terça-feira, 9 de março de 2021

2ª Pregação da Quaresma: "Quem de vós pode acusar-me de pecado?".


“QUEM DE VÓS PODE ACUSAR-ME DE PECADO?”
Jesus Cristo, “verdadeiro homem”

Segunda pregação da Quaresma

"O pensamento moderno, iluminista, nasce sob o signo da máxima de viver “etsi Deus non daretur”, como se Deus não existisse. O pastor Dietrich Bonhoeffer retomou esta máxima, buscando dar-lhe um conteúdo cristão positivo. Nas suas intenções, não era uma concessão ao ateísmo, mas um programa de vida espiritual: fazer o próprio dever também quando Deus parecer ausente; em outras palavras, não fazer dele um Deus – tapa-buracos, sempre pronto a intervir onde o homem falhou.

Também nesta versão, a máxima é discutível e foi, justamente, contestada. Mas a nós, neste momento, ela interessa por outra razão. Existe um perigo mortal para a Igreja, e é o de viver “etsi Christus non daretur”, como se Cristo não existisse. É o pressuposto com o qual o mundo e seus meios de comunicação falam todo o tempo da Igreja. Dela, interessam a história (sobretudo a negativa, não a da santidade), a organização, o ponto de vista sobre os problemas do momento, os fatos e as fofocas dentro dela. Raramente se encontra mencionada a pessoa de Jesus. Há alguns anos, foi proposta – e ainda vigora em alguns países – a ideia de uma possível aliança entre fiéis e não fiéis, baseada nos valores civis e éticos comuns, nas raízes cristãs da cultura e assim por diante. Um pacto, em outras palavras, não baseado no que aconteceu no mundo com a vinda de Cristo, mas no que aconteceu em seguida, depois dele.

A isso se acrescenta um fato objetivo, infelizmente, inevitável. Cristo não entra em questão em nenhum dos três diálogos mais vivazes em curso hoje, entre a Igreja e o mundo. Não entra no diálogo entre fé e filosofia, porque a filosofia se ocupa de conceitos metafísicos, não de realidades históricas, como é a pessoa de Jesus de Nazaré; não entra no diálogo com a ciência, com a qual se pode unicamente discutir sobre a existência ou não de um Deus criador e de um projeto inteligente abaixo da evolução; não entra, enfim, no diálogo inter-religioso, onde se ocupa do que as religiões podem fazer juntas, em nome de Deus, pelo bem da humanidade.

Na preocupação – além do mais, justíssima – de responder às exigências e provocações da história e da cultura, nós corremos o perigo mortal de nos comportarmos, também nós, fiéis, “etsi Christus non daretur”. Como se fosse possível falar da Igreja prescindindo de Cristo e do seu Evangelho. Tocaram-me fortemente as palavras pronunciadas pelo Santo Padre na Audiência Geral de 25 de novembro passado. Dizia – e se entendia pelo tom que isso o tocava profundamente –:

Aqui [nos Atos dos Apóstolos, 2,42] encontramos quatro caraterísticas essenciais da vida eclesial: primeira, a escuta do ensinamento dos apóstolos; segunda, a salvaguarda da comunhão recíproca; terceira, a fração do pão; e quarta, a oração. Elas lembram-nos que a existência da Igreja tem sentido, se permanecer firmemente unida a Cristo, isto é, na comunidade, na sua Palavra, na Eucaristia e na oração. É o modo de nos unirmos a Cristo (...). A pregação e a catequese dão testemunho das palavras e dos gestos do Mestre; a busca constante da comunhão fraterna preserva dos egoísmos e dos particularismos; a fração do pão realiza o sacramento da presença de Jesus no meio de nós: Ele nunca estará ausente, na Eucaristia é precisamente Ele, Ele vive e caminha conosco. E por fim, a oração, que é o espaço do diálogo com o Pai, através de Cristo no Espírito Santo. Na Igreja, tudo o que cresce fora destas “coordenadas” está desprovido de fundamento.

As quatro coordenadas da Igreja, como se vê, reduzem-se, nas palavras do papa, a uma só: permanecer ancorada em Cristo. Tudo isso fez nascer em mim o desejo de dedicar estas meditações quaresmais à pessoa de Jesus Cristo. Tive que superar, eu mesmo por primeiro, uma objeção. Um olhar no índice dos documentos do Vaticano II, no verbete “Jesus Cristo”, ou uma rápida passagem pelos documentos pontifícios dos últimos anos, fala-nos dele infinitamente mais do que podemos dizer nestas breves meditações quaresmais. Qual é, então, a utilidade de escolher este tema? É que aqui se falará somente dele, como se existisse só ele, e valesse a pena se ocupar só dele (o que é, definitivamente, a verdade!).

Podemos fazê-lo porque não somos constrangidos, como é o Magistério, a nos ocuparmos também de outras questões: dos problemas pastorais, daqueles éticos, sociais, ambientais, neste momento, dos problemas criados pela pandemia. Ai se fizer, naturalmente, somente o que fazemos aqui, mas ai se jamais o fizer. Da minha experiência com a televisão, aprendi uma coisa. Existem vários modos de enquadrar um objeto. Há o “plano total”, no qual se enquadra quem fala com tudo o que o circunda; há o “primeiro plano”, no qual se enquadra somente a pessoa que fala; há, enfim, o chamado “primeiríssimo plano”, no qual se enquadra apenas o rosto, ou mesmo somente os olhos de quem fala. Eis o que, nestas meditações, nós propomos em fazer, com a ajuda de Deus, primeiríssimos planos sobre a pessoa de Jesus Cristo.

