quarta-feira, 24 de março de 2021

3ª Pregação da Quaresma: “E vós, quem dizeis que eu sou? Jesus Cristo verdadeiro Deus”


“E VÓS, QUEM DIZEIS QUE EU SOU?”
Jesus Cristo “verdadeiro Deus”
 
Terceira Pregação da Quaresma

Recordemos brevemente o tema e o espírito destas meditações quaresmais. Propusemo-nos em reagir à tendência difundidíssima de falar da Igreja “etsi Christus non daretur”, como se Cristo não existisse, como se fosse possível entender tudo dela, prescindindo dele. Propusemo-nos, porém, em reagir a isso de um modo diverso do habitual: não buscando convencer o mundo e seus meios de comunicação de erro, mas renovando e intensificando a nossa fé em Cristo. Não em chave apologética, mas espiritual.

Para falar de Cristo, escolhemos a via mais segura, que é a do dogma: Cristo verdadeiro homem, Cristo verdadeiro Deus, Cristo uma só pessoa. Aquela do dogma é uma via por nada velha e ultrapassada. “A terminologia dogmática da Igreja primitiva – escreveu Kierkegaard, um dos maiores representantes do pensamento moderno existencialista – é como um castelo encantado, onde repousam em um sono profundo os príncipes e as princesas mais graciosos. Basta apenas despertá-los, para que se levantem em toda a sua glória”[1].

Assim, trata-se justamente disso: de despertar os dogmas, de infundir neles vida, como quando o Espírito entrou nos ossos ressequidos vistos por Ezequiel e “eles viveram e se puseram de pé” (Ez 37,10). Na vez passada, buscamos fazer isso, em relação ao dogma de Jesus “verdadeiro homem”; hoje, queremos fazê-lo com o dogma de Cristo “verdadeiro Deus”.

O dogma de Cristo “verdadeiro Deus”

Em 111 ou 112 depois de Cristo, Plínio, o Jovem, governador da Bitínia e do Ponto, escreveu uma carta ao Imperador Trajano, pedindo-lhe indicações sobre como se comportar nos processos instaurados contra os cristãos. Segundo as informações tomadas – escreve ao Imperador – “toda a sua culpa ou erro consistia em se reunirem habitualmente em um dia estabelecido antes da aurora e entoar, em coros alternados, um hino a Cristo como a um Deus”: carmen Christo quasi Deo dicere[2]. Estamos na Ásia Menor, há poucos anos da morte do último apóstolo, João, e os cristãos proclamam já no canto a divindade de Cristo! A fé na divindade de Cristo nasce com o nascer da Igreja.

Mas o que é desta fé hoje? Façamos, primeiramente, uma breve reconstrução da história do dogma da divindade de Cristo. Ele foi sancionado solenemente no Concílio de Niceia de 325, com as palavras que repetimos no Credo: “Creio em um só Senhor, Jesus Cristo... Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai”. Para além dos termos usados, o sentido profundo da definição de Niceia – como se deduz de Santo Atanásio, que foi sua testemunha e intérprete mais fidedigno – era que, em toda língua e em toda época, Cristo deve ser reconhecido como Deus no sentido mais forte e mais alto que a palavra “Deus” tem em determinada língua e cultura, e não em qualquer outro sentido derivado e secundário.

Foi preciso quase um século de assentamento antes que esta verdade fosse recebida, na sua radicalidade, por toda a cristandade. Uma vez superados os refluxos de arianismo devidos à chegada de povos bárbaros que tinham recebido a primeira evangelização dos heréticos (Godos, Visigodos e Longobardos), o dogma se tornou patrimônio pacífico de toda a cristandade, seja oriental como ocidental.

A Reforma Protestante o manteve intacto, e mais, aumentou sua centralidade; contudo, inseriu nele um elemento que, mais tarde, dará margem a prolongamentos negativos. Para reagir ao formalismo e ao nominalismo que reduziam os dogmas a exercícios de virtuosismo especulativo, os reformadores protestantes afirmam: “Conhecer Cristo significa reconhecer os seus benefícios, não indagar as suas naturezas e os modos da encarnação”[3]. O Cristo “para mim” se torna mais importante do que o Cristo “em si”. Ao conhecimento objetivo, dogmático, opõe-se um conhecimento subjetivo, íntimo; ao testemunho exterior da Igreja e das próprias Escrituras sobre Jesus, antepõe-se o “testemunho interior”, que o Espírito Santo presta a Jesus no coração de cada fiel.

