segunda-feira, 1 de junho de 2015

Homilética: 10º Domingo Comum - Ano B: "O pecado sem perdão".


Caríssimos irmãos e irmãs, o Evangelista São Marcos ressalta na perícope evangélica deste domingo que os adversários de Jesus criticam suas atitudes e salientam que a sua mensagem é contrária à doutrina oficial, isto é, a dos escribas e fariseus.  Eles alegam que o comportamento de Jesus não está de acordo com as sagradas tradições dos antigos por não respeitar o sábado, não estimular os seus discípulos a jejuar, por ser amigo dos pecadores e por não observar as normas que proíbem contatos com pessoas impuras.  Muitos o consideram um herege (Jo 8,48.52) e o acusam ainda de expulsar o demônio pelo poder de Belzebu, o Príncipe dos demônios. A palavra Belzebu – seria interesante recordar – vem do nome de um deus filisteu de Acaron, cujo nome era “Baal das moscas” – Baal Zebud. A mesma palavra foi deformada pelos judeus, e ficou Beelzebul, que significa “o Senhor das esterqueiras”. De qualquer maneira é um nome depreciativo com que os israelitas chamavam o chefe dos espíritos malignos.  Como está no evangelho, os escribas insistem em dizer que Jesus estaria expulsando os demônios pelo poder de Belzebu. Uma colocação inconveniente à qual Jesus responde ser impossível um demônio expulsar o próprio demônio.

Podemos destacar três momentos dentro da perícope deste domingo. Cada uma destas partes é marcada pela presença de um grupo específico. Depois de, no v. 20, introduzir o relato, Marcos nos fala dos “parentes de Jesus”, chamados genericamente de “os da parte dele”, “os seus” (cf. v. 21). Estes ouvem falar da imensa atividade de Jesus e vêm porque acreditam que Ele está “fora de si”.

Um segundo momento abre-se no v. 22, quando chegam os “escribas de Jerusalém”. Estes afirmam que os exorcismos realizados por Jesus são feitos porque Ele teria aliança com os demônios.

Jesus responde a tal acusação primeiro com a imagem do “reino dividido” (vv. 24-26) e depois com a pesada acusação de que “o pecado contra o Espírito Santo” é um pecado eterno, sem perdão (vv. 28-30) e esclarece: Satanás, por sua própria natureza, é inimigo do homem, é homicida: tudo o que ele faz é contra a vida e a felicidade do homem.  Ora, tudo aquilo que Jesus realiza é exatamente o contrário: ele socorre o homem e o recupera; restitui-lhe a saúde e comunica-lhe a vida. 

Dentro do contexto da perícope, o pecado contra o Espírito Santo consiste em atribuir ao demônio o que é obra de Deus e, assim, rejeitam o sinal da salvação que é realizada em Cristo e que está “simbolizada”[1] nos exorcismos realizados por Jesus. O Catecismo no n. 1864 define o “pecado contra o Espírito Santo” como a recusa a acolher o perdão e a misericórdia de Deus. Essa recusa, tal qual aquela dos contemporâneos de Jesus que não aceitavam que era pelo poder de Deus que Ele expulsava os demônios, pode levar à impenitência final.

Entre esses dois momentos da resposta de Jesus encontra-se a importante afirmação do v. 27: Ninguém pode entrar na casa de um homem forte para roubar seus bens, sem antes o amarrar. Só depois poderá saquear sua casa.  Essa mesma afirmação é repetida em Mt 12,29 e Lc 11,21-22, sendo que, em Lucas, o evangelista fala de um “homem mais forte”, que entra e toma os bens do homem forte. Jesus é este “mais forte”, que amarra o forte, o demônio, roubando-lhe aqueles que ele fizera cativos pela sedução do pecado. Assim Jesus demonstra que é por poder divino e mais, é como manifestação da sua própria divindade e autoridade que Ele expulsa os demônios. Seja a “expulsão dos demônios” sejam as “curas” que Jesus realiza nos evangelhos, elas são uma demonstração visível da realidade invisível: a divindade do próprio Senhor, o “mais forte”, capaz de destruir as obras do maligno.

Por fim, a perícope evangélica deste domingo nos apresenta uma terceira parte da cena, marcada pela chegada da “mãe e dos irmãos” de Jesus no v. 31. 