O nosso intuito não é apologético, mas espiritual. Em outras palavras, não falamos para convencer os outros, os não fiéis, mas para que ele se torne sempre mais realmente o Senhor da nossa vida, o nosso tudo, ao ponto de nos sentirmos também nós, como o Apóstolo, “alcançados por Cristo” (Fl 3,12) e poder dizer com ele – ao menos como desejo – “Para mim, de fato, o viver é Cristo” (Fl 1,21). A pergunta que nos acompanhará não será, portanto: “Que lugar Jesus ocupa hoje no mundo ou na Igreja?’, mas: “Que lugar Jesus ocupa na minha vida?”. Será isto, além de tudo, o melhor meio para estimular outros a se interessarem por Cristo, isto é, o modo mais eficaz de fazer evangelização.

Mas, primeiramente, um esclarecimento. De qual Cristo pensamos falar? Existem, de fato, diversos “Cristos”: há o Cristo dos historiadores, dos teólogos, dos poetas, existe até mesmo o Cristo dos ateus[1]. Falamos do Cristo dos Evangelhos e da Igreja. Mais precisamente, do Cristo do dogma católico que o Concílio de Calcedônia de 451 definiu em termos que, de vez em quando, é voltar a escutar, ao menos em parte, no texto original:

Na sequência dos santos Padres, 
ensinamos unanimemente que se confesse
um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo,
igualmente perfeito na divindade e perfeito na humanidade,
sendo o mesmo verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem,
composto duma alma racional e dum corpo, consubstancial ao Pai pela sua divindade, consubstancial a nós pela sua humanidade, “semelhante a nós em tudo, menos no pecado” (...). Um só e mesmo Cristo, Senhor, Filho Único, que devemos reconhecer em duas naturezas (...). A diferença das naturezas não é abolida pela sua união; antes, as propriedades de cada uma são salvaguardadas e reunidas numa só pessoa e numa só hipóstase.

Podemos falar de um triângulo dogmático sobre Cristo: os dois lados são a humanidade e a divindade de Cristo, e o vértice, a unidade da sua pessoa.

O dogma cristológico não quer ser uma síntese de todos os dados bíblicos, uma espécie de destilado que encerra em si toda a imensa riqueza das afirmações relativas a Cristo que se leem no Novo Testamento, reduzindo o tudo à sucinta e árida fórmula: “duas naturezas, uma pessoa”. Se assim fosse, o dogma seria tremendamente redutivo e até perigoso. Mas não é assim. A Igreja crê e prega de Cristo tudo o que o Novo Testamento afirma dele, sem exceção. Mediante o dogma, buscou somente traçar um quadro de referência, estabelecer uma espécie de “lei fundamental” que toda afirmação sobre Cristo deve respeitar. Tudo o que se diz de Cristo deve, assim, respeitar esse dado certo e indiscutível, isto é: que ele é Deus e homem ao mesmo tempo; melhor, na mesma pessoa.

Os dogmas são “estruturas abertas” (Bernhard Lonergan), prontas para acolher tudo o que de novo e genuíno que cada época descobre na palavra de Deus, em torno daquelas verdades que eles pretenderam definir, não encerrar. São abertos a evoluir a partir de seu interior, desde que sempre “no mesmo sentido e na mesma linha”. Isto é, sem que a interpretação dada em uma época contradiga a da época precedente. Aproximar-se de Cristo pela via do dogma não significa, por isso, resignar-se em repetir exaustivamente sempre as mesmas coisas sobre ele, talvez mudando apenas as palavras. Significa ler a Escritura na Tradição, com os olhos da Igreja, isto é, lê-la de modo sempre antigo e sempre novo.

domingo, 7 de março de 2021

A despedida de Francisco: o Iraque ficará sempre comigo, no meu coração


Nestes dias de viagem apostólica no Iraque, disse o Papa Francisco ao final da celebração eucarística no Estádio Franso Hariri, em Erbil, “ouvi vozes de sofrimento e angústia, mas ouvi também vozes de esperança e consolação”. Isso se deve, em grande parte, acrescentou o Pontífice, “àquela incansável obra de bem-fazer” realizada pelas instituições religiosas de várias confissões, Igrejas locais e organizações caritativas que assistem o povo “na obra de reconstrução e renascimento social”. E com a proximidade do final da visita histórica ao país, o Papa se despediu, afirmando:

“O Iraque ficará sempre comigo, no meu coração. Peço a todos vocês, queridos irmãos e irmãs, que trabalhem juntos e unidos por um futuro de paz e prosperidade que não deixe ninguém para trás, nem discrimine ninguém. Asseguro a vocês as minhas orações por este amado país. De modo particular, rezo para que os membros das várias comunidades religiosas, juntamente com todos os homens e mulheres boa vontade, cooperem para forjar laços de fraternidade e solidariedade ao serviço do bem comum e da paz. Salam, salam, salam! Shukrán [obrigado]! Deus vos abençoe a todos! Deus abençoe o Iraque! Allah ma’akum [fiquem com Deus]!”

Papa em Missa no Iraque: só Jesus pode purificar-nos das obras do mal


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
 AO IRAQUE
[5-8 DE MARÇO DE 2021]

SANTA MISSA
HOMILIA DO SANTO PADRE
Estádio Franso Hariri em Erbil
Domingo, 7 de março de 2021

São Paulo lembrou-nos que «Cristo é poder e sabedoria de Deus» (1 Cor 1, 24). Jesus revelou este poder e esta sabedoria sobretudo através da misericórdia e do perdão. Não o quis fazer com demonstrações de força ou impondo do alto a sua voz, nem com longos discursos ou exibições de ciência incomparável. Fê-lo dando a sua vida na cruz. Revelou a sua sabedoria e poder divino mostrando-nos, até ao fim, a fidelidade do amor do Pai; a fidelidade do Deus da Aliança, que fez sair o seu povo da escravidão e guiou-o pelo caminho da liberdade (cf. Ex 20, 1-2).