O Iluminismo e o racionalismo encontraram nisso o terreno adequado para a demolição do dogma. Para Kant, o que conta é o ideal moral proposto por Cristo, mais do que a sua pessoa. A teologia liberal do século XIX reduz praticamente o cristianismo apenas à dimensão ética e, particularmente, à experiência da paternidade de Deus. Despoja-se o Evangelho de todo o sobrenatural: milagres, visões, a ressurreição de Cristo. O cristianismo torna-se apenas um sublime ideal ético que pode prescindir da divindade de Cristo e, até mesmo, da sua existência histórica. Gandhi, que, infelizmente, conhecera o cristianismo nesta versão redutiva, escreveu: “Não me importaria nem mesmo se alguém demonstrasse que o homem Jesus, na realidade, jamais viveu, e que o que se lê nos evangelhos não é nada mais do que fruto da imaginação do autor. Apesar de que o sermão da montanha permanecesse verdadeiro aos meus olhos”6.

A versão mais próxima a nós desta tendência redutiva do cristianismo é aquela popularizada por Bultmann, em nome, desta vez, da demitologização: “A fórmula ‘Cristo é Deus’ – ele escreve – é falsa, em todo sentido, quando ‘Deus’ é considerado como ser objetivável, seja ela entendida segundo Ário ou segundo Niceia, em sentido ortodoxo ou liberal. Ela está correta se ‘Deus’ for entendido como o evento da atuação divina”[4]. Em palavras menos veladas: Cristo não é Deus, mas em Cristo há (ou opera) Deus. Estamos bem distantes, como se vê, do dogma definido em Niceia. Diz-se de querer, deste modo, interpretar o dogma antigo com categorias modernas, mas, na realidade, não se faz outra coisa a não ser repropor, às vezes nos mesmos termos, soluções arcaicas (Paulo de Samósata, Marcelo de Ancira, Fotino), já avaliadas e rejeitadas pela consciência da Igreja.

Se, das discussões dos teólogos, considerando-se diversas reflexões, passa-se ao que, da divindade de Cristo, pensa o povo comum nos países cristãos, fica-se sem palavras. Após um concílio local dominado pelos opositores de Niceia (Rimini, ano 359), São Jerônimo escreveu: O mundo inteiro “emitiu um gemido e se surpreendeu em se rever ariano”[5]. Nós teríamos muito mais razão que ele de gemer e fazer nossa a sua exclamação de estupor.

Cristo “verdadeiro Deus” nos Evangelhos

Mas agora, devemos ter fé em nosso intuito. Por isso, deixemos de lado o que pensa o mundo e busquemos despertar em nós a fé na divindade de Cristo. Uma fé luminosa, não desfocada, ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, isto é, não só crida, mas também vivida. Também vivida, a Jesus não interessa tanto o que dizem dele “os homens”, mas o que dizem dele os seus discípulos. A pergunta está perenemente no ar: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15). É a ela que queremos buscar responder nesta meditação.

Partamos justamente dos evangelhos. Nos sinóticos, a divindade de Cristo jamais é declarada abertamente, mas é continuamente subentendida. Recordemos algumas frases de Jesus: “O Filho do Homem tem, na terra, autoridade para perdoar pecados” (Mt 9,6); “Ninguém conhece o Filho, senão o Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho” (Mt 11,27); “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras jamais passarão” (frase esta, presente idêntica em todos os três Sinóticos)[6]. “O Filho do Homem é senhor também do sábado” (Mc 2,28); “Quando o Filho do Homem vier em sua glória, acompanhado de todos os anjos, ele se assentará em seu trono glorioso. Todas as nações da terra serão reunidas diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos” (Mt 25,31-32). Quem, a não ser Deus, pode perdoar os pecados em nome próprio e se proclamar juiz final da humanidade e da história?

