sexta-feira, 7 de março de 2014

Católico: os seus filhos precisam morrer pela Crimeia?


Entrar em guerra com a Rússia por causa de um território que já pertenceu a ela de 1783 até 1957 seria injusto, imprudente e, provavelmente, suicida.
 
É difícil, para mim, acreditar que estejamos no mês de março. Este mês tem um quê de agosto, de "agosto de 1914", para ser preciso.

 
Naquele mês, há quase exatos 100 anos, uma série de erros diplomáticos, sinais atravessados e mecanismos burocráticos soltou os monstros que rugiriam pelo resto do mais sangrento de todos os séculos da nossa história, um século em que mais civis foram assassinados pelos governos do que em todos os outros séculos juntos de história registrada.

 
Ao contrário da Segunda Guerra Mundial, cuja brutalidade pode ser atribuída aos ódios sociopatas de um único homem, a Primeira começou com uma confusão de afirmações desconexas, reivindicações contraditórias sobre um território em disputa, exigências de autonomia de minorias étnicas e respostas repressivas de governos centrais. Seguiram-se então os apelos dessas minorias às grandes potências vizinhas, o que desencadeou um efeito dominó quando outras grandes potências entraram em cena para "salvaguardar os seus interesses" e "conter as agressões" das nações rivais.
 
Em outras palavras, a Primeira Guerra Mundial começou da mesma forma que a guerra entre Rússia e Estados Unidos pode começar em 2014.

 
A Primeira Guerra Mundial terminou com a destruição de três dos regimes que tinham entrado nela, além de um saldo de 40 milhões de mortos, um continente falido e a substituição das monarquias bastante benevolentes com as ditaduras ideológicas. Por exemplo, quase cada centímetro quadrado da monarquia dos Habsburgos seria governado sucessivamente por Hitler e por Stalin.

 
A Europa de julho de 1914 era um lugar muito parecido com os Estados Unidos de hoje. Apesar das rápidas mudanças sociais e do fermento intelectual (Darwin, Freud, Nietzsche e Marx tinham recentemente deixado suas marcas na história), o continente tinha vivido 60 anos de paz quase ininterrupta e de expansão econômica. Novas tecnologias possibilitaram construir as coisas mais rápido e mais barato do que nunca. A melhoria nas comunicações e nos transportes unia terras distantes. Eu não acho que a palavra "globalização" fosse usada na época, mas é ela que define o que estava acontecendo então. O comércio exterior interligava Ásia, Europa e América. Uma rede de investimentos globais quebrava barreiras históricas. Era uma época de "progresso" que inspirava visões utópicas de um futuro sem trabalho sofrido, sem classes sociais e sem pobreza generalizada. Pensava-se que os sofrimentos que tinham levado os homens a buscar o “ópio da fé” estavam desaparecendo gradualmente, como também desapareceriam todas as igrejas.



A Europa que dançava à beira das linhas de alerta em 1914 era o mundo descrito nas histórias de Sherlock Holmes e nos romances de Edith Wharton, onde os piores monstros que rondavam a terra eram criminosos mesquinhos e solitários interesseiros. Mas quando os limites foram cruzados, como fronteiras invisíveis que separam a terra do inferno, o continente se encharcou do sangue de uma Terra de Ninguém, encolhendo-se atrás de cercas de arame farpado e sob nuvens de gás mortal. C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien rastejaram nas trincheiras daquelehorror, junto com milhões de outros soldados, e viram a vida dos seus amigos mais próximos ser estupidamente ceifada.
 
O que levou os homens de 1914 a jogarem tudo no lixo? Como foi que cristãos de tantas nações se convenceram de que aquele mesquinho conflito satisfazia as altíssimas exigências dos ensinamentos cristãos para que alguma guerra pudesse ser considerada justa? Do mesmo jeito que a humanidade tinha se enganado em cada século anterior, eu suponho... E os bispos, para piorar, se alinharam atrás dos seus governos, desafiando o papa, tentando evitar o rótulo de "antipatrióticos". O papa Pio X morreu logo depois que a guerra eclodiu. De desgosto, dizem até hoje. E o papa Bento XV renovou a “ofensiva de paz”, que só ganhou, porém, o apoio de um único governante: o Imperador Carlos I, da casa dos Habsburgos.


Uma diferença me vem à mente. Nos séculos anteriores, as guerras tinham sido declaradas em sua maioria por governantes com poder mais ou menos arbitrário para declará-las. Nenhuma assembleia popular aprovou as campanhas de conquista de Luís XIV e muito menos as guerras de Napoleão. Mas, em 1914, quase todas as nações da Europa, exceto a Rússia czarista, tinham alguma forma de governo representativo. Se a opinião popular da época fosse fortemente contrária à eclosão do conflito, até o czar Nicolau teria pensado duas vezes antes de se mobilizar pela "valente e pequena Sérvia". Mas a opinião popular não ofereceu barreiras. Em cada país, as multidões que se aglomeravam nas ruas em agosto de 1914 torciam pela perspectiva de enfrentar os "valentões" da vizinhança: alemães, russos, austríacos, franceses... Os povos enfeitavam suas ruas com flores e aplaudiam os burocratas incompetentes e os reis infelizes que mandavam os seus jovens para o moedor de carne.
 
E em cada nação, um “forte argumento” podia ser apresentado para garantir que “aquela era a hora da guerra”. Cada país, afinal, tinha sofrido profundas injustiças históricas que as negociações nunca tinham retificado. Cada governo podia alegar abusos sofridos por parte dos seus inimigos e alertar para as graves consequências de não se traçar uma linha no chão, “aqui e agora”, para deter o avanço de “alemães militaristas”, “hordas russas”, “sérvios sanguinários e intolerantes”, “intrigas e arrogância dos austríacos”, “Terceira República anticlerical, envolvida em uma perseguição contra a Igreja”, “pérfidos e hipócritas ingleses”... e assim por diante. Até que, em novembro de 1918, cerca de 20 milhões de homens jaziam mortos no meio da lama.

