terça-feira, 4 de outubro de 2016

Homilética: 28º Domingo do Tempo Comum - Ano C: "Justificados pela fé".



A liturgia do 28º domingo do tempo comum nos apresenta um tema bem caro ao evangelista Lucas e muito esquecido em nossa sociedade: a gratidão. Em nossos dias de individualismo e de egocentrismo exacerbado, por causa do mito do bem-estar e da idolatria do mercado, a gratidão brilha como uma luz nas trevas.

Vivemos num mundo em que a vida humana transformou-se num grande comércio onde tudo se compra e tudo se paga… É a época do descartável! Diante dessa realidade, muitos perderam o valor da gratuidade e da gratidão. “Obrigado” é uma palavra tão simples, mas tão esquecida por muitos! No Evangelho (Lc. 17, 11-19) Jesus cura dez leprosos, mas apenas um volta para agradecer.

Com freqüência, temos melhor memória para as nossas necessidades e carências do que para os nossos bens. Vivemos pendentes daquilo que nos falta, e reparamos pouco naquilo que temos, e talvez seja por isso que ficamos aquém no nosso agradecimento. Pensamos que temos pleno direito ao que possuímos e esquecemo-nos do que diz Santo Agostinho: “Nada é nosso, a não ser o pecado que possuímos. Pois que tens tu que não tenhas recebido? (1Cor 4, 7).”

Toda a nossa vida deve ser uma contínua ação de graças. Lembrai-vos das maravilhas que Ele fez, exorta o salmista. O samaritano, através do seu mal, pôde conhecer Jesus Cristo e por ser agradecido conquistou a sua amizade e o incomparável dom da fé: …Tua fé te salvou. Ou seja, a fé salva!

Martinho Lutero foi um sacerdote agostiniano alemão que viveu no século XVI, homem de grande inteligência e de uma fina sensibilidade. Atormentado pelos seus escrúpulos de consciência e sentindo-se oprimido pelas normas da religião, passou por uma experiência que mudaria a sua vida. Leu Rm 1,17: “o justo viverá da fé”. Lutero entendeu que bastaria a fé, somente a fé, para salvar-se; as obras não contariam para nada nesse processo de salvação. A partir daquele momento, seria clássico o tripé luterano: Sola fides! Sola gratia! Sola Scriptura! A tradução é fácil: Somente a fé! Somente a graça! Somente a Bíblia! Com exclusão das obras, do esforço ascético e da Tradição da Igreja. Logicamente, a partir daquele momento, Lutero já não se sentia ligado à autoridade da Igreja Católica para interpretar a Sagrada Escritura. Curiosamente, parece que Lutero não leu muito bem o seguinte capítulo da Carta aos Romanos que, entre outras coisas, nos diz que Deus “retribuirá a cada um segundo as suas obras” (Rm 2,6), nem tampouco o que escreveu o mesmo Apóstolo aos gálatas: que a fé “opera pela caridade” (Gl 5,6).

Enfim, o Concilio de Trento teve que tratar dessa questão e fê-lo magistralmente no ano 1547. O fruto daquela Sessão VI do Concilio foi o valiosíssimo Decreto sobre a justificação. É interessante observar que, desde o começo, o Concilio não se preocupou em dar uma interpretação imediata a uma passagem concreta, como poderia ser Rm 1,17, mas primeiramente quis conhecer profundamente o que significa ser justificado, ser justo, o que quer dizer “justificação”. Depois de deixar claro até que ponto chegou o drama do ser humano – pecador, imundo, separado de Deus, com uma vontade e uma liberdade enfermas, incapaz de salvar-se a si mesmo –, nos explica que a salvação nos vem de Jesus Cristo. Ele nos salvou, mas cada de um nós tem que deixar-se lavar pelo seu sangue purificador. Finalmente, o Concilio nos diz que a justificação não é somente remissão dos pecados, mas também santificação e renovação do homem interior pela voluntária recepção da graças e dos dons. E qual é o papel da fé na justificação já que a Escritura afirma que o somos justificados pela fé (cfr. Rm 1,17; 3,28)? O Concilio interpreta essas palavras da Escritura com outras: “sem fé é impossível agradar a Deus, pois para se achegar a ele é necessário que se creia primeiro que ele existe e que recompensa os que o procuram” (Hb 11,6). Ser justificado pela fé, ser salvado e santificado pela fé, significa que para ser justo diante de Deus é preciso antes crer que ele existe e que é a causa da nossa santificação. Com efeito, como estar inserido em Cristo se não cremos nele e se não permitimos, livremente, que ele entre nas nossas vidas? Deus é muito cortês, se nós não permitimos que ele entre na nossa casa, ele não entrará, mas continuará insistindo.