Assim como basta um fio de cabelo ou uma gota de saliva para reconstruir o DNA de uma pessoa, assim, basta apenas uma linha do Evangelho, lida sem preconceitos, para reconstruir o DNA de Jesus, para descobrir o que ele pensava de si mesmo, mas não podia dizer abertamente para não ser incompreendido. A transcendência divina de Cristo literalmente transpira de cada página do Evangelho.

Mas é sobretudo João quem fez da divindade de Cristo o objetivo primário do seu evangelho, o tema que tudo unifica. Ele conclui o seu evangelho dizendo: “Estes (sinais), porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (Jo 20,31), e conclui a sua Primeira Carta quase com as mesmas palavras:  “Eu vos escrevo estas coisas, a vós que credes no nome do Filho de Deus, para que saibais que tendes a vida eterna” (lJo 5,13).

Um dia, como tantos outro, estava celebrando a Missa em um mosteiro de clausura. O trecho evangélico da liturgia era a página de João, em que Jesus pronuncia repetidamente o seu “Eu Sou”: “De fato, se não crerdes que ‘Eu Sou’, morrereis nos vossos pecados... Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então sabereis que ‘Eu Sou’... Antes que Abraão existisse, Eu Sou” (Jo 8,24.28.58). O fato de que as palavras “Eu Sou”, contrariamente a toda regra gramatical, no lecionário fossem escritas com duas maiúsculas, unido certamente a alguma outra causa mais misteriosa, fez acender uma fagulha. Aquela palavra “explodiu” dentro de mim.

Eu sabia, dos meus estudos, que no evangelho de João havia numerosos “Eu Sou”, ego eimi, pronunciados por Jesus. Sabia que isso era um fato importante para a sua cristologia; que, com esses, Jesus se atribui o nome que Deus reivindica para si em Isaías: “Para que saibais e acrediteis em mim, e compreendais que Eu sou” (Is 43,10). Mas o meu conhecimento era literário e inerte, e não suscitava emoções particulares. Naquele dia, era algo totalmente diverso. Estávamos no tempo pascal e parecia que o próprio Ressuscitado proclamasse o seu nome divino no céu e na terra. O seu “Eu Sou!” iluminava e enchia o universo. Eu me sentia muito pequeno, como alguém que assiste, por acaso e distante, uma cena improvisa e extraordinária, ou a um grandioso espetáculo da natureza. Não se tratou mais do que uma simples emoção de fé, nada mais, porém, daquelas que, quando passam, deixam no coração uma marca indelével.

É de causar estupor a iniciativa que o Espírito de Jesus permitiu a João levar a termo. Ele abraçou os temas, símbolos, expectativas, enfim tudo aquilo que havia de religiosamente vivo, seja no mundo judaico, como no helenístico, pondo tudo isso a serviço de uma única ideia, melhor, de uma única pessoa: Jesus Cristo é o Filho de Deus e o Salvador do mundo. Ele aprendeu a língua dos homens do seu tempo, para gritar em seu meio, com todas as próprias forças, a única verdade que salva, a Palavra por excelência, “o Verbo”.

Somente uma certeza revelada, que tem por detrás de si a autoridade e a própria força de Deus e do seu Espírito, podia ser explicada em um livro com tal insistência e coerência, chegando, de inúmeros pontos diversos, sempre à mesma conclusão: a identidade total da natureza entre o Pai e o Filho: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30). Um “só” (neutro unum), note-se bem, não uma só pessoa (masculino unus)!
“Corde creditur: crê-se com o coração”

