sábado, 16 de fevereiro de 2013

Considerações sobre o Ato de Renúncia de Bento XVI



Em 11 de fevereiro, dia da Festa de Nossa Senhora de Lourdes, o Santo Padre Bento XVI comunicou ao Consistório de cardeais e a todo o mundo sua decisão de renunciar ao Pontificado. O anúncio foi acolhido pelos cardeais, “quase inteiramente incrédulos”, “com sensação de confusão”, “como um raio em céu sereno”, segundo as palavras dirigidas em seguida ao Papa pelo cardeal decano Ângelo Sodano.

Se foi tão grande a confusão por parte dos cardeais, pode-se imaginar quão forte tem sido nesses dias a desorientação dos fieis, sobretudo daqueles que sempre viram em Bento XVI um ponto de referência, e agora se sentem de algum modo "órfãos", senão mesmo abandonados, em face das graves dificuldades que enfrenta a Igreja no momento presente.

No entanto, a hipótese da renúncia de um Papa ao sólio pontifício não é de todo inesperada. O presidente da Conferência Episcopal da Alemanha, Karl Lehmann, e o primaz da Bélgica, Godfried Danneels, haviam apresentado a hipótese da “renúncia” de João Paulo II, quando as condições de sua saúde haviam se deteriorado. O cardeal Ratzinger, no livro-entrevista de 2010, Luz do Mundo, havia dito ao jornalista alemão Peter Seewald que, se um Papa se dá conta de que não é mais capaz, “física, psicológica e espiritualmente, de cumprir os deveres de seu ofício, então ele tem o direito e, em certas circunstâncias, também a obrigação, de renunciar”. Ainda em 2010, cinquenta teólogos espanhóis haviam manifestado sua adesão à Carta Aberta aos bispos de todo o mundo do teólogo suíço Hans Küng, com estas palavras: “Acreditamos que o Pontificado de Bento XVI se tenha exaurido. O Papa não tem a idade nem a mentalidade para responder adequadamente aos graves e urgentes problemas com os quais a Igreja Católica se defronta. Pensamos, portanto, com o devido respeito por sua pessoa, que deve apresentar a demissão do seu cargo”. E quando, entre 2011 e 2012, alguns jornalistas como Giuliano Ferrara e Antonio Socci havia escrito sobre a possível renúncia do Papa, a hipótese havia suscitado entre os leitores mais desaprovação que consenso.
Não há dúvidas acerca do direito de um Papa de renunciar. O novo Código de Direito Canônico prevê a possibilidade de renúncia do Papa no cânon 332, parágrafo segundo, com estas palavras: “Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie a seu múnus, para a validade se requer que a renúncia seja livremente feita e devidamente manifestada, mas não que seja aceita por alguém”. Nos artigos 1º e 3º da Constituição Apostólica Universi Dominicis Gregis, de 1996, sobre a vacância da Santa Sé, é prevista ademais a possibilidade de que a vacância da Sé Apostólica seja determinada não só pela morte do Papa, mas também por sua renúncia válida.

Na História não são muitos os episódios documentados de abdicação. O caso mais conhecido continua sendo o de São Celestino V, o monge Pietro da Morrone, que foi eleito em Perugia, em 5 de julho de 1294, e coroado em L'Aquila, em 29 de agosto seguinte. Após um Pontificado de apenas cinco meses, ele julgou oportuno renunciar, por não se sentir à altura do cargo que assumira. Preparou, então, a sua abdicação, consultando primeiramente os cardeais e promulgando, depois, uma constituição com a qual confirmava a validade das regras já estabelecidas pelo Papa Gregório X para a realização do próximo Conclave. Em 13 de dezembro, em Nápoles, pronunciou sua abdicação diante do Colégio dos Cardeais, despojou-se da insígnia e das vestes papais, e tomou o hábito de eremita. Em 24 de dezembro de 1294, foi eleito Papa, em seu lugar, Benedetto Caetani, com o nome de Bonifácio VIII. Outro caso de renúncia papal – o último registrado até hoje – ocorreu no decurso do Concílio de Constança (1414-1418). Gregório XII (1406-1415), Papa legítimo, a fim de recompor o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417), enviou a Constança o seu plenipotenciário Carlo Malatesta, para dar a conhecer sua intenção de retirar-se do ofício papal; as demissões foram oficialmente acolhidas em 4 de julho de 1415, pela assembleia sinodal, que ao mesmo tempo depôs o antipapa Bento XIII. Gregório XII foi reintegrado ao Sacro Colégio com o título de cardeal bispo do Porto e com o primeiro grau após o Papa. Abandonando o nome e o hábito pontifício e retomando o nome de cardeal Angelo Correr, ele se retirou como legado papal na província italiana de Le Marche e morreu em Recanati, em 18 de outubro 1417.

