terça-feira, 9 de agosto de 2016

Homilética: 20º Domingo do Tempo Comum - Ano C: "Opção por ou contra Cristo".





A Palavra de Deus que hoje nos é servida convida-nos a tomar consciência da radicalidade e da exigência da missão que Deus nos confia. Não há meios-termos: Deus convida-nos a um compromisso, corajoso e coerente, com a construção do “novo céu” e da “nova terra”. É essa a nossa missão profética.

A primeira leitura apresenta-nos a figura do profeta Jeremias. O profeta recebe de Deus uma missão que lhe vai trazer o ódio dos chefes e a desconfiança do Povo de Jerusalém: anunciar o fim do reino de Judá. Jeremias vai cumprir a missão que Deus lhe confiou, doa a quem doer. Ele sabe que a missão profética não é um concurso de popularidade, mas um testemunhar, com verdade e coerência, os projetos de Deus.

Evangelho reflete sobre a missão de Jesus e as suas implicações. Define a missão de Jesus como um “lançar fogo à terra”, a fim de que desapareçam o egoísmo, a escravidão, o pecado e nasça o mundo novo – o “Reino”. A proposta de Jesus trará, no entanto, divisão, pois é uma proposta exigente e radical, que provocará a oposição de muitos; mas Jesus aceita mesmo enfrentar a morte, para que se realize o plano do Pai e o mundo novo se torne uma realidade palpável.

A segunda leitura convida o cristão a correr de forma decidida ao encontro da vida plena – como os atletas que não olham a esforços para chegar à meta e alcançar a vitória. Cristo – que nunca cedeu ao mais fácil ou ao mais agradável, mas enfrentou a morte para realizar o projeto do Pai – deve ser o modelo que o cristão tem à frente e que orienta a sua caminhada.

Comentário dos textos bíblicos

Textos: Jr 38,4-6.8-10; Hb 12,1-4; Lc 12,49-53

A contradição de que Jesus é sinal, segundo o evangelho, prefigura-se na vida daquele, entre os profetas, que mais faz pensar em Jesus: Jeremias. A missão de Jeremias era muito ingrata. Estamos em 587 a.C. Dez anos antes, em 597 a.C., o rei da Babilônia, Nabucodonosor, já havia mostrado seu poder em Jerusalém e substituído o rei Joaquim (Jeconias) por Sedecias, com a intenção de que este lhe fosse submisso. Porém, por alguma ilusão de grandeza nacional ou por causa de seus amigos políticos, Sedecias preferiu optar pelos egípcios. Agora, Jeremias enxergava, com lucidez profética, que a política do rei Sedecias, querendo aliar-se aos egípcios, já em fase de declínio, era uma opção errada. O rei e a elite de Jerusalém se achavam inexpugnáveis. Nas palavras do profeta Ezequiel, eles consideravam Jerusalém uma panela e eles a carne dentro. Ilusão: Nabucodonosor iria fritar a panela com a carne dentro, até a panela derreter (Ez 11,3; 24,3-5.10-11)!

Jeremias, na sua honestidade de porta-voz de Deus, com aquela voz que lhe queimava dentro (Jr 20,9), não podia deixar de denunciar a farsa do orgulho da elite de Judá, sob pena de ser tratado como um traidor da glória nacional. Por isso, foi perseguido e jogado numa cisterna vazia com o fundo cheio de lodo (Jr 38,4-6), até que um funcionário negro, o eunuco etíope Ebed-Melec, conseguiu a transferência dele para o quartel da guarda (34,7-13).

Esse episódio foi escolhido para a primeira leitura de hoje porque prefigura em muitos pontos a sorte de Jesus, “sinal de contradição” (cf. Lc 2,34-35).