Assim como para a humanidade, também a propósito da divindade de Cristo, agora podemos mostrar como o antigo dogma, objetivo e ontológico, é capaz de acolher e valorizar o dado moderno subjetivo e funcional, enquanto, como vimos, o contrário foi um tanto difícil. Nenhuma das chamadas “cristologias a partir de baixo”, aquelas, para entendermos, que partem do Jesus “profeta escatológico e sumo revelador do Pai”, ou do Cristo, “o homem em quem a consciência de Deus atingiu o seu máximo nível” (F. Schleiermacher), ou ainda, do Cristo “pessoa humana em quem subsiste a natureza divina” (e não pessoa divina que subsiste em uma natureza humana!): nenhuma, repito, destas cristologias conseguiu se elevar até abraçar o verdadeiro mistério da fé cristã e salvaguardar a plena divindade de Cristo. A razão do insucesso é explicada por Jesus e foi bem compreendida por João, que a expõe: “Ninguém subiu ao céu, senão aquele que desceu do céu” (Jo 3,13). De fato, è possível para Deus, se assim o quiser, fazer-se homem, mas não é possível ao homem fazer-se Deus!

Com estas premissas, podemos voltar a valorizar toda a dimensão subjetiva e personalista do dogma: o Cristo “para mim”, posto em primeiro plano pelos Reformadores, o Cristo conhecido por seus benefícios e pelo testemunho interior do Espírito. Este é o melhor fruto do ecumenismo, o das “diferenças reconciliadas”, não opostas, como diz o nosso Santo Padre. Não é uma concessão “pro bono pacis”, mas uma necessidade e um enriquecimento recíproco. Todos nós precisamos dar à nossa fé esta dimensão pessoal, íntima, para que ela não seja repetição morta de fórmulas antigas ou modernas. Sobre este ponto, somos todos chamados em causa: católicos, ortodoxos e protestantes, da mesma maneira.

São Paulo diz que “é com o coração que se crê para a justiça; e com a boca, professa-se a fé para a salvação” (Rm 10,10). “É das raízes do coração que sobe a fé”, comenta Agostinho[7]. Na visão católica, como naquela ortodoxa, e também, em seguida, naquela protestante, a profissão da reta fé, isto é, o segundo momento deste processo, frequentemente tomou tanto relevo ao ponto de deixar na sombra aquele primeiro momento que se desenvolve nas profundidades escondidas do coração. Todos os tratados De fide, escritos após Niceia, tratam da ortodoxia da fé; hoje, dir-se-ia da fides quae, não da fides qua, das coisas a serem cridas, não do ato pessoal do crer.

Este primeiro ato de fé, justamente porque acontece no coração, é um ato “singular”, que pode ser feito apenas pelo indivíduo, em total solidão com Deus. No evangelho de João, ouvimos Jesus fazer repetidamente a pergunta: “Crês isto?” (Jo 9,35; Jo 11,26); e, cada vez, esta pergunta suscita do coração o grito da fé: “Sim, Senhor, eu creio!”. Também o símbolo de fé da Igreja começa assim, no singular: “Creio”, não: “Cremos”.

Também nós devemos aceitar passar por este momento, de se submeter a este exame. Se, à pergunta de Jesus: “Crês isto?”, alguém responde imediatamente, sem nem pensar: “Claro que creio”, e acha até estranho que uma pergunta semelhante seja dirigida a um fiel, a um sacerdote ou a um bispo, quer dizer provavelmente que ainda não descobriu o que significa realmente crer, jamais experimentou a grande vertigem da razão que precede o ato de fé. A divindade de Cristo é o cume mais alto, o Evereste da fé. Crer em um Deus nascido em um estábulo e morto em uma cruz! Isto é muito mais exigente do que crer em um Deus distante, que cada um pode representar ao próprio gosto.

É preciso começar a demolir em nós, fiéis e homens da Igreja, a falsa persuasão de que estamos bem no que se refere à fé e que, no mais, devemos trabalhar ainda pela caridade. Talvez não seja um bem, quem sabe, por um pouco de tempo, não querer demonstrar a ninguém, mas interiorizar a fé, redescobrir as suas raízes no coração!

Devemos recriar as condições para uma retomada da fé na divindade de Cristo. Reproduzir o impulso de fé do qual nasceu o dogma de Niceia. O corpo da Igreja outrora produziu um esforço supremo, com o qual se ergueu, na fé, acima de todos os sistemas humanos e de todas as resistências da razão. A maré da fé uma vez subiu a um nível máximo e sua marca permaneceu na rocha. No entanto, é preciso que se repita a subida, não basta a marca. Não basta repetir o Credo de Niceia; é preciso renovar o impulso de fé que então se teve na divindade de Cristo e do qual não houve igual nos séculos.