Os parentes de Jesus, ainda não tinham uma clareza sobre a sua missão, sobre o caminho que Jesus haveria de percorrer em obediência ao Pai. Até mesmo sua Mãe, não tinha essa clareza, ela ia compreendendo aos poucos.  À medida em que os fatos iam acontecendo, que  ela ia associando-os com as revelações do anjo na anunciação e com a profecia  de Simeão, por ocasião da apresentação de Jesus ao templo. Certamente, Jesus levava uma vida comum na pacata cidade de Nazaré como os jovens de família da sua época. Assim, Jesus assume o seu ministério e alarga o seu laço familiar, passando a ter uma só família, algo semelhante a um jovem que sai de casa, ou para abraçar o matrimônio, ou o sacerdócio.

"Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus, e a põem em prática.” Com essas palavras, Jesus não desconsiderou sua Mãe, pelo o contrário, a elevou, pois ninguém mais do que ela, colocava em prática a palavra de Deus!

Sempre que deparamos com este evangelho, ficamos centrados na referência que Jesus faz de quem é a sua família, ou questionando se Maria teve ou não outros filhos, com isso, deixamos de meditar a mensagem principal do evangelho, que é um convite a colocarmos em prática a palavra de Deus, a fazer a sua vontade...

Jesus explica que sua verdadeira família não é a do sangue, mas a da fé operante: os que fazem a vontade do Pai (v.35). Para poder fazer parte de sua família é preciso escutar a sua palavra e cumprir a vontade de Deus. Ao afirmar que sua mãe e seus irmãos são, na verdade, aqueles que “fazem a vontade de Deus” Jesus não está diminuindo o valor dos laços familiares, mas está, sobretudo no caso de Maria, demonstrando o seu grande valor porque, sendo mãe, fez-se também discípula e discípula perfeita. Assim Jesus demonstra que, na comunidade dos filhos de Deus, os laços mais fortes são outros. Não são os laços sanguíneos os mais significativos, mas sim o grande laço da fé, que nos leva a “fazer a vontade de Deus”.

COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

Leituras: Gn 3, 9-15; 2 Cor 4, 13 – 5, 1; Mc 3, 20-35

Na primeira leitura, o autor sagrado descreve a criação do paraíso e do homem e apresenta a criação de Deus como um espaço ideal de felicidade, onde tudo é bom e o homem vive em comunhão total com o Criador e com as outras criaturas.  Em um segundo momento, é apresentado o pecado do homem e da mulher, mostrando como as opções erradas do primeiro casal humano influenciaram na sua comunhão com Deus, trazendo desequilíbrio para o próprio homem. E, finalmente, o texto apresenta o homem e a mulher confrontados com o resultado das suas opções e as consequências que daí surgiram para ambos e para as gerações vindouras.

Na perspectiva do texto do Gênesis, Deus criou o homem e a mulher para a felicidade.  Mas o homem, que Deus criou livre e feliz, fez escolhas indevidas e, com isto, introduziu na criação dinamismos de sofrimento e de morte.   Os personagens apresentados no texto são Deus, que “passeia no jardim à brisa do dia” (v. 8), e ainda Adão e Eva, que se esconderam de Deus por entre o arvoredo do jardim (v. 8).

O texto começa com uma pergunta do Criador a Adão: “Onde estás?” A resposta do homem já é uma confissão da sua culpabilidade: “Ouvi o rumor dos vossos passos no jardim e, como estava nu, tive medo e escondi-me” (v. 9-10). A vergonha e o medo são sinais de uma perturbação interior, de uma ruptura com a anterior situação de inocência, de harmonia, de serenidade e de paz. Como é que o homem chegou a esta situação? Evidentemente, desobedecendo a Deus e percorrendo caminhos contrários àqueles que Deus lhe havia proposto. A resposta do homem revela que ele tem consciência da sua culpa.

Depois desta constatação, a segunda pergunta feita por Deus ao homem é meramente retórica: “terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira de comer?” (vers. 11). A árvore em causa – a “árvore do conhecimento do bem e do mal” – significa o orgulho, a auto-suficiência, o prescindir de Deus e das suas propostas, o querer decidir por si só o que é bem e o que é mal, o pôr-se a si próprio em lugar de Deus, o reivindicar autonomia total em relação ao criador. A situação do homem, perturbado e em ruptura, é já uma resposta clara à pergunta de Deus… É evidente que o homem “comeu da árvore proibida” – isto é, escolheu um caminho de orgulho e de auto-suficiência em relação a Deus. Daí a vergonha e o medo. 

