sábado, 3 de setembro de 2016

Por amor de Cristo, ao serviço da sua palavra nem a mim mesmo perdoo


Filho do homem, coloquei-te como sentinela na casa de Israel. Deve notar-se que o Senhor chama sentinela àquele que envia a pregar. De facto, a sentinela está sempre num lugar alto, a fim de perscrutar tudo o que possa vir ao longe. Todo aquele que é colocado como sentinela do povo, deve, portanto, pela sua vida, situar-se bem alto, para ser útil com a sua previdência.
 
Oh como são duras para mim estas palavras que digo! Ao falar assim, estou a ferir-me a mim próprio, porque nem a minha pregação nem a minha vida estão à altura da missão que desempenho.
 
Reconheço-me culpado, confesso a minha tibieza e negligência. Talvez o próprio reconhecimento da culpa me alcance o perdão do piedoso Juiz.

Quando vivia no mosteiro, eu conseguia guardar a minha língua de conversas inúteis e manter quase continuamente o meu espírito em atitude de oração. Mas depois que tomei sobre meus ombros a responsabilidade pastoral, o espírito não consegue recolher-se tão assiduamente como queria, porque se encontra solicitado por muitas preocupações.

Vejo-me obrigado a ocupar-me ora dos problemas das igrejas ora dos mosteiros e analisar muitas vezes a vida e atuação de cada pessoa em particular; ora a ocupar-me de assuntos de ordem civil, ora a lamentar os estragos dos exércitos invasores dos bárbaros e a temer os lobos que ameaçam o rebanho que me foi confiado; ora a zelar pelos interesses daqueles que vivem submetidos a uma disciplina regular, ora a suportar com paciência certos assaltantes, ora a sair-lhes ao encontro para salvaguarda da caridade.

Estando assim dividido e subjugado por tão numerosas e tão grandes preocupações, como poderá o meu espírito recolher-se e concentrar-se para se poder dedicar plenamente à pregação e não se afastar do ministério da palavra? Além disso, obrigado por dever de ofício, tenho de tratar muitas vezes com os homens do mundo, o que me leva por vezes a afrouxar o domínio da língua. Na verdade, se mantenho nesta matéria uma disciplina rigorosa, sei que isso afastará de mim os mais fracos e assim nunca poderei atraí-los ao que pretendo. Por isso acontece muitas vezes que também ouço pacientemente as suas conversas inúteis. Mas porque também eu próprio sou fraco, deixo-me atrair um pouco para essas palavras ociosas e começo a falar de bom grado sobre aquilo que principiara a ouvir contrariado; e acabo por ficar com gosto, onde antes me repugnava cair.
 
Quem sou eu, portanto, ou que espécie de sentinela sou eu, que, em lugar de permanecer firme sobre a alta montanha, me encontro prostrado, pelo meu modo de proceder, no vale da fraqueza? Mas o Criador e Redentor do género humano é assás poderoso para me conceder a mim, embora indigno, a altitude da vida e a eficácia da linguagem: é por seu amor que, ao serviço da sua palavra, nem a mim mesmo perdoo.



Das Homilias de São Gregório Magno, papa, sobre o profeta Ezequiel
(L. 1, 11, 4-6: CCL 142, 170-172) (Sec. VI)

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