terça-feira, 27 de abril de 2021

Decisão do STF sobre fechar igrejas não considerou acordo Brasil-Santa Sé


Embora a autoridade civil possa “legitimamente propor limitações de cunho sanitário às atividades religiosas”, essas restrições “não podem ser impostas sobre o culto católico de forma unilateral e sem o devido diálogo com a autoridade eclesiástica, nem ter o condão de suprimir total e integralmente a faceta pública do culto sem a concordância e cooperação da autoridade eclesiástica católica, sob pena de violação do direito humano de liberdade religiosa em seu conteúdo essencial e também, no caso católico, do Tratado Internacional conhecido como ‘Acordo Brasil-Santa Sé’”.

A afirmação é da União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro, que expressou sua “preocupação” com o impacto que a decisão do Supremo Tribunal Federal de que as Igrejas podem ser fechadas por decretos de governos estaduais e municipais pode ter “sobre as relações de coordenação e cooperação entre Igreja Católica e República Federativa do Brasil”.

Após uma votação no dia 8 de abril, que terminou com um placar de nove a dois, os ministros do Supremo decidiram que a liberdade religiosa, direito fundamental reconhecido pela Constituição Federal, não está sendo violada por decretos que obrigam o fechamento de igrejas e templos por causa da pandemia de Covid-19.

Diante dessa decisão do STF, os juristas católicos do Rio de Janeiro publicaram uma nota em 21 de abril, por meio da qual afirmaram a preocupação com a relação entre Igreja e Estado brasileiro, “tal como pactuadas no Tratado Internacional entre o Brasil e a Santa Sé sobre o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, firmado na Cidade do Vaticano em 13/11/2008 (Acordo Brasil-Santa Sé – Decreto nº 7.107/2010)”.

Em entrevista à ACI Digital, Padre Marcus Vinicius Brito de Macedo, da Arquidiocese do Rio de Janeiro, observou que a decisão do Supremo “se limitou a analisar os dispositivos constitucionais que tratam da liberdade religiosa, não se debruçando seus ministros na questão específica da Igreja Católica e, por conseguinte, do Acordo Brasil-Santa Sé”.

Em seguida, ressaltou que, “não obstante se reconheça o pluralismo religioso presente no território brasileiro, é lamentável que o Poder Judiciário passe ao largo do Decreto 7107/2010 sobre as peculiaridades que envolvem a fé católica, especialmente, a existência de um Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil através de um Tratado Internacional assinado entre dois sujeitos que devem colaborar entre si sem qualquer imposição de subordinação”.

O sacerdote, que é pós-doutorando em História da Diplomacia na Universidade de Brasília, doutor em Relações Internacionais e Comunicação Social pela Universidade de Navarra (Espanha) e professor do Instituto Superior de Direito Canônico do Rio de Janeiro e da PUC-Rio, explicou as peculiaridades deste acordo entre Estado brasileiro e Igreja Católica.

Segundo ele, “diferentemente das demais confissões, a Igreja Católica tem simultaneamente as seguintes características: universalidade (potencial e sociologicamente estende-se às nações de toda terra), regime centralizado (há uma autoridade suprema, cujo sujeito é o Bispo de Roma junto ao Colégio Episcopal) e um órgão de governo do Papa, a Santa Sé”.

Tais características “constituem nas Relações Internacionais uma personalidade jurídica que viabiliza o cumprimento dos deveres e funções do Direito Internacional, sendo os mais clássicos: o direito de legação, o direito concordatário, o direito de mediação, além dos direitos a participar em conferências internacionais ou organizações internacionais”.

Esta realidade, portanto, explica “a possibilidade da Igreja Católica firmar acordos com outras nações, sendo um ente soberano na comunidade internacional”. É o que ocorre no Acordo Brasil-Santa Sé.

Também nessa linha, a União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro pontuou em sua nota que “a Igreja Católica presente no mundo inteiro ostenta seu próprio ordenamento jurídico autônomo e soberano (o Direito Canônico), emanada da Santa Sé como fonte jurígena histórica e atual internacionalmente reconhecida muito antes da instituição do Estado brasileiro”.

Assim, “as relações entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro devem pautar-se por respeito mútuo, autonomia, independência e cooperação”, afirmaram os juristas, acrescentando que “não é possível reconhecer às autoridades civis poder de subordinar a Igreja Católica, fazendo tábula rasa de seu ordenamento jurídico próprio (o Direito Canônico) e do acordo internacional da República com a Santa Sé, o qual, com fundamento no direito de liberdade religiosa, reconhece à Igreja Católica o direito de desempenhar a sua missão apostólica, garantindo o exercício público de suas atividades (Art. 2º do Acordo)”.