Como é fácil cair na armadilha de pensar que temos de demonstrar aos outros que somos fortes, que somos sábios; na armadilha de construirmos imagens falsas de Deus, que nos deem segurança (cf. Ex 20, 4-5)! Na realidade, é o contrário. Todos nós precisamos do poder e da sabedoria de Deus revelada por Jesus na cruz. No Calvário, ofereceu ao Pai as feridas pelas quais fomos curados (cf. 1 Ped 2, 24). Aqui, no Iraque, quantos dos vossos irmãos e irmãs, amigos e concidadãos carregam as feridas da guerra e da violência, feridas visíveis e invisíveis! A tentação é responder a estes e outros factos dolorosos com uma força humana, com uma sabedoria humana. Jesus, ao contrário, mostra-nos o caminho de Deus, aquele que Ele mesmo percorreu e por onde nos chama a segui-Lo.

No Evangelho que acabamos de escutar (Jo 2, 13-25), vemos como Jesus expulsou do Templo de Jerusalém os cambistas e todos os que compravam e vendiam. Porque é que Jesus realizou este ato tão forte, tão provocador? Fê-lo porque o Pai O enviou para purificar o templo: não só aquele de pedra, mas sobretudo o do nosso coração. Como Jesus não tolerou que a casa de seu Pai se tornasse um mercado (cf. Jo 2, 16), assim deseja que o nosso coração não seja um lugar de turbulência, desordem e confusão. O coração deve ser limpo, posto em ordem, purificado. De quê? Das falsidades que o sujam, das simulações da hipocrisia. Todos nós as temos. São doenças que fazem mal ao coração, que mancham a vida, tornam-na hipócrita. Precisamos de ser purificados das nossas seguranças falaciosas, que trocam a fé em Deus pelas coisas que passam, pelas conveniências do momento. Precisamos que sejam varridas do nosso coração e da Igreja as nefastas sugestões do poder e do dinheiro. Para limpar o coração, precisamos de sujar as mãos: sentirmo-nos responsáveis e não ficarmos parados enquanto sofrem o irmão e a irmã. Mas como purificar o coração? Sozinhos, não somos capazes; temos necessidade de Jesus. Ele tem o poder de vencer os nossos males, curar as nossas doenças, restaurar o templo do nosso coração.

Para confirmação disto mesmo e como sinal da sua autoridade, disse: «Destruí este templo, e em três dias Eu o levantarei» (2, 19). Jesus Cristo, e só Ele, pode purificar-nos das obras do mal, Ele que morreu e ressuscitou, Ele que é o Senhor! Queridos irmãos e irmãs, Deus não nos deixa morrer no nosso pecado. Mesmo quando Lhe voltamos as costas, nunca nos abandona a nós próprios. Procura-nos, vai atrás de nós para nos chamar ao arrependimento e purificar. «Por minha vida – diz o Senhor pela boca de Ezequiel –, não tenho prazer na morte do ímpio, mas sim na sua conversão a fim de que tenha a vida» (33, 11). O Senhor quer que sejamos salvos e nos tornemos templo vivo do seu amor, na fraternidade, no serviço e na misericórdia.

Jesus não só nos purifica dos nossos pecados, mas torna-nos também participantes do seu próprio poder e sabedoria. Liberta-nos de um modo de entender a fé, a família, a comunidade que divide, contrapõe e exclui, para podermos construir uma Igreja e uma sociedade abertas a todos e solícitas pelos nossos irmãos e irmãs mais necessitados. E ao mesmo tempo revigora-nos para sabermos resistir à tentação de procurar vingança, que nos mergulha numa espiral de retaliações sem fim. Com a força do Espírito Santo, envia-nos, não para fazer proselitismo, mas como seus discípulos missionários, homens e mulheres chamados a testemunhar que o Evangelho tem o poder de mudar a vida. O Ressuscitado torna-nos instrumentos da paz de Deus e da sua misericórdia, artífices pacientes e corajosos duma nova ordem social. Assim, pela força de Cristo e do seu Espírito, acontece o que o apóstolo Paulo profetiza aos Coríntios: «O que é tido como loucura de Deus, é mais sábio que os homens e, o que é tido como fraqueza de Deus, é mais forte que os homens» (1 Cor 1, 25). Comunidades cristãs formadas por pessoas humildes e simples tornam-se sinal do Reino que vem, Reino de amor, justiça e paz.

«Destruí este templo, e em três dias Eu o levantarei» (Jo 2, 19). Falava do templo do seu corpo e, por conseguinte, também da sua Igreja. O Senhor promete que pode, com o poder da sua Ressurreição, fazer-nos ressurgir a nós e às nossas comunidades das ruínas causadas pela injustiça, a divisão e o ódio. É a promessa que celebramos nesta Eucaristia. Com os olhos da fé, reconhecemos a presença do Senhor crucificado e ressuscitado no meio de nós, aprendemos a acolher a sua sabedoria libertadora, a repousar nas suas chagas e a encontrar cura e força para servir o seu Reino que vem ao nosso mundo. Pelas suas feridas, fomos curados (cf. 1 Ped 2, 24); nas suas chagas, amados irmãos e irmãs, encontramos o bálsamo do seu amor misericordioso; porque Ele, Bom Samaritano da humanidade, deseja ungir cada ferida, curar cada recordação dolorosa e inspirar um futuro de paz e fraternidade nesta terra.

