Seguir
a Deus é assumir atitude de permanente êxodo. Abraão, nosso pai na fé, foi
chamado por Deus a pôr-se a caminho para a terra prometida. Foi provocado a
deixar as seguranças para entrar na dinâmica do plano de amor de Deus, visando
uma “terra sem males”, uma sociedade de justiça e paz. Obedecendo ao chamado
divino, Abraão e sua família tornaram-se portadores da bênção divina para todo
o povo (I leitura). O cristão, continuamente, corre o risco de se equivocar a
respeito de Jesus e de sua proposta. Como Pedro no episódio da transfiguração,
tende a construir o “ninho” de proteção e de bem-estar, negligenciando as
implicâncias do seguimento de Jesus no caminho da cruz e da morte (evangelho).
É bom prestar atenção nos conselhos de Paulo a Timóteo: são expressões de amor
e de solidariedade a quem passa por situações conflituosas. Timóteo é
encorajado a persistir no testemunho de Jesus Cristo, participando de seus
sofrimentos pela causa do evangelho (II leitura). Neste tempo propício de
penitência e conversão, somos convidados a ouvir o chamado que Deus nos faz
para ser santos; é tempo propício para aprofundar a vocação que dele recebemos
e discernir o que é essencial do que é ilusório.
Comentário dos textos bíblicos
I leitura (Gn 12,1-4a): A fé que se transforma em
caminho
A
Bíblia nos apresenta a figura de Abraão como o pai do povo de Israel. Sua fé e
confiança em Deus tornam-se a principal herança para as futuras gerações.
Abraão é representativo de grupos seminômades que, por natureza, não se
submetem à dominação do poder político, como o exercido naquela época (em torno
de 1500 a.C.) pelas cidades-estado. São caminhantes, sempre em busca de terra
fértil que proporcione pastagens para a sobrevivência dos seus rebanhos e,
consequentemente, de suas famílias e clãs.
A
experiência que Abraão possui de Deus está intimamente ligada ao estilo de vida
dos pastores. A garantia da terra e o senso de liberdade são fundamentais. A
presença de Deus se dá onde se encontram as famílias. Ele caminha com os
pastores, conduz os seus passos e lhes dá a terra de que necessitam. A terra é
promessa e dom de Deus, porém é necessário que Abraão esteja disposto a romper
com as seguranças que impedem a caminhada na direção que Deus lhe aponta.
Confiar no Deus da promessa é ter a certeza de um mundo sem exploração e sem
fome. Essa promessa é motivadora para os movimentos populares, especialmente em
época de opressão, como aquela exercida pelo Egito e, posteriormente, pela
monarquia israelita. Abraão torna-se a “memória perigosa” que desacomoda os
oprimidos, proporcionando-lhes inspiração para a resistência e a mobilização em
vista de uma nova sociedade.
II leitura (2Tm 1,8b-10): A santa vocação
A
segunda carta a Timóteo faz parte das tradicionalmente conhecidas “cartas
pastorais” (junto com 1Tm e Tt). São dirigidas aos animadores de Igrejas
cristãs, num tom pessoal. Os autores atribuem essas cartas a Paulo. Foram
escritas algum tempo depois de sua morte, no intuito de iluminar e fortalecer a
missão desses “pastores” junto às comunidades.
Timóteo
havia sido um companheiro de Paulo. Participou da segunda e terceira viagens
missionárias. Era uma pessoa de confiança e dedicado à evangelização. Paulo
podia contar com ele para enviá-lo às comunidades a fim de levar instruções e
animar a fé dos cristãos. Após a morte de Paulo, continuou a missão de ministro
da Palavra, revelando-se importante liderança. A tradição o venera como bispo
de Éfeso. Etimologicamente, Timóteo significa “aquele que honra a Deus”.
O
texto da leitura de hoje indica uma situação difícil pela qual está passando
Timóteo. O intuito é confortá-lo e animá-lo à perseverança. Timóteo é convidado
a participar solidariamente dos sofrimentos pelos quais Paulo também passou por
causa do evangelho. Quem assumiu a missão de servir à Palavra não pode sucumbir
às dificuldades nem manifestar-se timidamente. A tribulação é inerente ao
anúncio do evangelho quando feito com autenticidade. Como aconteceu com Jesus,
também acontece com os seus discípulos. Nessa mesma carta, encontramos o
alerta: “Todos os que quiserem viver com piedade em Cristo Jesus serão
perseguidos” (3,12).
A
confiança plena na graça de Deus deve ser característica da pessoa que
evangeliza. Deus nos salvou gratuitamente em Jesus Cristo. Ele nos chama com
uma santa vocação para servi-lo e amá-lo. A santidade nos faz andar
cotidianamente na intimidade divina, como o fez Jesus. A pessoa santa é
portadora da graça e irradiadora da boa notícia de Jesus, o Salvador, que
venceu a morte e fez brilhar a vida. A missão de Timóteo e de toda pessoa
seguidora de Jesus é anunciar, de modo permanente e corajoso, esse projeto
salvador de Deus, concebido desde toda a eternidade e revelado plenamente em
Jesus Cristo.
