segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A Fé infusa


Para se ter fé não basta o trabalho irmanado da inteligência e da vontade; deverá, sobretudo, vir auxílio do alto. Verificamos por vezes que uma alma de boa vontade estuda as provas da religião e lhes percebe a força. Aceita, em consequência, a veracidade do cristianismo. Pode-se declarar em certo sentido que tem fé, pois tal aceitação se funda, não já sobre a evidência extrínseca. Todavia esta fé é meramente humana, natural, como a fé que podemos ter num acontecimento que não presenciamos, mas que conhecemos por testemunhas bem acreditadas.

Embora seja religiosa por seu objeto, ainda não é sobrenatural por sua índole; de que carece pois? – do influxo da graça.

Encontramo-lo evidenciado na obra em que uma intelectual inglesa, Miss Anstice Baker, narrou sua peregrinação “em demanda da morada da luz”. Desdobra-se esse itinerário sobre o plano puramente especulativo; o espírito da heroína atravessou múltiplas e variadíssimas filosofias, sem se aquietar. Por fim veio ter o catolicismo. Mais o estudava, mais verdadeiro lhe parecia. Contudo, faltava-lhe ainda a fé sobrenatural. Acreditava no catolicismo, mas como numa religião humana. Eis que um dia, porém, na igreja de S. Agostinho em Paris, ouviu um sermão sobre o acordo entre a razão a fé. E prossegue na narrativa: ”O sermão, que eu saiba, nada de novo me ensinou. Apenas, as verdades já conhecidas chegavam-me com precisão inteiramente nova... parecia arrancar de mim mesma tudo quanto eu havia aprendido, tudo quanto eu cria, para me apresentar com nova força. Seguiu-se a benção. Fora apenas exposto o Santíssimo Sacramento, e verdadeira transformação operou-se em mim: apareceu-me a Igreja como a meta à qual todos os esforços de minh´alma haviam inconscientemente tendido, como a solução de todos os meus problemas, a resposta a todas as minhas dúvidas... até então eu não tinha convicções; naquela hora Deus dava-me a fé” (B. A. Baker. Vers La Maison de lumiere. Paris, Gabalda, 1917,p.239  et sec.)


A fé encontra-se acima de qualquer esforço humano; é dom de Deus (Ef 2,8). Já no ano de 529, o segundo Concílio de Orange definia que não apenas o aumento, senão o mesmo início da fé, a piedosa propensão a crer, não vem da natureza mas antes é obra da graça (Denz., n.178). E em 1870 o Concílio Vaticano I, retomando as palavras do seu antecessor, decretava: ”Embora o assentimento da fé não seja de todo cego movimento da mente, entretanto, ninguém pode aderir à pregação evangélica do modo necessário para chegar à salvação, sem a iluminação e inspiração do Espírito Santo, que a todos dá suavidade na aquiescência e na crença na verdade. Donde a fé em si – ainda quando não atuada na caridade – é um dom de Deus, e seu ato é obra que pertence à salvação. Por ele o homem livremente se submete a Deus, consentindo e cooperando à sua graça, à qual poderia resistir” (Denz., n.1791).

Para entender bem a doutrina, basta ponderar que a Revelação é o invisível, o sobrenatural, que se nos oferece; a verdade incriada que penetra em nossa inteligência para fazê-la viver, por antecipação, na eternidade. Crer é aderir vitalmente ao espírito de Deus. A fim de poder acolher, aceitar, esse dom transcendente, necessário é que nosso espírito seja elevado ao nível divino, sintonize a realidade sobrenatural à qual se reunirá. Qualquer esforço humano estaria fora de proporção. Caberá, pois, a Deus tomar a iniciativa, fazer brotar em nós o sobre-humano conhecimento, tornar-nos capazes de olhar o mistério, mover-nos a crer. ”Ninguém pode vir a mim, ensina Jesus, se o Pai que me enviou não o trouxer”, e um pouco além: “Há alguns dentre vós que não crêem... por isso eu vos disse que ninguém pode vir a mim se não lhe for concedido por meu Pai” (Jo 6, 44.66). Para vermos as coisas como Deus as vê, precisamos receber novos olhos, sobre-humanos.

Ponderamos ademais a obscuridade dos mistérios, mortificação perene para a razão; sobre a atmosfera intelectual empestada por heresias ou sofismas de toda sorte; sobre as exigências morais duríssimas que leva consigo uma existência norteada pela fé, e compreenderemos que à mais sólida e brilhante apologética faleceria eficácia, não fosse ela sustentada pela graça, e que a vontade se perderia em veleidades, não fosse ela movida pelo Espírito Santo.

Como nos sentiríamos incitados a nos entregar ao sobrenatural, se o próprio autor da ordem sobrenatural não atuasse sobre nós? É como uma inspiração interior que nos convida a crer; aviva-se-nos a luz intelectual – “iluminando os olhos de nosso entendimento” (Ef 1,18) – para que mais facilmente possa perceber a força das razões de crer, discernir os sinais da presença do sobrenatural, entrever a beleza da verdade cristã: Cristo ”abriu-lhes o entendimento para compreenderem as Escrituras” (Lc 24,45). A fé nos dá nova maneira de ver: pelos olhos de Deus.

Ao mesmo tempo a vontade se nos testifica e inclina, solicitada que é pelo atrativo da verdade cristã, convidada a aderir ao bem divino que é nosso bem. O Espírito Santo nos incita a dizer ”sim” à voz de Deus, suscitando em nós uma inclinação à vida eterna, que nos faz ceder à solicitação divina.

Virtude unitiva de espírito a espírito, a fé diviniza deveras a inteligência humana.”Quem conheceu o pensamento do Senhor, para que o possa instruir? Nós, porém, temos o pensamento de Cristo” (1Cor 2,16). O Verbo que é luz – não apenas fria claridade senão também vida (Jo 1,4) – esse Verbo veio luzir aos olhos de todos. Porém sua luz só alumia, de fato, os olhos dos que nela crêem (Jo 12,36); só estes tem em si a “luz da vida”(Jo 8,12). Seres intelectuais e membros do Verbo encarnado, essa dupla qualidade por força há de se refletir antes de tudo na ordem de conhecimento. Os fiéis terão assim o saber sobrenatural que convém aos membros: pela união à divina Cabeça, diviniza-se-lhes o espírito ao ponto de receber uma irradiação ou comunicação do conhecimento d´Aquele que é o pensamento do Pai. A fé é, pois, em última análise, o Verbo-luz misticamente presente à nossa inteligência, nela continuando a sua vida.


________________________________ 

Pe. Penido. Iniciação Teológica. Vol. 1. O Mistério da Igreja. Ed. Vozes,1956. pp 25-28
Disponível em: Decor Carmeli

Um comentário:

  1. Gostei, estava à procura do significado de “fé infusa” fiquei esclarecida. Obrigada

    ResponderExcluir