A Igreja no Iraque, com a graça de Deus, fez e continua a fazer muito para proclamar esta sabedoria maravilhosa da cruz, espalhando a misericórdia e o perdão de Cristo especialmente junto dos mais necessitados. Mesmo no meio de grande pobreza e tantas dificuldades, muitos de vós oferecestes generosamente ajuda concreta e solidariedade aos pobres e atribulados. Este é um dos motivos que me impeliu a vir em peregrinação até junto de vós, ou seja, para vos agradecer e confirmar na fé e no testemunho. Hoje, posso ver e tocar com a mão que a Igreja no Iraque está viva, que Cristo vive e age neste seu povo santo e fiel.

Amados irmãos e irmãs, confio cada um de vós, as vossas famílias e as vossas comunidades à proteção materna da Virgem Maria, que foi associada à paixão e à morte do seu Filho e participou na alegria da sua ressurreição. Interceda por nós e nos conduza até Ele, poder e sabedoria de Deus.

"A última palavra pertence a Deus e ao seu Filho, vencedor do pecado e da morte", diz Papa no Ângelus


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
AO IRAQUE
[5-8 DE MARÇO DE 2021]

ANGELUS
Igreja da "Imaculada Conceição" em Qaraqosh
Domingo, 7 de março de 2021


Queridos irmãos e irmãs, bom dia!

Sinto-me agradecido ao Senhor pela oportunidade de vos encontrar esta manhã. Estava ansioso por este momento. Agradeço a Sua Beatitude Patriarca Ignace Youssif Younan as suas palavras de saudação, bem como à Senhora Doha Sabah Abdallah e ao Padre Ammar Yako os seus testemunhos. Contemplando-vos, vejo a diversidade cultural e religiosa do povo de Qaraqosh, e isto mostra algo da beleza que a vossa região tem para oferecer ao futuro. A vossa presença aqui lembra que a beleza não é monocromática, mas resplandece pela variedade e as diferenças.

Simultaneamente, com grande tristeza, olhamos ao nosso redor e vemos outros sinais: os sinais do poder destruidor da violência, do ódio e da guerra. Quantas coisas foram destruídas! E quanto deve ser reconstruído! Este nosso encontro demonstra que o terrorismo e a morte nunca têm a última palavra. A última palavra pertence a Deus e ao seu Filho, vencedor do pecado e da morte. Mesmo no meio das devastações do terrorismo e da guerra podemos, com os olhos da fé, ver o triunfo da vida sobre a morte. Tendes diante de vós o exemplo dos vossos pais e mães na fé, que adoraram e louvaram a Deus neste lugar. Perseveraram com firme esperança no seu caminho terreno, confiando em Deus que nunca decepciona e sempre nos sustenta com a sua graça. A grande herança espiritual que nos deixaram continua a viver em vós. Abraçai esta herança! Esta herança é a vossa força. Agora é o momento de reconstruir e recomeçar, confiando-se à graça de Deus, que guia o destino de cada homem e de todos os povos. Não estais sozinhos. Solidária convosco está a Igreja inteira, com a oração e a caridade concreta. E, nesta região, muitos vos abriram as portas nos momentos de necessidade.

Queridos amigos, este é o momento de restaurar não só os edifícios, mas também e em primeiro lugar os laços que unem comunidades e famílias, jovens e idosos. Diz o profeta Joel: «Os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos anciãos terão sonhos e os vossos jovens terão visões» (cf. Jl 3, 1). Quando os idosos e os jovens se encontram, que acontece? Os idosos sonham; sonham um futuro para os jovens. E os jovens podem recolher estes sonhos e profetizar, realizá-los. Quando os idosos e os jovens se unem, preservamos e transmitimos os dons que Deus nos oferece. Olhamos para os nossos filhos, sabendo que herdarão não apenas uma terra, uma cultura e uma tradição, mas também os frutos vivos da fé, que são as bênçãos de Deus sobre esta terra. Animo-vos a não esquecer quem sois e donde vindes; a preservar os laços que vos mantêm unidos, a guardar as vossas raízes.

Com certeza há momentos em que a fé pode vacilar, quando parece que Deus não vê nem intervém. Sentistes a verdade disto nos dias mais negros da guerra, e é verdade também nestes dias de crise sanitária mundial e de grande insegurança. Nestes momentos, lembrai-vos que Jesus está ao vosso lado. Não deixeis de sonhar. Não desistais, não percais a esperança. Do Céu, os Santos velam sobre vós: invoquemo-los e não nos cansemos de pedir a sua intercessão. E há também «os santos ao pé da porta (…), que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus» (Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate, 7). Esta terra tem muitos: é uma terra de muitos homens e mulheres santos. Deixai que vos acompanhem para um futuro melhor, um futuro de esperança.

Papa aos sobreviventes do terrorismo: perdoar e ter coragem para lutar


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
 AO IRAQUE
[5-8 DE MARÇO DE 2021]

VISITA À COMUNIDADE DE QARAQOSH
DISCURSO DO SANTO PADRE
Igreja da Imaculada Conceição em Qaraqosh
Domingo, 7 de março de 2021


Queridos irmãos e irmãs, bom dia!

Sinto-me agradecido ao Senhor pela oportunidade de vos encontrar esta manhã. Estava ansioso por este momento. Agradeço a Sua Beatitude Patriarca Ignace Youssif Younan as suas palavras de saudação, bem como à Senhora Doha Sabah Abdallah e ao Padre Ammar Yako os seus testemunhos. Contemplando-vos, vejo a diversidade cultural e religiosa do povo de Qaraqosh, e isto mostra algo da beleza que a vossa região tem para oferecer ao futuro. A vossa presença aqui lembra que a beleza não é monocromática, mas resplandece pela variedade e as diferenças.