 
E para quê? No fim das contas, quando toda a propaganda foi desmascarada e as agendas ocultas se contorciam à luz do dia, a guerra tinha sido apenas o produto de líderes míopes, que desejavam parecer fortes e decididos aos olhos do público, dos reis e, por vezes, das suas mulheres (um relevante belicista austríaco, soubemos depois, incentivou a guerra basicamente para impressionar a sua amante). Com o devido distanciamento histórico, podemos ver que a Primeira Guerra Mundial não foi uma cruzada pela democracia nem por qualquer outra coisa; foi apenas uma versão fuleira de “Seinfeld: uma Guerra a Propósito de Nada”.

 
Cada nação, ao que parece, foi em grande parte enganada quanto àquela guerra, com informações incompletas ou falsas, além de versões convenientes conforme as questões que estavam em jogo para cada país. Com as suas populações em estado de choque e cansadas de guerra, a Grã-Bretanha e a França perderam o gosto pela autodefesa e diminuíram os seus recursos militares. Além disso, elegeram líderes mais míopes ainda, focados agora ​​em “manter a paz a qualquer preço”. Esse vácuo de poder, depois da Primeira Guerra Mundial, foi rapidamente preenchido por Hitler e, depois, durante cerca de 40 anos, por Stalin.

 
Eu espero que os americanos que decidem as políticas a tomar em face de um Estado russo que está querendo dominar os seus vizinhos se lembrem daquele agosto de tantos anos e de milhões de vidas atrás. Uma região da Europa, a Crimeia, que pertenceu à Rússia de 1783 até 1957, está sendo apresentada ao mundo como se fosse uma parte sacrossanta da Ucrânia, a ser defendida mesmo que ao preço de um holocausto nuclear. Estamos sendo exortados à indignação por notícias unilaterais. Eu espero que sejamos um pouco mais céticos do que em 1914.

 
Como católicos, aliás, seríamos mais céticos em várias outras circunstâncias que mexem com a vida e com a morte: por exemplo, se um médico nos dissesse que uma determinada gravidez é ectópica e precisa ser interrompida para salvar a vida da mãe. Mesmo que a eliminação indireta de uma vida inocente possa ser justificada pelo princípio do duplo efeito, ainda assim relutaríamos em admitir essa intervenção. Pois bem: começar uma guerra merece no mínimo a mesma relutância; começar uma guerra merece seríssimas considerações.


Eu espero que nós, como católicos, exerçamos o prudente juízo exigido de todo cristão neste momento em que marchamos para o abismo terrível chamado de “guerra moderna”: uma guerra em que cidades inteiras podem ser exterminadas em minutos; em que tentam nos fazer pensar que ninguém é inocente e que todo alvo é um objetivo militar legítimo; em que toda a moralidade é jogada no lixo nas primeiras horas de conflito.
 
Eu espero que sejamos um pouco mais espertos do que as multidões que se aglomeravam nas ruas de Londres, Paris, Viena, Berlim e São Petersburgo naquele verão de 1914.

 
Eu espero que todos nós peneiremos melhor as palavras dos nossos próprios governantes e resistamos à tentação de pintar os líderes das nações rivais como novos Hitlers e de elevar a afirmação do nosso poder ao status de princípio a ser defendido a todo custo.

 
Eu espero que, para cada vez que lermos gritos a favor da guerra, também consultemos fontes contrárias à guerra, inclusive aquelas que nos recordam constantemente os ensinamentos católicos sobre o que é e o que não é uma guerra justa.
 
Eu esperei as mesmas coisas em novembro de 2002 e não paguei nenhum preço por ser contrário àquela guerra [a Guerra ao Terror, do governo Bush, ndr]. Claro, os fomentadores da guerra também não pagaram preço algum por estarem absolutamente errados: eles ainda dominam importantes alas de ambos os partidos políticos, diga-se de passagem [no caso, o Partido Republicano e o Partido Democrata, dos EUA, ndr]. Posso dizer até que, tirando o enorme rombo em forma de mapa do Iraque no orçamento do nosso país, a maioria de nós pagou foi pouco por "confiar no presidente, ‘que é pró-vida’!".


 
Quem não pagou pouco foram os veteranos, agora “equipados” com braços e pernas artificiais; as crianças que vão crescer sem pai ou sem mãe; os corpos em decomposição que estão alinhados no cemitério de Arlington. Todos eles “confiaram no governo” e se alistaram para “lutar pelo seu país”. Eles acreditaram que os seus líderes civis só os enviariam para “missões vitais para a sua sobrevivência” e que só pediriam o seu sacrifício final em caso de extrema emergência. Se tratarmos a guerra com estupidez, não seremos melhores do que os pagãos. Seremos piores, porque nós temos acesso a um conhecimento mais claro sobre a guerra e sobre todas as suas consequências.
 
Como católicos, além disso, nós acreditamos no dia do Juízo Final. E, naquele dia, todos os homens que nós enviamos para matar e morrer nas piores circunstâncias imagináveis, num frenesi de balas, gritos de horror e carne queimada, vão se levantar, com seus corpos íntegros e gloriosos. Vão se reunir e sentar-se ao lado do trono de Cristo. E vão apontar o seu dedo acusador para os nossos olhos, finalmente abertos.

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Fonte: Aleteia

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