“Levanta-te a tua fé te salvou” (Lc 17,10). Abracemos cada vez mais a salvação doada por Cristo a cada um de nós, mas não nos esqueçamos de que é importante voltar para agradecer com obras e na verdade. Aquele samaritano, que antes era leproso como os outros, quis percorrer o caminho de volta para agradecer a Jesus pessoalmente prostrando-se aos seus pés. A sua fé foi acompanhada por umas quantas obras que mereceram um elogio e uma exclamação de Jesus: “Não se achou senão este estrangeiro que voltasse para agradecer a Deus?!” (Lc 17,18). Agradeçamos ao Senhor “opere et veritate”, com obras e na verdade, pois, salvados em Cristo Jesus, “esforçai-vos quanto possível por unir à vossa fé a virtude, à virtude a ciência, à ciência a temperança, à temperança a paciência, à paciência a piedade, à piedade o amor fraterno, e ao amor fraterno a caridade. (…) Portanto, irmãos, cuidai cada vez mais em assegurar a vossa vocação e eleição” (2 Pd 1,5-10). Sim, a nossa fé nos salvou, mas é preciso continuar cuidando – por uma vida santa – essa salvação para que aumente em nós e para que um dia seja eterna e vejamos, face a face, a Deus Pai e Filho e Espírito Santo.

Comentário dos textos bíblicos



Leituras: 2Rs 5,14-17; Sl 97; 2Tm 2,8-13; Lc 17,11-19

Meus caros amigos, a leitura do Evangelho deste domingo, narrado pelo evangelista São Lucas nos leva ao episódio da cura operada por Jesus dos dez leprosos, dos quais só um samaritano volta para agradecer. Em ligação a este texto, está a primeira leitura tirada do segundo Livro dos Reis (cf. 2Rs 5,1-14), onde temos o relato da cura de Naamã, comandante do exército do rei da Síria, também leproso e, para se curar da lepra, vai ter com o profeta Eliseu, que lhe pede apenas para confiar em Deus e mergulhar sete vezes nas águas do rio Jordão.  Ao ser curado, Naamã volta a procurar o profeta e, reconhecendo nele o mediador de Deus, professa a fé ao único Senhor.

No tempo de Jesus a lepra era tida como uma doença terrível. Os dez leprosos são curados por Jesus, quando iam apresentar-se aos sacerdotes, como Jesus ordenara: “Ide mostrar-vos aos sacerdotes” (v. 14).  Esta ordem de Jesus é o cumprimento de uma prescrição legal.  O leproso excluído da comunidade de Israel como impuro, só poderia ser reintegrado, após a declaração do sacerdote (cf. Lv 14,2-3).  Na obediência a ordem de Jesus aqueles homens encontram a cura.

Os dez leprosos do Evangelho curados por Jesus, vão ao seu encontro, param à distância e gritam: “Jesus, Mestre, tem compaixão de nós” (Lc 17, 13). Estão doentes e procuram alguém que os cure. Segundo a teologia da época, a doença, em especial a letra, era considerada como um castigo de Deus.  Agora aquele homem se sente perdoado por Deus e ele o louva com todas as suas forças: “Um deles, ao perceber que estava curado, voltou glorificando a Deus em alta voz; atirou-se aos pés de Jesus, com o rosto por terra, e lhe agradeceu” (v. 15s).

A este samaritano que volta para agradecer, a ele o Senhor diz: “Levanta-te e vai! Tua fé te salvou” (Lc 17,19). É a fé que salva o homem, restabelecendo-o na sua relação profunda com Deus, consigo mesmo e com os outros; e a fé expressa-se no reconhecimento.

Com isto, tomamos consciência acerca da importância da fé para aqueles que, angustiados pelo sofrimento e pela enfermidade, se aproximam do Senhor. No encontro com Ele, para os que acreditam, nunca estão sozinhos! Com efeito, no seu Filho, Deus não nos abandona às nossas angústias e sofrimentos, mas está próximo de nós e deseja curar profundamente o nosso coração (cf. Mc 2,1-12).

O samaritano curado, ao agradecer, demonstra que considera a sua cura como um dom que provém de Deus. Portanto, a fé o fez abrir à graça do Senhor e reconhecer que tudo é dom, tudo é graça. Vendo-se purificado, cheio de admiração e de alegria, contrariamente aos demais, vai imediatamente até Jesus para lhe manifestar o próprio reconhecimento, deixa entrever que a saúde readquirida é algo precioso, pois constitui um sinal da salvação que Deus nos concede através de Cristo, que o exorta: “A tua fé te salvou!” (v.19).