Evangelho (Mt 17,1-9): A transfiguração de Jesus
A
narrativa da transfiguração de Jesus está permeada de elementos simbólicos
teologicamente muito significativos. Vemos Jesus subindo à montanha com Pedro,
Tiago e João. Todos participam de uma experiência mística inédita. Moisés e
Elias também se fazem presentes e dialogam com Jesus.
Lembremos,
especialmente, que a comunidade de Mateus é formada de judeus que vivem a fé
cristã. Portanto, é importante que a tradição judaica seja respeitada e
aprofundada agora em novo contexto. Assim, a montanha tem um significado
especial de manifestação de Deus. Basta lembrar o dom da Lei de Deus a Moisés
no monte Sinai. Assim também a expressão “seis dias depois”, bem como a
presença da nuvem. Lemos em Ex 24,16: “Quando Moisés subiu ao monte, a nuvem
cobriu o monte. A glória do Senhor pousou sobre o monte Sinai, e a nuvem o
cobriu durante seis dias”. Como vemos, há íntima relação entre a transfiguração
de Jesus e a experiência religiosa de Moisés. É um momento extraordinário de manifestação
divina. Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas, caminho que aponta para
o Messias. Jesus é o cumprimento da promessa do Pai revelada na Sagrada
Escritura.
Podemos
considerar como centro dessa narrativa a declaração de Deus: “Este é meu Filho
amado, nele está meu pleno agrado: escutai-o!”. Essa voz que vem do céu
declarando a filiação divina de Jesus também se fez ouvir no seu batismo (Mt
3,17). É, sem dúvida, a confissão de fé da comunidade cristã, representada
nesse momento por Pedro, Tiago e João. De fato, os discípulos, no barco,
reconhecem Jesus caminhando sobre as águas e salvando Pedro de sua fraqueza de
fé: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus” (14,33). Na ocasião em que Jesus
pergunta o que dizem dele, Pedro responde: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus
vivo” (16,16). É no momento da morte de Jesus que o centurião e os guardas
declaram: “De fato, esse era Filho de Deus” (27,54). O anúncio da verdade sobre
Jesus não foi feito aos que detinham o poder político ou religioso. Também não
foi feito em algum centro ou instituição importante. Dirigiu-se, sim, a um
grupo de gente simples, num lugar social periférico.
O
imperativo “escutai-o” enfatiza a perfeita relação entre a profissão de fé em
Jesus como “Filho de Deus” e a atenção cuidadosa ao seu ensinamento. O elemento
fundamental do ensino de Jesus é que ele terá de passar pelo sofrimento e pela
morte, na perspectiva do “Servo sofredor” anunciado pelo profeta Isaías (cf.
42,1-9). Não é por acaso que Mateus insere o relato da transfiguração logo após
o primeiro anúncio de sua paixão e morte e o convite ao discipulado: “Se alguém
quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (16,24).
Portanto, os discípulos deverão compreender que o caminho para o seguimento de
Jesus, Servo de Deus, implica “descer da montanha” e assumir as consequências,
conforme o testemunho do Mestre. Porém esse não é um caminho derrotista. A vida
triunfa sobre a morte. A glória de Deus se manifestará plenamente na
ressurreição. A transfiguração é um sinal antecipado da realidade da Páscoa.
Pistas para reflexão
— Pôr-se
à disposição de Deus. As leituras deste domingo nos
apontam a dinâmica do projeto libertador de Deus: deixar as seguranças que nos
engessam para nos pormos a caminho da terra que Deus deseja para a humanidade.
A exemplo de Abraão e sua família, nós também podemos assumir a fé e a total
confiança em Deus, que sustenta e guia os nossos passos na verdade, na justiça
e no amor. Essa é a melhor herança que podemos deixar às futuras gerações.
— Assumir a missão de evangelizar. Timóteo, “aquele
que honra a Deus”, assumiu a missão de anunciar o evangelho de forma corajosa e
perseverante mesmo nas situações difíceis; também nós podemos ser anunciadores
da Boa Notícia de Jesus em nossas famílias, na comunidade e na sociedade. Isso
acontece pela coerência entre fé e vida, pelo testemunho de doação alegre,
também pela constância no testemunho de diálogo e de fraternidade. Assim,
estaremos respondendo à “santa vocação” a que fomos chamados pela bondade de
Deus.
— A vida é um permanente caminhar. Jesus foi a grande
manifestação de Deus para a humanidade. Pedro, Tiago e João foram agraciados
com uma experiência maravilhosa, participando da transfiguração de Jesus.
Também em nossa vida, Deus nos concede momentos de muita luz, consolo e força.
Tendemos, porém, a buscar e a nos acomodar ao que nos garante bem-estar,
prazeres, sensações agradáveis… Não podemos esquecer que seguir Jesus implica
“descer da montanha” do egoísmo e da acomodação. Seguir Jesus é entregar-se
pela causa da vida digna sem exclusão, alicerçada na justiça e na igualdade.
Celso
Loraschi
*Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos e
professor de evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico
de Santa Catarina (Itesc). E-mail: loraschi@itesc.org.br
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Vida Pastoral