Ao defender-se, o homem acusa a mulher e, ao mesmo tempo, acusa veladamente o próprio Deus pela situação em que está (“a mulher que me deste por companheira deu-me do fruto da árvore e eu comi” – vers. 12). Adão representa essa humanidade que, mergulhada no egoísmo e na auto-suficiência, esqueceu os dons de Deus e vê em Deus um adversário; por outro lado, a resposta de Adão mostra, igualmente, uma humanidade que quebrou a sua unidade e se instalou na cobardia, na falta de solidariedade, no ódio. Escolher caminhos contrários aos de Deus não pode senão conduzir a uma vida de ruptura com Deus e com os outros irmãos.

Vem, depois, a “defesa” da mulher: “a serpente enganou-me e eu comi” (vers. 13). Entre os povos cananeus, a serpente estava ligada aos rituais de fertilidade e de fecundidade. Os israelitas deixavam-se fascinar por esses cultos e, com frequência, abandonavam Javé para seguir os rituais religiosos dos cananeus e assegurar, assim, a fecundidade dos campos e dos rebanhos. Na época em que o autor javista escreve, a serpente era, pois, o “fruto proibido”, que seduzia os crentes e os levava a abandonar a Lei de Deus. A “serpente” é, neste contexto, um símbolo literário de tudo aquilo que afastava os israelitas de Javé. A resposta da “mulher” confirma tudo aquilo que até agora estava sugerido: é verdade, a humanidade que Deus criou prescindiu de Deus, ignorou as suas propostas e enveredou por outros caminhos. Achou, no seu egoísmo e auto-suficiência, que podia encontrar a verdadeira vida à margem de Deus, prescindindo das propostas de Deus.

Diante disto, não são precisas mais perguntas. Está claramente definida a culpa de uma humanidade que pensou poder ser feliz em caminhos de egoísmo e de auto-suficiência, totalmente à margem dos caminhos que foram propostos por Deus.

Que tem Deus a acrescentar? Pouco mais, a não ser condenar como falsos e enganosos esses cultos e essas tentações que seduziam os israelitas e os colocavam fora da dinâmica da Aliança e dos mandamentos (vers. 14-15). O nosso catequista javista sabe que a serpente é um animal miserável, que passa toda a sua existência mordendo o pó da terra. O autor vai servir-se deste dado para pintar, plasticamente, a condenação radical de tudo aquilo que leva os homens a afastar-se dos caminhos de Deus e a enveredar por caminhos de egoísmo e de auto-suficiência.

O que é que significa a inimizade e a luta entre a “descendência” da mulher e a “descendência” da serpente? Provavelmente, o autor janista está, apenas, a dar uma explicação etiológica (uma “etiologia” é uma tentativa de explicar o porquê de uma determinada realidade que o autor conhece no seu tempo, a partir de um pretenso acontecimento primordial, que seria o responsável pela situação atual) para o fato de a serpente inspirar horror aos humanos e de toda a gente lhe procurar “esmagar a cabeça”; mas a interpretação judaica e cristã viu nestas palavras uma profecia messiânica: Deus anuncia que um “filho da mulher” (o Messias) acabará com as consequências do pecado e inserirá a humanidade numa dinâmica de graça.

Atenção: o autor sagrado não está a falar de um pecado cometido nos primórdios da humanidade pelo primeiro homem e pela primeira mulher; mas está a falar do pecado cometido por todos os homens e mulheres de todos os tempos… Ele está apenas a ensinar que a raiz de todos os males está no fato de o homem prescindir de Deus e construir o mundo a partir de critérios próprios.

Um dos mistérios que mais questiona os nossos contemporâneos é o mistério do mal. Esse mal que vemos todos os dias torna sombria e assustadora esta nossa morada que é o mundo em que vivemos. Mas o mal nunca vem de Deus. Deus nos criou para a vida e para a felicidade e nos deu todas as condições para imprimirmos à nossa existência uma dinâmica de vida, de felicidade, de realização plena. O mal resulta das nossas escolhas erradas.  Quando o homem escolhe viver alheio às propostas de Deus, ele constrói o sofrimento e passa a viver no pecado. O tempo em que vivemos é um tempo de vigilância, pois a serpente continua a armar ciladas para os nossos calcanhares.

