenvolver a aliança da Igreja e da família. Caso contrário, definha; e, por nossa culpa, a família humana distanciar-se-á irremediavelmente da Feliz Notícia dada por Deus.

Se formos capazes deste rigor dos afetos de Deus, usando infinita paciência, e sem ressentimento, com os sulcos nem sempre lineares onde devemos semeá-los, até uma mulher samaritana com cinco «não-maridos» se descobrirá capaz de dar testemunho. E, para um jovem rico que tristemente sente que deve pensar ainda com calma, um maduro publicano descerá precipitadamente da árvore e far-se-á paladino dos pobres, nos quais nunca pensara até então.


Deus nos conceda o dom desta nova proximidade entre a família e a Igreja. A necessidade da família, Igreja e pastores. A família é o nosso aliado, a nossa janela aberta para o mundo, a evidência duma bênção irrevogável de Deus destinada a todos os filhos desta história difícil e maravilhosa da criação que Deus nos pediu para servir!
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Canção Nova

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