O Estado democrático de direito

Para Pe. Marcus Vinícius, “mais do que impactos à liberdade religiosa”, a decisão do STF de que igrejas podem ser fechadas por decretos de governos estaduais e municipais “fragiliza o Estado democrático de direito”.

O sacerdote pontuou que se refere “a um Estado verdadeiramente de direito, onde se reconheçam e promovam os direitos fundamentais baseados na dignidade da pessoa humana”, no qual “a justiça se fundamente no respeito à liberdade e igualdade de todos os cidadãos e, como nos ensina a Doutrina Social da Igreja, um Estado em que o exercício do poder esteja orientado ao bem comum e se exerça a partir de leis equânimes”.

Desse modo, ressaltou que, “se é próprio do Estado de direito reconhecer e promover os direitos fundamentais das pessoas, logo, deverá incluir também aquele que é um dos mais importantes: o direito fundamental de liberdade religiosa, que consiste tanto os direitos das pessoas como os direitos das comunidades religiosas, ou seja, possui uma faceta individual e ao mesmo tempo social-institucional”.

Portanto, questionou: “qualquer tipo de proibição não estaria ferindo um conceito de Estado de liberdade religiosa, consequentemente de direito?”.

De acordo com o especialista, “o Estado democrático de Direito deve servir de garantia para que exista uma neutralidade dos poderes públicos no exercício da liberdade religiosa e da liberdade de consciência”.

Nessa linha, Pe. Marcus Vinicius explicou que a laicidade do Estado, ou o “Estado laico”, é a propriedade natural de um Estado que “tem a genuína clareza de que é uma realidade temporal e não sacra, que as religiões e as funções relativas ao credo e ao culto das pessoas e/ou dos grupos não formam parte de sua competência e que todo ordenamento religioso tem a sua autonomia para reger-se”.

“O Estado laico é aquele não substitui ou reprime os cidadãos no livre exercício de sua liberdade de consciência e da liberdade de religião”, especificou o sacerdote, ressaltando que “qualquer atitude diferente” a isto “é uma desvirtuação denominada laicismo ou ‘Estado laicista’”.

Assim, afirmou que “é preocupante esta concepção de Estado que não possui uma neutralidade desde o ponto de vista religioso e muitas vezes se apresenta contrário às religiões e suas diversas manifestações na vida social”. “Não seria o ‘Estado laicista’ um Estado confessional às avessas?”, questionou.

A atuação da Igreja Católica frente à pandemia

Diante desse debate, tanto os juristas católicos do Rio de Janeiro quanto Pe. Marcus Vinicius de Macedo sublinharam um ponto: o importante papel desempenhado pela Igreja Católica no enfrentamento à pandemia de Covid-19.

“A Igreja Católica no Brasil tem dado vivas demonstrações de desejar cooperar com o poder público nas questões envolvendo os cuidados sanitários, mostrando-se aberta ao diálogo e a acordos com as autoridades civis para que se encontrem soluções que atendam a ambas as partes e, sobretudo, aos cidadãos religiosos católicos, cujas vidas são de primordial importância não só para o Estado, mas também para a Mãe Igreja”, afirmou a nota da União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro.

Por sua vez, Pe. Marcus Vinicius indicou que “a postura da Igreja Católica é paradigmática no que tange ao respeito das restrições sanitárias, basta perceber o esmero com a higienização dos espaços sagrados entre cada celebração da Santa Missa, a presença de pessoas à porta para aferição da temperatura, a distribuição de álcool em gel a todos que se aproximam e o distanciamento nos bancos”.

Recordou ainda que em diversas ocasiões “o Santo Padre e os bispos diocesanos” solicitam “a cooperação e vigilância para com as normas sanitárias”.

Além disso, ressaltou o exemplo da Igreja Católica “no auxílio espiritual, moral e material a todos que estão padecendo com a pandemia”. Assim, citou, por exemplo, “as inúmeras campanhas de arrecadação e distribuição de mantimentos, que sempre existiram, mas se intensificaram para justamente mostrar que as carícias da Providência divina não abandonam a ninguém e estão repletas da ternura de uma matemática sobrenatural: quando dividimos Deus multiplica ao cuidarmos do próximo e da nossa casa comum, ou seja, a fé unida às obras”.



Por Natalia Zimbrão
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ACI Digital

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