A segunda Carta de Paulo aos Coríntios apareceu num momento particularmente tenso da relação entre o apóstolo e essa comunidade cristã da Grécia. Algumas duras críticas de Paulo (na primeira Carta aos Coríntios) a certos membros da comunidade que viviam de forma pouco coerente com a fé cristã provocaram um certo desconforto na comunidade, que foi aproveitado pelos opositores de Paulo, que criaram um clima de hostilidade contra o apóstolo. Paulo foi acusado de estar a cuidar apenas dos seus próprios interesses e de pregar uma doutrina que não estava em consonância com o Evangelho anunciado pelos outros apóstolos. Na opinião dos seus detratores, o fato de Paulo não ter apresentado qualquer “carta de recomendação” que comprovasse a sua autoridade para anunciar o Evangelho significava que a doutrina por ele pregada não era digna de fé.

Ao saber do que se passava, Paulo foi a Corinto; mas essa ida não só não resolveu o problema, como até o radicalizou. Deve ter havido uma troca violenta de argumentos e de palavras e Paulo foi gravemente ofendido por um membro da comunidade. Algum tempo depois, Tito, amigo e colaborador de Paulo, partiu para Corinto com a missão de acalmar os ânimos e de tentar a reconciliação. Quando voltou, Tito trazia notícias animadoras: o diferendo fora ultrapassado e os Coríntios estavam, outra vez, em comunhão com Paulo. Foi então que Paulo escreveu a nossa segunda Carta aos Coríntios. Nela, o apóstolo explicava tranquilamente aos Coríntios os princípios que sempre orientaram o seu trabalho apostólico (cf. 2 Cor 1,3-7,16) e desmontava os argumentos dos adversários (cf. 2 Cor 10,1-13,10). Estávamos nos anos 56/57.

Neste contexto, o texto de hoje situa-nos na opção pelo sentido da nossa vida em Cristo. Paulo apresenta duas fortes convicções de fé: «com este mesmo espírito de fé, também acreditamos, e falamos», que Deus há de ressuscitar-nos com Jesus e vai levar-nos para ficarmos eternamente em comunhão com Ele; o homem interior renova-se em cada dia na medida em que intensifica o seu olhar nas coisas invisíveis que são eternas. Em consequência, há que renovar constantemente, sem desanimar, esta opção pela habitação eterna, em comunhão plena com Deus. Coisas essenciais, ditas de modo claro, a exigir coerência àqueles que querem continuar a viver como autênticos discípulos de Cristo.

O Evangelho de hoje apresenta-nos duas questões difíceis: o pecado contra o Espírito Santo e o os “irmãos” de Jesus.

Jesus continua a percorrer o espaço geográfico da Galileia e a cumprir a sua missão de anunciar o “Reino”. Começa, no entanto, a crescer a onda de contestação à sua pregação. Tomando como pretexto alguns casos particulares cada vez mais insignificantes, os líderes judaicos manifestam a sua firme oposição à novidade do “Reino”. As polêmicas e controvérsias marcam esta fase da caminhada de Jesus.

“Todos os pecados serão perdoados aos filhos dos homens, mesmo as suas blasfêmias; mas todo o que tiver blasfemado contra o espírito Santo jamais terá perdão, mas será culpado de um pecado eterno” (Mc 3,28-29).

O Catecismo da Igreja Católica dá a interpretação autêntica dessa passagem com as seguintes palavras: “A misericórdia de Deus não tem limites, mas quem se recusa deliberadamente a acolher a misericórdia de Deus pelo arrependimento rejeita o perdão de seus pecados e a salvação oferecida pelo Espírito Santo. Semelhante endurecimento pode levar à impenitência final e à perdição eterna” (Cat. 1864). No fundo, o pecado contra o Espírito Santo é um endurecimento interior que não permite a pessoa se arrepender dos próprios pecados. Logicamente, sem arrependimento não há perdão! Por outro lado, é muito difícil verificar se alguém pecou contra o Espírito Santo; na prática, até o final da vida de uma pessoa não se pode saber se tal impenitência foi um pecado contra o Espírito Santo. Em efeito, uma pessoa poderia se arrepender nos últimos momentos de sua existência e ser alcançado pela salvação. Definitivamente, a resposta a essa questão – foi ou não um pecado contra o Espírito Santo? – continuará, enquanto não chega o juízo final, conhecida somente por Deus e pela pessoa em questão.