A praxe da Igreja (e não só da Igreja Católica!) prevê uma profissão de fé da parte do candidato, antes de receber o mandato de ensinar teologia. Esta profissão de fé tem comportado, frequentemente, além da recitação do credo, o compromisso de ensinar algumas coisas precisas – e a não ensinar outras igualmente precisas – que, naquele momento da história, eram temas particularmente sensíveis. Pensemos no juramento contra o modernismo.

A mim parece que se deveria verificar sobretudo uma coisa: que quem ensina teologia aos futuros ministros do Evangelho creia firmemente na divindade de Cristo. Verificar isto mediante um discernimento fraterno e franco, melhor do que com um juramento. Houve toda uma geração de sacerdotes após o Concílio (certamente, não por causa do Concílio!) que saiu do seminário e se apresentou à ordenação com ideias muito confusas e desfocadas sobre quem é o Jesus que devia anunciar ao povo e tornar presente no altar na Missa. Muitas crises sacerdotais, estou convencido, começaram e começam aqui.

Ecumenismo e evangelização

O que evidenciamos tem importantes consequências também para o ecumenismo cristão. Existem, de fato, dois ecumenismos possíveis: o da fé e o da incredulidade; um que reúne todos aqueles que creem que Jesus é o Filho de Deus e que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo, e um que reúne todos aqueles que se limitam a “interpretar” (cada um à própria maneira e segundo o próprio sistema filosófico) estas coisas. Um ecumenismo no qual, no máximo, todos creem as mesmas coisas porque ninguém crê mais realmente em nada, no sentido forte da palavra “crer”.

A distinção fundamental dos espíritos, no âmbito da fé, não é a que distingue entre católicos, ortodoxos e protestantes, mas a que distingue aqueles que creem no Cristo Filho de Deus e aqueles que não creem; segundo São Paulo, “todos os que, em todo lugar, invocam o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso” (1Cor 1,2), e os que não o invocam.

Há uma unidade nova e invisível que vai se formando e que passa pelas diversas Igrejas. Esta unidade invisível e espiritual, por sua vez, tem necessidade vital do discernimento da teologia e do magistério, para não cair no perigo do fundamentalismo ou na vã presunção de poder formar uma espécie de Igreja transversal, fora das Igrejas existentes e, particularmente, da Igreja Católica. Mas, uma vez vislumbrada e superada esta tentação, trata-se de um fato que não podemos mais nos permitir ignorar.

O verdadeiro “ecumenismo espiritual” não consiste somente em rezar pela unidade dos cristãos, mas em compartilhar a mesma experiência do Espírito Santo. Consiste naquela que Agostinho chama “societas sanctorum”, a comunhão dos santos, que, às vezes, dolorosamente, pode não coincidir com a “communio sacramentorum”, ou seja, compartilhar dos mesmos sinais sacramentais.

A fé na divindade é importante sobretudo em vista da evangelização. Existem edifícios ou estruturas metálicas feitas de forma que, se você tocar em um determinado ponto ou levantar uma determinada pedra, tudo desmorona. Assim é o edifício da fé cristã, e esta sua “pedra angular” é a divindade de Cristo. Removida esta, tudo se desagrega e desmorona, começando pela fé na Trindade. De quem se forma a Trindade, Cristo não é Deus? Não por nada, basta se por entre parênteses a divindade de Cristo, que se põe entre parênteses também a Trindade.

Santo Agostinho dizia: “Não é grande coisa crer que Jesus morreu; nisto creem até os pagãos e os ímpios; todos creem nisso. Mas é algo realmente grande crer que ele ressuscitou”. E concluía: “A fé dos cristãos é a ressurreição de Cristo”[8]. A mesma coisa se deve dizer da humanidade e divindade de Cristo, cujas morte e ressurreição são as respectivas manifestações. Todos creem que Jesus seja homem; o que faz a diversidade entre crentes e não crentes é crer que ele também seja Deus. A fé dos cristãos é a divindade de Cristo!

