sábado, 7 de janeiro de 2017

Homilética: Festa do Batismo do Senhor - Ano A: "O Batismo de Cristo e o nosso batismo".


A comemoração do Batismo de Nosso Senhor Jesus Cristo encerra com chave de ouro o Tempo do Natal. Grande festa para os católicos, porque é neste Batismo, como veremos, que está incluído o nosso e, portanto, o início da parti­cipação de cada um na vida sobrenatural, na vida de Deus. Adão fechou a seus descendentes as portas do Paraíso Celeste, mas Nosso Senhor Jesus Cristo, com a Encarnação, abriu-as outra vez, tornando possível aos homens, graças a seu divino auxílio e pro­teção, gozar do convívio com Ele, com o Pai e o Espírito Santo, com os Anjos e os Bem-aventurados por toda a eternidade. Tendo comentado em outras ocasiões1 os aspectos teológicos do Batis­mo do Senhor, analisemos agora este admirável mistério por uma perspectiva diversa, útil para nosso progresso espiritual.

COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS

Leituras: Isaías 42, 1-4.6-7; Atos 10,34-38; Mateus 3,13-17

Naquele tempo, 13 Jesus veio da Galileia para o rio Jordão, a fim de Se encontrar com João e ser batizado por ele.

Qual teria sido a intenção de Nosso Senhor Jesus Cristo ao escolher o rio Jordão para seu Batismo? Não haveria outro me­lhor do que este? O Jordão, que se nos afigura como um rio míti­co, é na verdade pequeno em comparação com os caudalosos cur­sos fluviais da América. Entretanto, mais uma vez, apesar da apa­rência de normalidade, algo de grandioso acontece no plano da fé. Tratava-se de um rio emblemático na história de Israel, revestido de um enorme simbolismo teológico e criado por Deus com vistas ao Batismo de Nosso Senhor. Quando os judeus saíram da escra­vidão do Egito e entraram na Terra Prometida, onde viveriam em liberdade, Josué abriu as águas do Jordão para que o povo eleito o atravessasse (cf. Js 3, 15-17). O Jordão representava a linha divisória entre a terra do tor­mento, da penitência, da dor, e a terra onde corria leite e mel. As­sim, o Batismo de Nosso Senhor abre ao povo eleito do Novo Tes­tamento, os chamados a perten­cer à Igreja, a possibilidade de deixarem para trás a escravidão do pecado e de serem introdu­zidos no Reino de Deus,4 onde corre o leite e o mel das consola­ções, das alegrias espirituais.

14 Mas João protestou, dizendo:
“Eu preciso ser batizado por Ti, e Tu vens a mim?”

São João preparava os ca­minhos do Senhor na mais com­pleta submissão a Ele. Certa­mente tinha o discernimento dos espíritos e estava tomado pelo Espírito Santo, que lhe revelara quem era Jesus (cf. Jo 1, 33). Por isso, quando ele O vê aproximar­-Se a fim de receber o batismo de penitência de suas mãos, em seguida reconhece n’Ele o Mes­sias. Era para sua chegada que o Precursor preparava as pessoas com o batismo, pelo que, sem hesitação alguma, O aponta aos outros: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29). Aquele era o Redentor, Aquele era Deus, pois existia antes dele (cf. Jo 1, 15), embora fosse seis meses mais velho.

Nessas circunstâncias, criava-se nele um choque psicológico, psicoteológico e, inclusive, vocacional: como haveria ele de bati­zar quem não precisava de Batismo? Perfeita atitude daquele que possuía uma fé em grau heroico, conforme o testemunho de sua ímpar santidade dado por Nosso Senhor: “entre os nascidos de mulher não há maior que João” (Lc 7, 28). Ele foi o maior homem que a História conhecera até aquele momento, excluído, é claro, o próprio Jesus Cristo, o Homem-Deus. Por este motivo, manifesta sua fé declarando ser ele quem devia ser batizado pelo Messias, e se sente constrangido diante da possibilidade de batizá-Lo.

São os paradoxos com que se depara, não raras vezes, quem é chamado a uma grande missão e se sente inferior a ela. São João preferia não batizar seu Deus, nessa hora, e ser batizado por Ele. Não podia compreender um ato de subordinação d’Aquele cujos caminhos vinha aplainando, mas Jesus o tranquiliza.