Falar sobre o pecado contra o Espírito Santo deveria nos ajudar a ver que o arrependimento dos nossos pecados é uma graça de Deus. Ao mesmo tempo essa graça só nos alcança se nós quisermos: a salvação é obra de Deus em nós, mas não sem nós. Nesse sentido, a nossa súplica poderia ser semelhante àquela que muitos sacerdotes ainda rezam antes da Santa Missa: “Concedei-nos, Senhor onipotente e misericordioso, a alegria com a paz, a emenda de vida, o tempo para fazer penitência, a graça e a consolação do Espírito Santo e a perseverança nas boas obras. Amém”.

De uma forma geral, Marcos narra as controvérsias seguindo um esquema fixo e sempre igual: começa com a apresentação da questão, continua com a discussão e termina com um “dito” final de Jesus. Este “dito” não oferece a mera solução do “caso” em questão, mas é sempre uma auto revelação de Jesus, de importância decisiva para a comunidade cristã do tempo de Marcos e de todos os tempos.

Toda a cena se passa numa “casa”. Que casa é essa? É uma casa onde Jesus está a pregar a Palavra e é uma casa onde «de novo acorreu tanta gente, de modo que nem sequer podiam comer». É também uma casa onde estão sentados/instalados alguns especialistas da Lei (escribas). A “casa” onde Jesus prega, onde se congrega a comunidade judaica e onde há escribas instalados, poderia ser uma figura da sinagoga, entendida como assembleia do Povo de Deus. O fato de se referir que a “casa” em questão estava situada na cidade de Cafarnaum (o centro a partir do qual irradia a atividade de Jesus na Galileia) poderia indicar que Marcos está a falar da comunidade judaica da Galileia, em cujas sinagogas Jesus acabou de passar (cf. Mc 1,39), anunciando a Boa Nova do Reino. Em qualquer caso, a “casa” representa essa comunidade judaica a quem Jesus dirige a pregação do “Reino”.

A mensagem evangélica de hoje apresenta três diálogos de Jesus: dois com os seus familiares, no princípio e no fim, outro com os escribas, no meio Fiquemo-nos pelos familiares de Jesus. Diz-se que vão a Cafarnaum para levar Jesus desta casa onde está para a sua casa em Nazaré. Muitas são as razões: muito tempo fora da família, notícias contraditórias sobre a sua atividade, mensagem em contraste com a doutrina oficial dos escribas e fariseus, contato com os pecadores de quem é amigo, não seguimento da tradição dos antigos nem respeito pelo sábado; enfim, Jesus é considerado louco e herético. A intenção principal é reconduzi-lo ao caminho reto de um autêntico judeu.

Pela primeira vez, Marcos menciona a família biológica de Jesus, que vem (de Nazaré?) “para detê-lo” sob acusação de loucura (v. 21). Já vimos que Marcos não possui os chamados “evangelhos de infância”, que narram os eventos em torno do nascimento e dos primeiros anos de Jesus e só aparecerão em Mateus e Lucas. Assim, essa primeira aparição da parentela de Jesus parece motivada pela incompreensão diante da estranheza de seu ensinamento. A seus olhos, o ensino de Jesus se revela uma insanidade. A tentativa de “detê-lo” é justificável à medida que, segundo os relatos dos cap. 2 e 3, suas pregações já despertam a ira das autoridades civis e religiosas, defensores de interesses escusos sob aparência das “sãs tradições”. Os parentes podem temer pela segurança de Jesus, mas também pela sua própria, pois os interditos religiosos não recaíam somente sobre o “herege”, mas também sobre sua família e sua cidade.

Há os que ficam de fora e os que estão dentro. Imagem atualíssima para nós hoje. Podemos andar por fora, arredios, ficar à porta, até nos chamarmos “católicos não praticantes”. Que significa isso? Faz sentido? Ou se é ou não se é. Aí está de novo a radicalidade da opção por Jesus. Ou ficamos fora, ou estamos dentro da casa, unidos a Jesus, a escutá-l’O e a segui-l’O com todo o nosso ser, com todo o nosso coração.

