domingo, 27 de julho de 2014

O naufrágio de São Paulo e o naufrágio do nosso catolicismo


O Lecionário para a Missa pós-Vaticano II se caracteriza por uma série de finíssimos detalhes. Um deles é a leitura contínua dos Atos dos Apóstolos durante as missas feriais do tempo pascal. Enquanto celebra a Ressurreição ao longo de cinquenta dias, a Igreja também reflete sobre a primeira evangelização: a comunidade cristã primitiva, com o poder do Espírito Santo, espalha pelo mundo mediterrâneo a histórica notícia de que Jesus de Nazaré, tendo ressuscitado dentre os mortos, constituiu-se Senhor e Salvador para o perdão dos pecados.

Essa leitura em série dos Atos dos Apóstolos termina com Paulo estabelecido em Roma, provavelmente no atual bairro do Trastevere, falando com a comunidade judaica romana sobre as suas antigas esperanças na aliança com Deus, que chega à plenitude em Cristo ressuscitado.

Há, no entanto, uma omissão dessa história cristã primitiva que eu lamento muito: o lecionário omite o capítulo 27 dos Atos, que conta a dramática história do naufrágio de Paulo e da sua breve estada em Malta, onde o apóstolo é milagrosamente salvo de uma víbora venenosa e de onde ele parte em outro navio para Roma.

Eis uma questão para refletirmos: inúmeros livros sobre a história da Igreja foram escritos ao longo de dois milênios, mas o único livro inspirado por Deus sobre a história da Igreja, os Atos dos Apóstolos, termina com o relato de um naufrágio. Um aparente desastre que se transforma, por obra da divina providência, em oportunidade para estender a missão da Igreja.

As cenas continuam em Atos 28. Paulo não está desfrutando das melhores circunstâncias em Roma: ele vive sob uma espécie de prisão domiciliar. Mesmo assim, ele transforma os seus aposentos em um centro de evangelização, conclamando a comunidade judaica romana a repensar sobre Jesus e a reconsiderar as críticas que eles tinham ouvido sobre a nova "seita" cristã, além de explicar como Deus, por seu Espírito Santo, tinha estendido a salvação vivificante também aos gentios. A inconveniência e a indignidade da prisão domiciliar o levam a uma intensa atividade evangélica: "E ele viveu ali durante dois anos inteiros, às próprias custas, e congratulou-se com todos quantos vieram até ele, pregando o reino de Deus e ensinando sobre o Senhor Jesus Cristo abertamente e sem obstáculos" (Atos 28,30).

Naufrágio e missão, ao que parece, se entrelaçam no DNA histórico da Igreja.

Não se trata de sugerir que a Igreja deva deliberadamente procurar o naufrágio. Grande parte dos danos infligidos ao catolicismo nas últimas décadas são ferimentos que os próprios católicos abriram contra si próprios e que as autoridades da Igreja têm a obrigação de sanar: os escândalos de abusos sexuais, as histórias de terror sobre a vida católica de meados do século XX na Irlanda, as formas de dissidência intelectual que esvaziaram o catolicismo do patrimônio da verdade legado a ele pelo Senhor, o contratestemunho público dos católicos que não conseguem defender com firmeza a dignidade da pessoa humana em todas as fases da vida e em todas as condições de vida. O assalto cultural mais amplo cometido contra a Igreja, porém, é outra questão.

Alguns podem considerar um "naufrágio" a atual agonia do catolicismo cultural que transmitiu e sustentou a fé em tantos países do Ocidente. Mas o que é que deveríamos esperar, se a cultura pública ambiental se torna tóxica, contrária à Bíblia e cristofóbica (para usar o agudo termo recentemente enfatizado pelo jurista judeu ortodoxo Joseph Weiler)? Talvez o fim do catolicismo cultural seja uma espécie de naufrágio; afinal, o catolicismo que foi oferecido à próxima geração, sem grande esforço, é um tipo de catolicismo por osmose.

E por que não tirarmos uma lição dos últimos capítulos dos Atos dos Apóstolos e ver naquela dura realidade um convite providencial a nos tornarmos, mais uma vez, uma Igreja em missão permanente? Uma Igreja em que cada católico saiba que foi batizado para uma vocação missionária? Uma Igreja em que os católicos saibam que a qualidade do seu discipulado é medida pelo poder do seu testemunho de Cristo e da sua capacidade de convidar outras pessoas a experimentarem a amizade com o Senhor ressuscitado?

O naufrágio e a missão parecem ser a dupla hélice que impulsiona a história da Igreja.


O desafio é discernir as possibilidades para a missão que Deus sempre codifica naquilo que nos parece, à primeira vista, um naufrágio total.
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Fonte: Aleteia

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