15a Jesus, porém, respondeu-lhe: “Por enquanto deixa como está, porque nós devemos cumprir toda a justiça!”

Se bem que Nosso Senhor não negasse que São João de­veria ser batizado por Ele, ainda que não houvesse pecado, deu a razão suprema pela qual desejou o Batismo. A justiça a que Ele se referia na resposta ao Precursor consistia no seguinte: era preciso cumprir a Lei e as profecias. A divina Justiça exigia uma reparação por nossos pecados. Por isso, tendo Se encarna­do, quis Ele, a Inocência, como primogênito do gênero humano, assumir sobre Si os crimes e misérias de toda a humanidade e entrar no Jordão a fim de submergi-los nas águas. Assim, tirava esse pesado fardo de nossas costas e destruía a “maldição que se fundava na transgressão da Lei”.5

5b E João concordou.

Expressa a suprema vontade do Divino Mestre, João con­corda e, fiel à ordem recebida, obedece, ignorando todas as apa­rências. Não se preocupa com a desproporção entre a estreite­za e simplicidade do rio Jordão e a grandeza de Nosso Senhor Jesus Cristo, que mereceria ser acolhido com mais dignidade, transportado quiçá numa sede gestatória. Ele só considera o que a fé lhe mostra: que ali está o Messias prometido, o Salvador de Israel, o Redentor do gênero humano, que ali está o Filho de Deus feito Homem (cf. Jo 1, 34).

16 Depois de ser batizado, Jesus saiu logo da água. Então o Céu se abriu e Jesus viu o Espírito de Deus, descendo como pomba e vindo pousar sobre Ele.

Ao mesmo tempo que a vida de Nosso Senhor transcorre no apagamento, há situações de marcante esplendor, formando um belíssimo contraste. Porque se, de um lado, Ele nasce numa pobre Gruta, por outro, do Oriente vêm os Reis Magos para visitá-Lo, trazendo ricos presentes. Algo parecido ocorre no episódio contemplado hoje. Jesus, após um curto diálogo com o Precursor, entra no Jordão, é batizado como os outros e sai das águas. É então que se dá um acontecimento grandioso: o Céu se abriu, significando que o acesso à bem-aventurança, antes fe­chado à humanidade decaída em virtude do pecado de Adão, fora aberto pelo poder e pela Redenção de Cristo. Ademais, era apropriado, como afirma São Tomás, que o Céu se tivesse aber­to quando o Filho de Deus recebeu o Batismo, para indicar “que o caminho do Céu está aberto para os batizados”.6

Também era conveniente que se visse o Espírito Santo, porque sendo a Redenção obra da Santíssima Trindade, de­via tornar-se patente, em certo momento, que as três Pessoas Divinas estavam unidas para conceder o perdão dos pecados e franquear o Céu aos homens.7 E apareceu sob a forma de pom­ba porque era preciso um elemento concreto que exprimisse inequivocamente a descida do Espírito Santo sobre Nosso Se­nhor e sobre todos os batizados.8 Estava o Filho, manifestou-Se o Espírito Santo e se ouviu a voz do Pai.

17 E do Céu veio uma voz que dizia: “Este é o meu Filho amado, no qual Eu pus o meu agrado”.

A conclusão da cena nos abre os olhos para um dos ensinamentos mais importantes desta Litur­gia. Ao constituir o univer­so, Deus teve como mo­delo Nosso Senhor Jesus Cristo, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade Encarnada, em quem está representado, numa sínte­se perfeitíssima, o conjun­to das criaturas. Ele é, no dizer de São Paulo, “o pri­mogênito de toda a cria­ção. N’Ele foram criadas todas as coisas nos Céus e na Terra, as criaturas visí­veis e as invisíveis. Tronos, Dominações, Principados, Potestades: tudo foi cria­do por Ele e para Ele” (Col 1, 15-16). Ele é, pois, a causa efetiva e exemplar de tudo quan­to foi feito.