“Conhecer Cristo é reconhecer os seus benefícios”

“Conhecer Cristo é reconhecer os seus benefícios”, nós ouvimos. Concluamos justamente recordando dois destes benefícios, que são os mais capazes de responder às necessidades profundas do homem de hoje e de sempre: a necessidade de sentido e a necessidade de vida.

Não é verdade que o homem moderno deixou de se propor a questão sobre o sentido da vida. Há alguns anos, um conhecido intelectual escreveu: “A religião morrerá. Não é um desejo, muito menos uma profecia. Já é um fato que está aguardando seu cumprimento... Passada a nossa geração e talvez aquela de nossos filhos, niguém mais considerará a necessidade de dar um sentido à vida um problema realmente fundamental... A técnica levou a religião ao seu crepúsculo”[9]. Claro, não se interroga sobre o sentido último da vida quem se prestou a outras coisas... Mas, quando estas vão desaparecendo – juventude, saúde, fama – muitos voltam a se propor aquela pergunta. Fazem-na ainda mais neste tempo de pandemia em que, fechados frequentemente em casa, homens e mulheres finalmente têm tido o tempo de refletir e se interrogar.

Há uma pintura, dentre as mais famosas da arte moderna, que representa visivelmente aonde leva a convicção de que a vida não tem sentido. Em um fundo avermelhado que inspira angústia, um homem atravessa correndo uma ponte, passando por dois indivíduos que parecem alheios e e indiferentes a tudo; tem os olhos rabiscados; com as mãos em torno à boca, emite um grito e se entende que é um grito de desespero.

Jesus disse: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue, não caminha na escuridão” (Jo 8,12). Quem crê em Cristo, tem a possibilidade de resistir à grande tentação da falta de sentido da vida, que frequentemente leva ao suicídio. Quem crê em Cristo não caminha nas trevas: sabe de onde vem, sabe para onde vai e o que fazer enquanto isso. Sobretudo, sabe que é amado por alguém e que este alguém deu a vida para demonstrá-lo!

Jesus também disse: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá” (Jo 11,25). E o evangelista, mais tarde, escreverá aos cristãos: “Eu vos escrevo estas coisas, a vós que credes no nome do Filho de Deus, para que saibais que tendes a vida eterna (...). Ele é o verdadeiro Deus e a Vida eterna” (1Jo 5,13.20). justamente porque Cristo é “verdadeiro Deus”, é também “vida eterna” e dá a vida eterna. Isto não nos tira necessariamente o medo da morte, mas dá ao fiel a certeza de que a nossa vida não termina com ela.

Repensemos em algo de tudo isso quando, domingo, proclamamos o segundo artigo do Credo:

Creio em um só Senhor, Jesus Cristo,
Filho unigênito de Deus,
nascido do Pai antes de todos os séculos:
Deus de Deus, luz da luz,
Deus verdadeiro de Deus verdadeiro,
gerado, não criado,
consubstancial ao Pai.
Por ele todas as coisas foram feitas.




Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap.
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Traduzido do italiano por P. Ricardo Faria, ofmcap
 
[1] Cf. Søren Kierkegaard, Diario, II, A 110 (anno 1837).
[2] Cf. Plínio, o Jovem, Epistularum liber, X,96.
[3] Cf. Filipe Melâncton, Loci theologici, in Corpus Reformatorum, Brunsvigae 1854, p. 85.
[4] Cf. R. Bultmann, Glauben und Verstehen, II, Tübingen 1938, p. 258.
[5] Cf. S. Jerônimo, Dialogus contra Luciferianos, 19 (PL 23, 181): «Ingemuit totus orbis et arianum se esse miratus est».
[6] Mc 13,31; Mt 24,35; Lc 21,33.
[7] Cf. Santo Agostinho, Comentário ao Evangelho de João, 26,2 (PL 35,1607).
[8] Cf. Santo Agostinho, Enarrationes in Psalmos 120, 6.
[9] Na revista “MicroMega” 2, 2000, pp. 187s.
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Vatican News

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