Na caminhada da fé, cada um é livre de optar pela família que quiser: ou ficar pelas famílias que dispersam do sentido da vida, ou permanecer na única família de Jesus, de «quem quiser fazer a vontade de Deus».

A família agora ganha contornos claros: trata-se da mãe e dos irmãos de Jesus (v. 31). Deixaremos de lado, ao menos por ora, a secular discussão sobre a natureza desses “irmãos”, já que as possibilidades são muitas e inconclusas, sobretudo em Marcos. Importa, porém, que eles estão “do lado de fora da casa”, no lugar apropriado daqueles que não creem e não seguem Jesus – reafirmando a incompreensão que Jesus encontrou nos seus parentes mais próximos, no começo de sua atuação.

Quando Jesus ensina entre a multidão sentada à sua volta e lhe é dito: «Estão lá fora a tua mãe e os teus irmãos que te procuram», Ele responde: «Aí estão minha mãe e meus irmãos. Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe» (Mc 3, 32-35).

A resposta de Jesus é interessante: sua mãe e seus irmãos são, na verdade, os “de dentro da casa”, que estão assentados ao seu redor e escutam sua palavra – os discípulos (v. 32-35). Na boa nova de Jesus, mais que os laços de sangue, interessam os laços de adoção filial do Espírito, que formam uma “família escatológica”, imagem da humanidade unida em torno do Cristo que vem.

Mais tarde, tendo compreendido isso, Lucas dirá que Maria, mãe de Jesus, “ouviu a palavra, acreditou e a pôs em prática”, ou seja, fez-se sua discípula – nisso, e não propriamente na maternidade, reside seu mérito em Lucas. Mas isso já é outro assunto…

PARA REFLETIR

Caríssimos, iniciemos a nossa meditação da Palavra que o Senhor nos dirige neste X Domingo Comum partindo da tremenda pergunta que o Senhor Deus fez aos nossos primeiros pais e nos faz a nós, filhos de Adão de todos os tempos:

“Onde estás?”

Onde te encontras, ó homem, com tua ânsia de ser como Deus, de ser dono da tua vida, de viver fechado em ti mesmo, no teu comodismo, na tua frieza, na tua autossuficiência, como se te bastasses? Onde estás, ó homem, bicho tirado do pó da terra, no qual soprei, com Meu Espírito, o desejo do Infinito?

E quão triste a situação do homem, a nossa situação: ei-lo envergonhado, ei-lo escondido! Envergonhado porque nu, escondido porque não se aceita na sua condição de pobre criatura e dela sente vergonha!

Somente quem é inocente como as crianças não sentiria vergonha da própria nudez!

Mas, o homem – eu você – esse bicho que deseja ser autônomo e se pensa Deus, como não se sentir envergonhado?

Então se esconde de Deus, atrás das tantas moitas que a vida lhe oferece: diversões, dispersão, poder, posses, dominação, prestígio, satisfação desmesurada dos instintos descontrolados! Quantas moitas para se esconder de Deus, para esconder, disfarçando a própria nudez!

E lá vai o homem, quebrado, jogando a culpa nos outros, no mundo, em Deus, no Diabo, contanto que se justifique e se desculpe a si próprio, sempre fugindo de si e da sua triste realidade, sempre se protegendo ilusoriamente com frágeis folhinhas de parreira!

Ao invés de fugir, desse esconder, Irmãos, seria mais útil, maduro e coerente abrir o coração ao Senhor, como o Salmista:

“Das profundezas eu clamo a Vós, Senhor! Escutai a minha voz! Se levardes em conta as nossas faltas, quem poderá subsistir? Mas, em Vós se encontra o perdão: eu Vos temo e em Vós espero!”

Eis aqui a atitude correta diante do Senhor, atitude que nós devemos cultivar, caros Irmãos, mas que, infelizmente, não é a nossa tendência! Naturalmente, diante do Senhor, nossa tendência ainda é aquela dos primeiros pais: a autonomia blasfema de nos fazer deuses de nós mesmos!