Simultaneamente, com grande tristeza, olhamos ao nosso redor e vemos outros sinais: os sinais do poder destruidor da violência, do ódio e da guerra. Quantas coisas foram destruídas! E quanto deve ser reconstruído! Este nosso encontro demonstra que o terrorismo e a morte nunca têm a última palavra. A última palavra pertence a Deus e ao seu Filho, vencedor do pecado e da morte. Mesmo no meio das devastações do terrorismo e da guerra podemos, com os olhos da fé, ver o triunfo da vida sobre a morte. Tendes diante de vós o exemplo dos vossos pais e mães na fé, que adoraram e louvaram a Deus neste lugar. Perseveraram com firme esperança no seu caminho terreno, confiando em Deus que nunca dececiona e sempre nos sustenta com a sua graça. A grande herança espiritual que nos deixaram continua a viver em vós. Abraçai esta herança! Esta herança é a vossa força. Agora é o momento de reconstruir e recomeçar, confiando-se à graça de Deus, que guia o destino de cada homem e de todos os povos. Não estais sozinhos. Solidária convosco está a Igreja inteira, com a oração e a caridade concreta. E, nesta região, muitos vos abriram as portas nos momentos de necessidade.

Queridos amigos, este é o momento de restaurar não só os edifícios, mas também e em primeiro lugar os laços que unem comunidades e famílias, jovens e idosos. Diz o profeta Joel: «Os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos anciãos terão sonhos e os vossos jovens terão visões» (cf. Jl 3, 1). Quando os idosos e os jovens se encontram, que acontece? Os idosos sonham; sonham um futuro para os jovens. E os jovens podem recolher estes sonhos e profetizar, realizá-los. Quando os idosos e os jovens se unem, preservamos e transmitimos os dons que Deus nos oferece. Olhamos para os nossos filhos, sabendo que herdarão não apenas uma terra, uma cultura e uma tradição, mas também os frutos vivos da fé, que são as bênçãos de Deus sobre esta terra. Animo-vos a não esquecer quem sois e donde vindes; a preservar os laços que vos mantêm unidos, a guardar as vossas raízes.

Oração do Papa em Mosul: “A paz é mais forte que a guerra"


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
AO IRAQUE
[5-8 DE MARÇO DE 2021]

ORAÇÃO DE SUFRÁGIO PELAS VÍTIMAS DA GUERRA
Hosh al-Bieaa, Mosul
Domingo, 7 de março de 2021

SAUDAÇÃO ANTES DA ORAÇÃO

Queridos irmãos e irmãs,
Caros amigos!

Agradeço ao Arcebispo D. Najeeb Michaeel as suas palavras de boas-vindas e estou particularmente grato ao Padre Raid Kallo e ao senhor Gutayba Aagha pelos seus comoventes testemunhos.

Muito obrigado, Padre Raid, por nos ter falado do deslocamento forçado de muitas famílias cristãs das suas casas. A trágica redução dos discípulos de Cristo, aqui e em todo o Médio Oriente, é um dano incalculável não só para as pessoas e comunidades envolvidas, mas também para a própria sociedade que eles deixaram para trás. Com efeito, um tecido cultural e religioso assim rico de diversidade é enfraquecido pela perda de qualquer um dos seus membros, por menor que seja, como, num dos vossos artísticos tapetes, um pequeno fio rebentado pode danificar o conjunto. Padre, falou da experiência fraterna que vive com os muçulmanos, depois de ter regressado a Mossul. Aqui encontrou acolhimento, respeito, colaboração. Obrigado, Padre, por ter compartilhado estes sinais que o Espírito faz florir no deserto e ter mostrado que é possível esperar na reconciliação e numa vida nova.

Senhor Aagha, lembrou-nos que faz parte da verdadeira identidade desta cidade a convivência harmoniosa entre pessoas de diferentes origens e culturas. Por isso, muito me alegro com o seu convite à comunidade cristã para voltar a Mossul e assumir o papel vital que lhe cabe no processo de regeneração e renovamento.

Hoje, todos erguemos as nossas vozes em oração a Deus Todo-Poderoso por todas as vítimas da guerra e dos conflitos armados. Aqui em Mossul, saltam à vista as trágicas consequências da guerra e das hostilidades. Como é cruel que este país, berço de civilizações, tenha sido atingido por uma tormenta tão desumana, com antigos lugares de culto destruídos e milhares e milhares de pessoas (muçulmanas, cristãs, yazidis – que foram aniquiladas cruelmente pelo terrorismo – e outras) deslocadas à força ou mortas!

Hoje, apesar de tudo, reafirmamos a nossa convicção de que a fraternidade é mais forte que o fratricídio, que a esperança é mais forte que a morte, que a paz é mais forte que a guerra. Esta convicção fala com uma voz mais eloquente do que a do ódio e da violência; e jamais poderá ser sufocada no sangue derramado por aqueles que pervertem o nome de Deus ao percorrer caminhos de destruição.
 
PALAVRAS INTRODUTÓRIAS DO SANTO PADRE

Antes de rezar por todas as vítimas da guerra nesta cidade de Mossul, no Iraque e em todo o Médio Oriente, gostaria de partilhar convosco estes pensamentos:

Se Deus é o Deus da vida – e é-o –, a nós não é lícito matar os irmãos no seu nome.
Se Deus é o Deus da paz – e é-o –, a nós não é lícito fazer a guerra no seu nome.
Se Deus é o Deus do amor – e é-o –, a nós não é lícito odiar os irmãos.