O evangelista Lucas elabora longamente a subida de Jesus, da Galileia a Jerusalém, para a Páscoa final (Lc 9,51-19,27). No percurso dessa “viagem”, Lucas insere diálogos e declarações de Jesus, muitas das quais se encontram também no Evangelho de Mateus, embora talvez em outro contexto. Trata-se de palavras de Jesus tomadas da “Quelle”, a coleção de ditos com que Mateus e Lucas enriqueceram, cada um a seu jeito, o primitivo Evangelho de Marcos. Com esses ditos, Lucas transforma o relato da viagem num ensinamento rico e, muitas vezes, radical. O de hoje, que se encontra também em Mt 10,34-36, é certamente radical. Lucas o insere logo depois de uma exortação à prontidão permanente em vista da volta do Senhor para pedir contas de nossa fidelidade e prática (Lc 10,35-48). Assim, essa perspectiva final marca as nossas opções do dia a dia. E essas opções podem opor-nos, na prática, às pessoas com as quais convivemos, nas nossas sinagogas ou igrejas e até nas nossas casas e famílias: “pai contra filho e filho contra pai, mãe contra filha e filha contra mãe, sogra contra nora e nora contra sogra” – como já dizia o profeta Miqueias (Mq 7,3). Aliás, o fato de Jesus citar um profeta acrescenta uma dimensão especial: o cumprimento das Escrituras. Aquilo de que falavam os profetas alcança sua plenitude agora.

A palavra de Jesus supõe que o tomem pelo Messias (em 9,18-20 Simão já havia declarado essa opinião). Mas não é um Messias como eles imaginam, alguém que produza pacificamente e quase que por milagre a paz. Que a “paz” fosse o grande presente do Messias era a expectativa corriqueira, e isso no sentido mais amplo que se possa imaginar, pois na língua de Jesus paz significa a plenitude, a satisfação de tudo o que o ser humano possa desejar honestamente diante de Deus. O problema é que a paz messiânica é fruto da justiça (Is 32,17), supõe o agir justo dos “filhos da paz”. E é isso, exatamente, que vai dividir as pessoas, de modo que o Messias, de fato, traz uma divisão. E o critério dessa divisão é Jesus mesmo. O que combina com seu caminho, com seu modo de agir, garante o beneplácito de Deus; o contrário, não. É bom lembrar o que já anunciou João Batista: o “mais forte” que viria depois dele batizaria com o Espírito Santo e com fogo (Lc 3,16). Pois bem, o fogo chegou (Lc 12,49).

Apesar de escolhida sem relação intencional com o evangelho e a primeira leitura, mas em função da lectio contínua da carta aos Hebreus, a segunda leitura reforça a mensagem principal da liturgia de hoje: a fidelidade a Deus e a firmeza no testemunho. Esse é, de fato, o conteúdo dos maravilhosos capítulos 11 e 12 da carta. O texto de hoje evoca a imagem do cristão como estando no estádio de esportes rodeado de testemunhas – em grego: mártires! – e com os olhos fixos em Jesus Cristo. Jesus é chamado “aquele que conduz” (archegós) e “completa” (teleiotés) a nossa fé, linguagem militar, correspondente ao estilo retórico daquele tempo, mas suficientemente clara para entregar o recado: do início até o fim, podemos seguir confiantemente Jesus em nossa performance no estádio da vida, completar nosso percurso, combater o bom combate, enfrentando as maiores dificuldades, como ele mesmo enfrentou a cruz (Hb 12,2). Diante disso, nada de desânimo! Mensagem oportuna para o momento que vivemos.

PARA REFLETIR

Caros irmãos e irmãs, o Evangelho deste domingo começa definindo a missão de Jesus como um “lançar fogo à terra”, a fim de que desapareça o pecado e nasça um novo tempo. A proposta de Jesus trará, no entanto, divisão, pois é uma proposta exigente, que provocará a oposição de muitos.  Na primeira parte do texto: “Eu vim para lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso!” (v. 49).  No Antigo Testamento o fogo traz consigo um elemento teofânico, usado para representar a santidade divina (cf. Ex 3,2; 19,18; Dt 4,12; 2Rs 2,11).  O fogo também aparece na linguagem dos profetas para ressaltar o quadro do castigo das nações pecadoras (cf. Is 30,27.30.33). No entanto, ao mesmo tempo que castiga, o fogo também faz desaparecer o pecado (cf. Is 9,17-18; Jr 15,14; 17,4.27); e surge, assim, como elemento de purificação e transformação (cf. Is 6,6; Dn 3). Neste contexto, o fogo tem um poder transformador, e dele  nascerá o mundo novo, de justiça e de paz.