E isto aparece também no Evangelho de hoje: primeiro, nos adversários de Jesus, os escribas de Jerusalém que, afirmam logo, para desmoralizá-Lo, que Ele age pelos demônios! É um modo fácil, covarde de não escutar o Senhor, de não se dar ao trabalho de se deixar converter! Não temos nós a tendência de fazer o mesmo com aqueles que nos convidam à conversão, aqueles que com sua palavra ou seu modo de viver nos incomodam, sendo um sinal de Deus? Vemos tantas vezes isto, mesmo na Igreja: a tendência de fazer pouco caso e até criticar e combater verdadeiros sinais que o Senhor nos envia através da vida de pessoas santas, capazes de loucuras e radicalidades pelo Senhor! A sentença do Senhor é dura: isto é pecado contra aquilo que o Espírito de Deus suscita! Que coisa: sufocar o Espírito, contristá-Lo porque não cabe na nossa lógica tacanha, na nossa medida mesquinha! Cuidado, Irmãos! Cuidado para não pecarmos contra o Espírito! Não aconteça combatermos contra Deus!

Mas, há também aquele outro perigo: o dos parentes do Senhor: não reconhecê-Lo como presença de Deus, ficando num nível meramente humano! Quantas vezes nós, cristãos, somos incapazes de perceber a presença do Senhor nas pessoas, nos acontecimentos e até na Sua própria Palavra? Quantas vezes nossa fé é tão morna e somos tão cegos para enxergar! Ainda que não sejamos adversários como os escribas, somos realmente desconfiados como os parentes do Senhor, que chegam a levar a própria Virgem Santíssima com eles para trazerem Jesus para casa, querendo aprisiona-Lo numa simples relação humana, deste mundo! Irmãos no Senhor, tenhamos fé! Irmãos no Senhor, aprendamos a ver com o olhar de Deus, a medir com a medida do Coração de Deus! Não é possível que sejamos cristãos sendo tão terrenos e até mundanos no nosso modo de sentir e de ver!

Mas, estejamos certos, caríssimos: Jesus é o mais forte que derrota o forte, Jesus é o Vencedor da Morte que, vencendo o Príncipe deste mundo e o amarrando, nos dá a possibilidade de vencer o pecado em nós e no mundo. Por isso mesmo, por esta certeza, o ânimo contagioso de São Paulo, na segunda leitura de hoje:

“Sustentado pelo mesmo espírito de fé, nós também cremos e, por isso, falamos, certos de que Aquele Deus que ressuscitou o Senhor Jesus nos ressuscitará também com Jesus!”

Ainda cremos realmente nisto, caríssimos: que nossa vida neste mundo caminha para a plenitude eterna, participando da Ressurreição de Jesus, nosso Senhor na glória do Céu?

Cremos que “mesmo que o nosso homem exterior – nossa humanidade nesta situação mortal – se vai arruinando, o nosso homem interior – com a Vida de Cristo, recebida no Batismo – vai se renovando, dia a dia”?

Levamos a sério que nos espera “uma Glória eterna e incomensurável?”

Temos realmente como certo que, em Cristo, o Vencedor do Pecado e da Morte, quando “a tenda em que moramos neste mundo for destruída, Deus nos dará uma outra morada no Céu, que não é obra de mãos humanas, mas que é eterna”, isto é, morada viva da Vida do Eterno?

Irmãos, não será que nossa frieza, o pouco vigor de muitos para ser generoso com o que é do Senhor não decorreria da falta de fé verdadeira na Vida eterna, na recompensa que o Senhor nos prepara? – Falamos tanto da terra e tão pouco do céu!

Não será que estamos numa situação de marasmo, com uma visão meramente humana das coisas de Deus, como os parentes de Jesus?

Será que, às vezes, pior ainda, não estamos sendo adversários do Espírito de Deus, que Se manifesta em tantos que são entusiasmado radicalmente pelas coisas do Senhor, são, para nós e para o mundo, sinais do céu, e nós os criticamos?

Caríssimos, reconheçamo-nos pequenos, reconheçamo-nos deficientes diante do Senhor! Abramo-nos ao Seu Espírito: acreditemos, confiemos, deixemo-nos ser instrumentos generosos do Senhor na obra da salvação do mundo, vivendo o Cristo, testemunhando o Cristo, pregando o Cristo, para, vencido o Pecado e a Morte, participarmos “da Glória eterna e incomensurável que o Senhor nos prepara”. Amém.

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