Agora rezemos juntos por todas as vítimas da guerra, para que Deus Omnipotente lhes conceda vida eterna e paz sem fim, acolhendo-as no seu abraço amoroso. E rezemos também por todos nós para podermos, independentemente das respetivas filiações religiosas, viver em harmonia e paz, conscientes de que, aos olhos de Deus, todos somos irmãos e irmãs.

Iraque: Papa Francisco preside sua primeira Missa em Bagdá


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
 AO IRAQUE
[5-8 DE MARÇO DE 2021]

SANTA MISSA
HOMILIA DO SANTO PADRE

Catedral Caldeia de São José em Bagdá
Sábado, 6 de março de 2021

Hoje a Palavra de Deus fala-nos de sabedoria, testemunho e promessas.

A sabedoria foi cultivada nestas terras desde tempos muito antigos. Desde sempre, a sua busca tem fascinado o homem; mas, frequentemente, quem possui mais recursos pode adquirir mais conhecimentos e ter mais oportunidades, ao passo que quantos têm menos são excluídos. É uma desigualdade inaceitável, atualmente em aumento. Entretanto o livro da Sabedoria surpreende-nos, ao inverter a perspectiva. Nele se diz que «o pequeno encontrará misericórdia, mas os poderosos serão examinados com rigor» (Sab 6, 6). Para o mundo, quem tem menos é descartado e quem tem mais é privilegiado; para Deus, não: quem tem mais poder é sujeito a um exame rigoroso, enquanto os últimos são os privilegiados de Deus.

Jesus, a Sabedoria em pessoa, completa esta inversão no Evangelho: não num momento qualquer, mas no início do primeiro discurso, com as Bem-aventuranças. A inversão é total: os pobres, os que choram, os perseguidos são declarados bem-aventurados. Como é possível? Bem-aventurados, para o mundo, são os ricos, os poderosos, os famosos! Vale quem tem, quem pode, quem conta! Para Deus, não: não é maior quem tem, mas quem é pobre em espírito; não quem pode tudo sobre os outros, mas quem é manso com todos; não quem é aclamado pelas multidões, mas quem é misericordioso com o irmão. Chegados aqui, pode-nos vir a dúvida: Se vivo como Jesus pede, que ganho com isso? Não corro o risco de ser espezinhado pelos outros? A proposta de Jesus será conveniente? Ou é perdedora? Não é perdedora, mas sapiente.

A proposta de Jesus é sapiente, porque o amor, que é o coração das Bem-aventuranças, embora pareça frágil aos olhos do mundo, na realidade vence. Na cruz, provou ser mais forte do que o pecado; no sepulcro, derrotou a morte. Foi este mesmo amor que tornou os mártires vitoriosos na provação… E houve tantos no último século! Mais do que nos anteriores. O amor é a nossa força, a força de tantos irmãos e irmãs que também aqui foram vítimas de preconceitos e ofensas, sofreram maus tratos e perseguições pelo nome de Jesus. Mas, enquanto o poder, a glória e a vaidade do mundo passam, o amor permanece, como nos disse o apóstolo Paulo: «o amor jamais passará» (1 Cor 13, 8). Assim, viver as Bem-aventuranças é tornar eterno aquilo que passa, é trazer o Céu à terra.

Mas como se vivem as Bem-aventuranças? Não exigem que se façam coisas extraordinárias, empreendimentos acima das nossas capacidades. Exigem o testemunho diário. Bem-aventurado é quem vive com mansidão, quem pratica a misericórdia no lugar onde se encontra, quem mantém o coração puro lá onde vive. Para se tornar bem-aventurado, não é preciso ser herói de vez em quando, mas testemunha todos os dias. O testemunho é o caminho para encarnar a sabedoria de Jesus. É assim que se muda o mundo: não com o poder nem com a força, mas com as Bem-aventuranças. Pois foi assim que fez Jesus, vivendo até ao fim aquilo que dissera ao início. Tudo se resume em testemunhar o amor de Jesus, aquela caridade que São Paulo descreve de forma estupenda na segunda Leitura de hoje. Vejamos como a apresenta.

Papa em encontro inter-religioso: extremismo e violência traem a religião


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
 AO IRAQUE
[5-8 DE MARÇO DE 2021]

ENCONTRO INTER-RELIGIOSO
Planície de Ur
Sábado, 6 de março de 2021
 

DISCURSO DO SANTO PADRE

Queridos irmãos e irmãs!

Este lugar abençoado faz-nos pensar nas origens, nos primórdios da obra de Deus, no nascimento das nossas religiões. Aqui, onde viveu o nosso pai Abraão, temos a impressão de regressar a casa. Aqui ele ouviu a chamada de Deus, daqui partiu para uma viagem que mudaria a história. Somos o fruto daquela chamada e daquela viagem. Deus pediu a Abraão que levantasse os olhos para o céu e contasse as estrelas (cf. Gn 15, 5). Naquelas estrelas, viu a promessa da sua descendência, viu-nos a nós. E hoje nós, judeus, cristãos e muçulmanos, juntamente com os irmãos e irmãs doutras religiões, honramos o pai Abraão fazendo como ele: olhamos para o céu e caminhamos sobre a terra.