Jesus veio revelar aos homens a santidade de Deus. A sua proposta destina-se a destruir o erro e o pecado. Também podemos lembrar do Espírito Santo, quando no dia de Pentecostes, desceu como línguas de fogo sobre os apóstolos e a Virgem Maria, estando eles reunidos em oração no Cenáculo (cf. At 2,3-11).  O Espírito Santo  passa a dar energia e força a eles, para que possam propagar o fogo da sua palavra e do seu amor, como pedimos na oração: “Vinde Espírito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis e acendei neles o fogo do vosso amor…”.

Na segunda parte (v. 51-53), Jesus confessa que não veio trazer a paz, mas a divisão: “Julgais que Eu vim estabelecer a paz na terra?” E acrescenta: “Daqui por diante estarão cinco divididos numa só casa: três contra dois e dois contra três; dividir-se-ão o pai contra o filho e o filho contra o pai, a mãe contra a filha e a filha contra a mãe, a sogra contra a nora e a nora contra a sogra” (Lc 12,51-53).

A Sagrada Escritura nos diz que a paz é um dom messiânico (cf. Lc 2,14.29; 7,50; 8,48; 10,5-6; 11,21; 19,38.42; 24,36) e que a função do Messias será guiar os passos dos homens “no caminho da paz” (Lc 1,79).  Ele é mensagem de paz por excelência. O Cristo Senhor, como escreve São Paulo, “é a nossa paz” (Ef 2,14).  Ele morreu e ressuscitou para derrubar o muro da inimizade e inaugurar o Reino de Deus que é amor, alegria e paz. Jesus é anunciado no Antigo Testamento como o príncipe da paz (cf. Is 9,5) e caberia a ele anunciar a paz aos povos (cf. Zc 9,10).  Por ocasião do seu nascimento os anjos anunciaram: “Paz na terra” (Lc 2,14). E após a sua ressurreição ele aparece aos seus apóstolos dizendo: “A paz esteja convosco” (Jo 20,21).

Contudo, a mensagem que Jesus traz à humanidade é questionante e interpeladora: alguns a acolhem positivamente; outros a rejeitam, não estão interessados nem em Jesus nem mesmo na proposta que ele traz. Como consequência, haverá divisão e desavença, até mesmo dentro da própria família, mediante as opções que cada um pode fazer.

Por isso, quem deseja seguir Jesus e comprometer-se sem hesitações pela verdade deve saber que encontrará oposições e se tornará, infelizmente, sinal de divisão entre as pessoas. O amor aos pais é um mandamento sagrado, mas para ser vivido de modo autêntico, nunca pode ser anteposto ao amor de Deus e de Cristo.

A fé exige que se escolha Deus como critério básico da vida.  Deus é misericórdia, Deus é fidelidade, é vida que se doa a todos nós. Jesus não quer dividir os homens entre si, pelo contrário: Jesus é a nossa paz, é a nossa reconciliação! Mas esta paz comporta a renúncia ao mal, ao egoísmo, e a escolha do bem, da verdade e da justiça, mesmo quando isto exige sacrifício e renúncia aos próprios interesses. E isto sim, divide; como sabemos, divide até os vínculos mais estreitos. Mas não é Jesus que divide! Ele propõe o critério: viver para si mesmo, ou para Deus e para o próximo; ser servido, ou servir; obedecer ao próprio eu, ou obedecer a Deus. O velho Simeão já havia dito que o próprio Cristo seria um “sinal de contradição” (Lc 2,34).

Parece difícil conciliar a paz e a divisão. Por isto, para entendermos a mensagem do evangelho deste domingo, faz-se necessário lembrar de uma outra afirmação de Jesus.  Ele disse: “A verdade vos libertará” (Jo 8,32).  E também afirmou: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Não se pode trair a verdade.  E então, poderá acontecer que algumas pessoas não concordarão com o que o Evangelho ensina e se afastarão do caminho apontado por ele.