A gratidão é uma virtude elementar.  O samaritano, percebendo que foi curado, volta para agradecer ao Senhor o benefício recebido.  A gratidão é uma das mais nobres virtudes do coração humano: “Sede agradecidos” nos recomenda São Paulo na carta aos colossenses (Cl 3,15).

O texto ainda nos faz perceber como Jesus reservou sempre uma atenção particular para com os enfermos. Ele não só convidou os seus discípulos a curar as feridas dos doentes (cf. Mt 10,8; Lc 9,2; 10,9), mas também instituiu para eles um Sacramento específico: a Unção dos Enfermos. A Carta de São Tiago oferece um testemunho da presença deste gesto sacramental já na primeira comunidade cristã (cf. Tg 5,14-16). Mediante a Unção dos Enfermos, acompanhada pela oração dos presbíteros, a Igreja inteira recomenda os doentes ao Senhor, a fim de que alivie as suas penas e os salve.

A reflexão deste texto evangélico pode ser também para nós uma ocasião propícia e preciosa para redescobrir a força e a beleza da fé diante da dor e do sofrimento. Podemos encontrar sempre uma âncora segura na fé, alimentada pela escuta da Palavra de Deus, da oração pessoal e dos Sacramentos, para vencermos as provações e dificuldades de cada dia.  O sofrimento pode constituir um tempo de graça, e pode proporcionar ao doente um voltar a si mesmo.

Jesus cura dez leprosos, enfermidade que na época era considerada uma “impureza contagiosa” que exigia uma purificação ritual (cf. Lv 14, 1-37). Nos tempos atuais, a lepra que deturpa a humanidade parece ser o pecado, o ódio, a violência…  Mantendo-se à distância, os leprosos gritaram, dizendo: “Jesus, Mestre, tem misericórdia de nós!” (v.13).  Esses homens mantinham-se à distância porque não ousavam, levando em conta o seu estado, avançar para mais perto de Jesus. O mesmo pode acontecer conosco. Enquanto permanecemos nos nossos pecados, ficamos afastados. Portanto, para recuperarmos a saúde e nos curarmos da lepra dos nossos erros, devemos suplicar com voz forte: “Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!” (v. 13).

Também neste sentido a Igreja oferece aos seus filhos o sacramento da penitência, pelo qual retornamos à casa do Pai, da qual o pecador se afastou pelo pecado.  A confissão dos pecados perante o sacerdote é um elemento essencial deste sacramento e pela absolvição sacramental do sacerdote, Deus concede ao penitente o perdão e a paz.

Podemos ainda observar que Jesus não cura apenas um leproso, mas dez. Este número na Sagrada Escritura tem um significado simbólico: indica totalidade.  Os dez leprosos, portanto, representam todo um povo.  A lepra é o símbolo da condição do pecado, do erro, do distanciamento de Deus.  Com isto, a lição do texto evangélico é também esta: Todos precisam ter um encontro com Jesus. Todos precisam da salvação do Senhor.

Um outro detalhe é que os dez leprosos não buscam a salvação individualmente, mas em conjunto. Eles fazem uma oração comunitária: “Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!” (v. 13).  Isto indica que houve integração entre eles.  E um deles era samaritano.  A história nos mostra que os judeus não se davam com os samaritanos, mas diante da desgraça e da dor, ocorre a unidade.

Que também tenhamos a coragem de gritar por socorro ao Senhor para que ele cure a nossa lepra, especialmente, aquela espiritual, a fim de que, reconhecendo as maravilhas que ele opera na nossa vida, possamos cada vez mais ter uma fé mais fortalecida.

Quantos benefícios nós já recebemos de Deus, mas muitas vezes somos indiferentes.  No momento em que somos agradecidos a Deus nossa vida se transforma.  Devemos louvar e agradecer sempre aquilo que o Senhor nos dá constantemente. Só o fato de sermos chamados à existência já bastaria para transformarmos a nossa vida em um perene louvor. É preciso saber agradecer a Deus sempre.

Continuando a Eucaristia, invocamos a intercessão de Maria, Mãe de Misericórdia, a ela elevemos o nosso olhar para que, com a sua maternal compaixão, acompanhe e sustente a nossa fé e a nossa esperança. Assim seja.