1. Olhamos para o céu. Ao contemplarmos o mesmo céu alguns milénios depois, aparecem as mesmas estrelas. Iluminam as noites mais escuras, porque brilham juntas. O céu oferece-nos assim uma mensagem de unidade: sobre nós, o Altíssimo convida a não nos separarmos jamais do irmão que está ao nosso lado. O Além de Deus envia-nos mais além de nós, ao outro, ao irmão. Mas, se quisermos salvaguardar a fraternidade, não podemos perder de vista o Céu. Nós, descendência de Abraão e representantes de várias religiões, sentimos que a nossa função primeira é esta: ajudar os nossos irmãos e irmãs a elevarem o olhar e a oração para o Céu. E disto todos precisamos, porque não nos bastamos a nós próprios. O homem não é omnipotente; sozinho, não é capaz. E se escorraça Deus, acaba por adorar as coisas terrenas. Mas os bens do mundo, que fazem muitos esquecer-se de Deus e dos outros, não são o motivo da nossa viagem sobre a terra. Erguemos os olhos ao Céu para nos elevarmos das torpezas da vaidade; servimos a Deus, para sair da escravidão do próprio eu, porque Deus nos impele a amar. Esta é a verdadeira religiosidade: adorar a Deus e amar o próximo. No mundo atual, que muitas vezes se esquece do Altíssimo ou oferece uma imagem distorcida d’Ele, os crentes são chamados a testemunhar a sua bondade, mostrar a sua paternidade através da nossa fraternidade.

A partir deste lugar fontal da fé, da terra do nosso pai Abraão, afirmamos que Deus é misericordioso e que a ofensa mais blasfema é profanar o seu nome odiando o irmão. Hostilidade, extremismo e violência não nascem dum ânimo religioso: são traições da religião. E nós, crentes, não podemos ficar calados, quando o terrorismo abusa da religião. Antes, cabe a nós dissipar com clareza os mal-entendidos. Não permitamos que a luz do Céu seja ocultada pelas nuvens do ódio! Sobre este país, acumularam-se as nuvens negras do terrorismo, da guerra e da violência. Com isso, sofreram todas as comunidades étnicas e religiosas; de modo particular quero recordar a comunidade yazidi, que chorou a morte de muitos homens e viu milhares de mulheres, donzelas e crianças raptadas, vendidas como escravas e sujeitas a violências físicas e conversões forçadas. Hoje rezamos por todas as vítimas de tais sofrimentos, por quantos ainda estão dispersos e sequestrados para que regressem brevemente às suas casas. E rezamos para que em toda a parte se respeitem e reconheçam a liberdade de consciência e a liberdade religiosa: são direitos fundamentais, porque tornam o homem livre para contemplar o Céu para o qual foi criado.

O terrorismo, quando invadiu o norte deste amado país, destruiu barbaramente parte do seu maravilhoso património religioso, incluindo igrejas, mosteiros e lugares de culto de várias comunidades. Mas, mesmo naquele momento escuro, brilharam estrelas. Penso nos jovens voluntários muçulmanos de Mossul, que ajudaram a refazer igrejas e mosteiros, construindo amizades fraternas sobre as ruínas do ódio, e penso nos cristãos e muçulmanos que hoje restauram conjuntamente mesquitas e igrejas. O professor Ali Thajeel referiu-nos também o regresso dos peregrinos a esta cidade. É importante peregrinar rumo aos lugares sagrados: é o sinal mais belo da saudade do Céu na terra. Por isso, amar e preservar os lugares sagrados é uma necessidade existencial em memória do nosso pai Abraão, que em vários lugares ergueu para o céu altares ao Senhor (cf. Gn 12, 7.8; 13, 18; 22, 9). Que o grande patriarca nos ajude a tornar oásis de paz e de encontro para todos os lugares sagrados de cada um. Pela sua fidelidade a Deus, tornou-se uma bênção para todos os povos (cf. Gn 12, 3); a nossa estada hoje aqui, seguindo os seus passos, seja sinal de bênção e esperança para o Iraque, o Médio Oriente e o mundo inteiro. O Céu não se cansou da terra: Deus ama cada povo, cada uma das suas filhas e cada um dos seus filhos! Nunca nos cansemos de olhar para o céu, de olhar para estas estrelas, as mesmas que outrora viu o nosso pai Abraão.

2. Caminhamos sobre a terra. Os seus olhos erguidos para o céu não desviaram, antes encorajaram Abraão a caminhar sobre a terra, a empreender uma viagem que, através da sua descendência, tocaria todos os séculos e latitudes. Mas tudo começou a partir daqui, do Senhor que o «mandou sair de Ur» (Gn 15, 7). Por conseguinte, o seu foi um caminho em saída, que implicou sacrifícios: teve de deixar terra, casa e parentes. Mas, renunciando à sua família, tornou-se pai duma família de povos. Algo de semelhante acontece também connosco: no caminho, somos chamados a deixar aqueles vínculos e apegos que, fechando-nos no nosso grupo, impedem-nos de acolher o amor ilimitado de Deus e ver os outros como irmãos. É verdade! Precisamos de sair de nós mesmos, porque temos necessidade uns dos outros. A pandemia fez-nos compreender que «ninguém se salva sozinho» (Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, 54); mas volta sempre a tentação de nos distanciarmos dos outros. Todavia «o principio “salve-se quem puder” traduzir-se-á rapidamente no lema “todos contra todos”, e isso será pior que uma pandemia» (Ibid., 36). Nas tormentas que estamos a atravessar, não nos salvará o isolamento, não nos salvarão a corrida armamentista e a construção de muros, que aliás nos tornarão cada vez mais distantes e irados. Não nos salvará a idolatria do dinheiro, que nos fecha em nós mesmos e provoca abismos de desigualdade onde se afunda a humanidade. Não nos salvará o consumismo, que anestesia a mente e paralisa o coração.