A paz que Jesus veio trazer não é sinônimo de simples ausência de conflitos, ao contrário, a paz de Jesus é fruto de uma luta constante contra o mal. O confronto que Jesus está decidido a enfrentar não é contra homens ou poderes humanos, mas contra satanás, o inimigo de Deus e do homem. Quem quer resistir a este inimigo, permanecendo fiel a Deus e ao bem deve necessariamente enfrentar incompreensões e, às vezes, verdadeiras perseguições.

As perseguições já ocorriam na época dos profetas, como ressalta a primeira leitura, que nos mostra a figura do profeta Jeremias, cuja existência se traduziu em arriscar a vida por causa do anúncio da Palavra de Deus.  Ele foi seduzido pelo Senhor e colocou-se inteiramente ao seu serviço, mesmo que isso tenha significado violentar a sua própria maneira de ser, afastar-se dos familiares, dos amigos e deparar com o ódio dos opositores à sua mensagem. Jeremias é o protótipo do profeta que dá a sua vida para que a Palavra de Deus seja anunciada a todos.  Para estar a serviço da Palavra de Deus, Jeremias experimentou o sofrimento, a incompreensão e a morte, ocorrida por volta do ano 580 a.C, estando ele exilado no Egito. Uma tradição judaica diz que ele foi apedrejado até a morte pelos próprios compatriotas.

Nisso, pode-se lembrar do início do cristianismo e do tempo das perseguições.  Muitos pagãos convertidos eram desprezados pelos seus familiares.  Podemos lembrar de São Sebastião,  que viveu no século terceiro e era amigo pessoal do Imperador Diocleciano, mas tendo se convertido ao cristianismo, foi por ele abandonado e condenado à morte.  Podemos lembrar ainda dos apóstolos, de Santo Estêvão, o primeiro mártir, de São João Batista, o maior dos profetas de Cristo, que soube renegar-se a si mesmo para dar espaço ao Salvador, e sofreu e morreu pela verdade. Podemos ainda recordar de muitos outros santos que foram perseguidos e mortos por causa da verdade, por causa de Cristo.  Neste mês de agosto celebramos vários deles, dentre os quais ressaltamos de São Lourenço, do século III, vindo a falecer por ocasião da perseguição contra os cristãos no ano de 258, ordenada por Valeriano, imperador pagão, que mandou amarrar Lourenço em uma grelha, para ser assado vivo e lentamente. E Santa Teresa Benedita da Cruz, também morta num campo de concentração, por ocasião da perseguição nazista.

E neste domingo, 14 de agosto, recordamos também um outro mártir, São Maximiliano Maria Kolbe, que concluiu com o martírio a sua peregrinação terrestre, também na época da perseguição nazista, há 75 anos. Foi no final de julho de 1941, quando vários prisioneiros foram destinados a morrer de fome, e, neste dia, São Maximiliano, então sacerdote, apresentou-se espontaneamente, declarando-se pronto a morrer em substituição a um deles, porque era um pai de família e a sua vida era necessária aos seus entes queridos.  Dando a sua vida por um irmão, São Maximiliano soube cumprir o preceito do Senhor: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15,13).  E São Maximiliano, após mais de duas semanas de tormentos por causa da fome, enfim teve tirada a sua vida, com uma injeção letal, aos 14 de agosto daquele ano. Segundo relatos, a última palavra pronunciada por São Maximiliano, foi “Ave-Maria!”, no momento em que estendia o braço para aquele que o matava.

Este é o testemunho dos santos, este é especialmente o testemunho dos mártires, associados de maneira íntima ao sacrifício redentor de Cristo, que na cruz deu a própria vida em prol da humanidade.  A Virgem Maria, Rainha da Paz, partilhou até ao martírio da alma a luta do seu Filho Jesus contra o maligno, e continua a partilhá-la até o fim dos tempos. Invoquemos a sua proteção materna, para que nos ajude a sermos sempre testemunhas da paz de Cristo.  Que ela nos ajude também a manter o olhar bem fixo em Jesus e a segui-lo sempre, mesmo quando for difícil. E como mãe, se digne a interceder sempre por nós, por nossa cidade, pelo mundo inteiro, para que obtenhamos um futuro que não pode ser de ódio, mas de fraternidade; que não seja de confronto, mas de colaboração, fraternidade, respeito recíproco e de paz.  Assim seja.

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