Desde toda a eternidade, Deus concebeu a criação ― os minerais, os astros, a vegetação, os animais, segundo as suas espécies, os homens, na sua variedade de inteligência e tem­peramento, os Anjos, na sua incalculável diversidade ― com o projeto, por assim dizer, de engendrar filhos para Si. No entan­to, que meio encontrou Ele para fazer com que simples cria­turas contingentes transpusessem o abismo que separa a na­tureza divina das demais naturezas, o infinito do finito, e par­ticipassem de sua natureza, adquirindo a filiação divina? Isso se fez possível com a maravilha sobrenatural da graça ― sexto plano da criação ―, pela qual as criaturas racionais participam da própria vida de Deus e se tornam seus filhos. Uma só “gota” de graça vale mais do que todo o universo, já que ― explica São Tomás9 ― pertence ela à ordem divina, infinitamente su­perior a qualquer natureza criada. Ora, o supremo arquétipo desta filiação divina autêntica é Nosso Senhor Jesus Cristo, Fi­lho por excelência, inimaginável, insuperável, conforme o Pai revela na teofania posterior ao Batismo: “Este é o meu Filho amado, no qual Eu pus o meu agrado”.

Tanto amou Deus esta filiação realizada por Jesus com a maior perfeição, que colocou bem junto a Ele sua Mãe Virgi­nal, com quem o Espírito Santo gera sobrenaturalmente uma multidão inumerável de filhos, que Deus “predestinou para se­rem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que este seja o primogênito entre uma multidão de irmãos” (Rm 8, 29). São as águas do Batismo que nos elevam da condição de simples criatu­ra, amaldiçoada pelo pecado, para fazer parte da família divina.

O Batismo de Jesus, que a Igreja comemora neste dia, abre as portas para a instituição do Batismo sacramental, pelo qual se reproduzem os filhos adotivos de Deus através do Filho Unigê­nito “muito amado”, conforme comenta São Tomás: “Para que algo seja aquecido, deve sê-lo pelo fogo, pois só se obtém a par­ticipação em algo através daquilo que tem a mesma natureza; assim também a adoção filial deve ser feita por meio do Filho, que o é por natureza”.10

PARA REFLETIR

Toda a pregação de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Igre­ja tem como núcleo o convite para sermos filhos de Deus pelo Batismo. Este é um dos maiores milagres que é possível fazer. Se alguém transformasse um pedregulho em colibri, faria um milagre muito menor do que o operado no Batismo. Entre a pedra e o colibri há certa proporção, pois ambos pertencem à natureza material. Mas, tornar uma criatu­ra humana partícipe da natureza divina é um salto infinito, que Nosso Senhor nos concede com o Batismo.

Poder-se-ia objetar que Filho, de fato, é só Jesus Cristo, o Unigênito de Deus, e que nós somos apenas filhos por adoção, fi­liação cujo alcance não passaria de uma mera formalidade jurídica, um título honorífico desprovido de valor intrínseco. Não obstante, a Escritura afirma com clareza que essa filiação adotiva é muito mais substanciosa do que a adoção concebida em termos humanos.

Um dos maiores empenhos de Nosso Senhor durante sua permanência entre os homens foi o de vincar em nosso interior a convicção de que somos autênticos filhos de Deus. Por isso, ao encontrar-se com Jesus, Nicodemos ouve de seus divinos lábios: “Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus” (Jo 3, 3). Nascer de novo significa ter Deus como Pai, verdadeiramente… É um outro nascimento! Quando nos ensina a oração perfeita, diz o Mestre: “Pai Nos­so” (Mt 6, 9); e, depois da Ressurreição, prepara seus discípu­los para a Ascensão, anunciando: “Subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (Jo 20, 17). Demonstra com estas palavras que somos ir­mãos d’Ele, filhos do mesmo Pai. Esta funda­mental doutrina é ainda frisada por São João, no prólogo de seu Evan­gelho: “a todos aqueles que O receberam, aos que creem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1, 12); e na sua Pri­meira Epístola: “Consi­derai com que amor nos amou o Pai, para que se­jamos chamados filhos de Deus. E nós o somos de fato” (I Jo 3, 1). O Após­tolo não é menos incisivo ao insistir com os gála­tas: “já não és escravo, mas filho. E se és filho, então também herdeiro por Deus” (Gal 4, 7); ou, com os romanos: “somos filhos de Deus. E, se filhos, também herdeiros, herdeiros de Deus, co-herdeiros de Cristo” (Rm 8, 16-17).