O caminho que o Céu aponta para o nosso percurso é outro: é o caminho da paz. E este requer, sobretudo na tormenta, que rememos juntos na mesma direção. É indigno que, enquanto todos somos provados pela crise pandémica, e especialmente aqui onde os conflitos causaram tanta miséria, alguém pense avidamente nos seus negócios. Não haverá paz sem partilha e acolhimento, sem uma justiça que assegure equidade e promoção para todos, a começar pelos mais frágeis. Não haverá paz sem povos que estendam a mão a outros povos. Não haverá paz enquanto se olhar os outros como um «eles», e não como um «nós». Não haverá paz enquanto as alianças forem contra alguém, porque as alianças de uns contra os outros só aumentam as divisões. A paz não exige vencedores nem vencidos, mas irmãos e irmãs que, não obstante as incompreensões e as feridas do passado, passem do conflito à unidade. Na oração, peçamos isto para todo o Médio Oriente; penso em particular na vizinha e atormentada Síria.

O patriarca Abraão, que hoje nos reúne em unidade, foi profeta do Altíssimo. Uma antiga profecia diz que os povos «transformarão as suas espadas em relhas de arados, e as suas lanças, em foices» (Is 2, 4). Esta profecia não se realizou; antes, espadas e lanças tornaram-se mísseis e bombas. Então donde pode começar o caminho da paz? Da renúncia a ter inimigos. Quem tem a coragem de olhar as estrelas, quem acredita em Deus, não tem inimigos para combater. Tem apenas um inimigo a enfrentar, que está à porta do coração e insiste para entrar: é a inimizade. Enquanto alguns procuram mais ter inimigos do que ser amigos, enquanto muitos buscam o próprio benefício à custa de outros, quem olha as estrelas da promessa, quem segue os caminhos de Deus não pode ser contra ninguém, mas por todos; não pode justificar qualquer forma de imposição, opressão e prevaricação, não se pode comportar de modo agressivo.

Queridos amigos, será possível tudo isto? Encoraja-nos o pai Abraão, que teve esperança para além do que se podia esperar (cf. Rm 4, 18). Na história, muitas vezes corremos atrás de metas demasiado terrenas e caminhamos cada um por conta própria, mas, com a ajuda de Deus, podemos mudar para melhor. Cabe a nós, a humanidade de hoje e principalmente os crentes das diferentes religiões, transformar os instrumentos do ódio em instrumentos de paz. Cabe a nós instar fortemente os responsáveis das nações para que a proliferação crescente de armas ceda o lugar à distribuição de alimentos para todos. Cabe a nós fazer calar as mútuas acusações para dar voz ao grito dos oprimidos e descartados no planeta: muitos estão privados de pão, remédios, instrução, direitos e dignidade. Cabe a nós colocar à luz do dia as foscas manobras que giram à volta do dinheiro e pedir com veemência que o dinheiro não acabe sempre e só por nutrir a desenfreada comodidade de poucos. Cabe a nós salvaguardar a casa comum das nossas ambições predatórias. Cabe a nós lembrar ao mundo que a vida humana vale pelo que é e não pelo que tem, e que a vida de nascituros, idosos, migrantes, homens e mulheres de todas as cores e nacionalidades é sempre sagrada e conta como a de todos os outros. Cabe a nós ter a coragem de levantar os olhos e olhar as estrelas, as estrelas que viu o nosso pai Abraão, as estrelas da promessa.

O caminho de Abraão foi uma bênção de paz. Mas não foi fácil! Teve que enfrentar lutas e imprevistos. Também nós temos pela frente um caminho acidentado, mas precisamos, como o grande patriarca, de dar passos concretos, peregrinar para descobrir o rosto do outro, partilhar memórias, olhares e silêncios, histórias e experiências. Impressionou-me o testemunho de Dawood e Hasan, um cristão e outro muçulmano, que, sem se deixar abater pelas diferenças, estudaram e trabalharam juntos. Juntos, construíram o futuro e descobriram-se irmãos. Também nós, para prosseguir, precisamos de fazer, juntos, algo de bom e concreto. Este é o caminho, sobretudo para os jovens, que não podem ver os seus sonhos truncados pelos conflitos do passado. Urge educá-los para a fraternidade, educá-los para olharem as estrelas. Trata-se duma verdadeira e própria emergência; será a vacina mais eficaz para um amanhã pacífico. Porque sois vós, queridos jovens, o nosso presente e o nosso futuro!

Somente com os outros é que se podem curar as feridas do passado. A senhora Rafah contou-nos o exemplo heroico de Najy, da comunidade sabeia mandeia, que perdeu a vida na tentativa de salvar a família do seu vizinho muçulmano. Quantas pessoas aqui, no silêncio e ignorados pelo mundo, iniciaram caminhos de fraternidade! Rafah contou ainda as tribulações indescritíveis da guerra, que forçou muitos a abandonarem casa e pátria à procura dum futuro para os seus filhos. Obrigado, Rafah, por partilhares connosco a firme vontade de permanecer aqui, na terra dos teus pais! Oxalá todos aqueles que não o conseguiram fazer e tiveram de fugir encontrem um acolhimento benévolo, digno de pessoas vulneráveis e feridas.

Foi precisamente através da hospitalidade, traço caraterístico destas terras, que Abraão recebeu a visita de Deus e o dom, já não esperado, dum filho (cf. Gn 18, 1-10). Nós, irmãos e irmãs de diversas religiões, encontramo-nos aqui, em casa, e a partir daqui, juntos, queremos empenhar-nos para que se realize o sonho de Deus: que a família humana se torne hospitaleira e acolhedora para com todos os seus filhos; que, olhando o mesmo céu, caminhe em paz sobre a mesma terra.