PARA REFLETIR

Salta aos olhos a mensagem da Palavra de Deus neste Domingo: a gratidão, o reconhecimento cheio de amor pela ação benéfica de Deus na nossa vida. Gratidão e ingratidão – eis o que aparece nas leituras de hoje. Primeiro, a gratidão de Naamã, um pagão, inimigo de Israel, que, no entanto, sabe ser agradecido a Deus. Curado de sua lepra, voltou para agradecer ao profeta Eliseu e, como sinal de conversão ao Deus verdadeiro, levou terra de Israel para Damasco, sua cidade, para, sobre essa terra, adorar a Deus. O reocnhecimento pelo benefício de Deus fez desse pagão um amigo do Senhor e salvou a sua existência de um caminho sem sentido. Também a gratidão de outro pagão, o leproso samaritano que soube, reconhecido, voltar a Jesus “para dar glória a Deus”. Mas também, hoje, aparece a ingratidão. Nove leprosos, filhos do povo de Israel, que curados, não retornam para agradecer o dom… Dez foram curados, somente um foi salvo, o leproso pagão e estrangeiro:“Levanta-te e vai! Tua fé te salvou!”

Estejamos atentos! Hoje, temos tudo… Chegamos a um alto grau de desenvolvimento tecnológico e científico, compreendemos tantos dos processos e dinamismos da natureza e, num mundo ativista e auto-suficiente, temos a sensação ilusória que nos bastamos, que tudo é nosso, que tudo é fruto de nossos esforços, que tudo foi conquista nossa, simplesmente. Vamos nos tornando cegos para a presença cuidadosa, providencial e cheia de amor de um Deus que sempre vela por nós. Vamos nos tornando gravemente insensíveis para perceber a vida como dom, como graça, como presente. É impressionante como o mundo nos vai tornando dormentes, insensíveis mesmo, para Deus! Se avida já não mais é percebida como um dom, também do nosso coração já não mais brota a ação de graças. Mas, uma vida assim é ela mesma, sem graça, ela mesma uma “des-graça”! Somente quando abrimos o coração e os olhos da fé, podemos perceber que tudo é graça, imenso dom de um Amor sem fim e, então, seremos realmente curados de uma vida sem sentido e libertos para correr livres nos caminhos da existência. Poderemos ouvir a palavra de Jesus: “Levanta-te e vai! A tua fé te salvou! Salvou-te de uma vida mesquinha, fechada, incapaz de olhar as estrelas, incapaz de comunhão com o Pai do céu, incapaz de dizer “Pai nosso”  e de reconhecer nos outros teus irmãos…” Mas, para isso – nunca esqueçamos – é necessário um coração de pobre, um coração humilde, que reconheça que tudo quanto possuímos foi recebido de Deus.

Vale, então, para nós, no corre-corre da vida, a advertência de São Paulo, na segunda leitura de hoje: “Lembra-te de Jesus Cristo, ressuscitado de entre os mortos!” Lembrar-se de Cristo é tê-lo como palavra última e total de amor que o Pai nos pronunciou. Lembrar-se de Jesus é nunca esquecer que Deus está conosco, amando-nos, perdoando-nos e acolhendo-nos como Deus providente e misericordioso. Lembrar-se de Jesus morto e ressuscitado é nunca duvidar da misericórdia de Deus e de seu compromisso na nossa existência e na existência do mundo. “Lembra-te de Jesus Cristo ressuscitado! Merece fé esta palavra: se com ele morremos, com ele viveremos. Se com ele ficamos firmes, com ele reinaremos. Se nós o renegarmos, também ele nos negará. Se lhe formos infiéis, ele permanece fiel, pois não pode negar-se a si mesmo!” Aqui está o motivo último e irrevogável de toda a nossa gratidão a Deus: Jesus Cristo, dado-nos como carinho e fidelidade do Pai! É de tal modo este dom, tão irrevogável, tão absoluto, que vale a pena morrer com ele para, nele, viver uma vida nova; vale a pena sofrer com ele para, nele, reinarmos. É interessante como o Apóstolo sublinha a fidelidade amorosa de Deus em Jesus: “Se lhe somos infiéis, ele permanece fiel!” Eis um Deus que não se escandaliza com nossas debilidades, mas é sempre disposto a recomeçar conosco. “Se nós o negamos, também ele nos negará”… Esta é a única atitude que nos faz perdê-lo para sempre: a ingratidão de negá-lo em nossa vida, de fechar-se de tal modo para ele, que já não mais o reconheçamos, que já não mais deixemos que ele seja o Senhor de nossa existência, que já não mais percebamos que tudo é graça, tudo é presente de amor.

Cuidemos, então do modo como estamos construindo a nossa existência: como um fechar-se sobre nós mesmos, na auto-suficiência, ou como uma abertura livre e filial, pronta a acolher e viver a vida como um dom do Senhor. Como cantam os focolares: “Se um dia perguntares quem sou, não direi o meu nome. Direi: ‘Obrigado’, por tudo e pra sempre, ‘obrigado, obrigado’”!

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