Refutando os erros de certos teólogos heterodoxos que de­fendiam ser o Batismo apenas uma capa, uma cobertura posta por cima da nossa corrupção, o Concílio de Trento definiu que os batizados “se tornaram inocentes, imaculados, puros, sem mancha, filhos diletos de Deus”;11 e explica que, pela justifica­ção, o pecador passa “do estado no qual o homem nasce filho do primeiro Adão, ao estado de graça e ‘de adoção dos filhos de Deus’ (Rm 8, 15)”.12

Sim, filiação real, porque por meio deste Sacramento Deus enxerta em nós sua própria vida. Não, portanto, à maneira de um reboco extrínseco a uma parede e que de si não a modifica inte­riormente, mas como se alguém, por milagre, injetasse ouro nessa mesma parede, a ponto de quase não mais se ver areia ou reboco, mas tão só o precioso metal. Esta figura é ainda inadequada e po­bre para exprimir o que se opera na alma quando lhe é infundida uma qualidade sobrenatural que a torna deiforme, ou seja, seme­lhante a Deus em sua própria divindade. E com a graça santifi­cante a alma recebe, por ação divina, as virtudes ― fé, esperança, caridade, prudência, justiça, fortaleza, temperança ― e os dons do Espírito Santo ― sabedoria, entendimento, ciência, conselho, piedade, fortaleza, temor ―, pelos quais passa a agir como Deus.

Neste mundo, quantas vezes as pessoas anseiam por con­seguir uma vaga num colégio, num emprego, num clube, ou em outros lugares que as possam prestigiar. Ora, no Céu temos re­servada uma vaga eterna, um trono extraordinário, uma coroa de glória, a partir do momento em que as águas batismais nos caem sobre a cabeça, constituindo-nos herdeiros de Deus e ga­rantindo-nos o convívio com Ele na felicidade sem fim.

E o grande problema de nossos dias é ter sido esquecida esta verdade. Vivemos numa civilização ― se assim a podemos chamar ― feita de pecado, especialmente a impureza, a revol­ta contra Deus e o igualitarismo. Nela, a humanidade ignora o que há de principal na existência: o chamado para essa filiação divina. Quanto precisaríamos crescer na devoção ao nosso Ba­tismo pessoal, ao Batismo dos outros com quem nos relaciona­mos! Que veneração deveríamos conservar pela pia batismal onde fomos batizados! Como teríamos de celebrar com fervor o dia do nosso Batismo, considerando-o muito mais importan­te do que o próprio dia do nascimento, porque nele nascemos para a vida sobrenatural, nascemos para o Céu! Eis a maravi­lha que nos lembra a festa do Batismo de Nosso Senhor Jesus Cristo.

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1) Sobre o tema ver também: CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. O Batismo do Se­nhor. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.13 (Jan., 2003); p.6-11; No Batismo, Ele lavou nossas misérias. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.133 (Jan., 2013); p.10-17; Comentário ao Evangelho da Festa do Batismo do Senhor – Anos B e C, nos Volumes III e V desta coleção, respectivamente.

2) Cf. SÃO BERNARDO. Sermones de Tiempo. En la Vigilia de Navidad. Sermón I, n.4. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1953, v.I, p.231.

3) SÃO JOÃO DE ÁVILA. Sermones de Tiempo, 5. Epifanía, I. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1953, v.II, p.125.

4) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.39, a.4. 

5) SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía XII, n.1. In: Obras. Homilías sobre el Evan­gelio de San Mateo (1-45). 2.ed. Madrid: BAC, 2007, v.I, p.222.

6) SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., a.5.

7) Cf. Idem, a.8.

8) Cf. Idem, a.6, ad 2-3. 

9) Cf. Idem, I-II, q.112, a.1.

10) SÃO TOMÁS DE AQUINO. Super Epistolam Sancti Pauli Apostoli ad Ephesios lectura. C.I, lect.1.

11) Dz 1515.

12) Dz 1524.

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