Portanto, o caso de renúncia em si não escandaliza: está contemplado no Direito Canônico, e verificou-se historicamente ao longo dos séculos. Note-se, no entanto, que o Papa pode renunciar, e por vezes tem historicamente renunciado ao Pontificado, enquanto este é considerado um “ofício jurisdicional da Igreja”, não ligado indelevelmente à pessoa que o ocupa. A hierarquia apostólica exerce de fato dois poderes misteriosamente unidos na mesma pessoa: o poder da ordem e o poder de jurisdição (cf., por ex., São Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-IIae, q, 39, a. 3, resp.; III, q. 6, a. 2). Ambos poderes são direcionados a realizar os fins peculiares da Igreja, mas cada qual com características próprias, que o distinguem profundamente do outro: a potestas ordinis é o poder de distribuir os meios da graça divina e refere-se à administração dos sacramentos e ao exercício do culto oficial; a potestas iurisdictionis é o poder de governar a instituição eclesiástica e os simples fiéis.
 
O poder de ordem distingue-se do poder de jurisdição não só pela diversidade de natureza e de objeto, mas também pelo modo como o poder de ordem é conferido, uma vez que tem como propriedade ser dado com a consagração, isto é, por meio de um sacramento, e com a impressão de um caráter sagrado. A posse do potestas ordinis é absolutamente indelével, porquanto seus graus não são ofícios temporários, mas imprimem caráter a quem o recebe. De acordo com o Código de Direito Canônico, uma vez que um batizado se torna diácono, sacerdote ou bispo, o é para sempre, e nenhuma autoridade humana pode cancelar essa condição ontológica. Pelo contrário, o poder de jurisdição não é indelével, mas temporário e revogável; suas atribuições, exercidas por pessoas físicas, cessam com o término do mandato.
 
Outra característica importante do poder de ordem é a não territorialidade, pois os graus da hierarquia da ordem são absolutamente independentes de qualquer circunscrição territorial, pelo menos no que respeita à validade do exercício. As atribuições do poder de jurisdição, ao contrário, são sempre limitadas no espaço e têm no território um de seus elementos constitutivos, exceto o do Sumo Pontífice, que não está sujeito a qualquer limitação espacial.

Na Igreja, o poder de jurisdição pertence, jure divino, ao Papa e aos Bispos. A plenitude deste poder, no entanto, reside apenas no Papa que, como fundamento, sustenta todo o edifício eclesiástico. Nele se encontra todo o poder pastoral, e na Igreja não se pode conceber outro independente.

A teologia progressista, pelo contrário, sustenta, em nome do Vaticano II, uma reforma da Igreja num sentido sacramental e carismático, que opõe o poder de ordem ao poder de jurisdição, a Igreja da caridade à do direito, a estrutura episcopal à monárquica. O Papa, reduzido a primus inter pares no interior do colégio dos bispos, exerceria apenas uma função ético-profética, um primado de “honra” ou de “amor”, mas não de governo e de jurisdição. Nesta perspectiva, Hans Küng e outros invocaram a hipótese de um Pontificado “temporário” e não mais vitalício, como uma forma de governo exigida pela celeridade das mudanças do mundo moderno e da contínua novidade de seus problemas. “Não podemos ter um Pontífice de 80 anos que já não está totalmente presente do ponto de vista físico e psíquico”, declarou à emissora “Südwestundfunk” Küng, o qual vê na limitação do mandato do Papa um passo necessário para a reforma radical da Igreja. O Papa seria reduzido a presidente de um Conselho de administração, a uma figura meramente arbitral, ao lado de uma estrutura eclesiástica "aberta", como um sínodo permanente, com poderes deliberativos.

No entanto, caso se entenda que a essência do Papado esteja no poder sacramental de ordem e não no poder supremo de jurisdição, o Pontífice jamais poderia renunciar; se o fizesse, perderia com a renúncia apenas o exercício do poder supremo, mas não o poder em si, que seria indelével como a ordenação sacramental da qual brota. Quem admite a hipótese da renúncia deve admitir com isso que o Papa deriva a sua summa potestas da jurisdição que exerce, e não do sacramento que recebe. A teologia progressista está, portanto, em contradição consigo mesma quando procura fundamentar o Papado sobre sua natureza sacramental e depois reivindica a renúncia de um Papa, a qual por sua vez só pode ser admitida se seu múnus se basear no poder de jurisdição. Pela mesma razão, não poderá haver, após a renúncia de Bento XVI, “dois papas”, um no cargo e outro “emérito”, como foi impropriamente dito. Bento XVI voltará a ser Sua Eminência o Cardeal Ratzinger, e não poderá exercer prerrogativas, como a da infalibilidade, que são intimamente ligadas ao poder de jurisdição pontifício.

O Papa, portanto, pode renunciar. Mas é oportuno que o faça? Um autor por certo não "tradicionalista", Enzo Bianchi, escreveu em “La Stampa” de 1º de julho de 2002: "Segundo a grande Tradição da Igreja do Oriente e do Ocidente, nenhum Papa, nenhum patriarca, nenhum bispo deveria renunciar apenas por ter atingido o limite de idade. É verdade que há cerca de trinta anos na Igreja Católica existe uma norma que convida os bispos a oferecer as próprias renúncias ao Pontífice ao atingirem 75 anos de idade, e é verdade que todos os bispos acolhem com obediência esse convite e apresentam a renúncia, como também é verdade que, normalmente, eles são atendidos e as renúncias acolhidas. Mas esta resta uma norma e uma prática recente, fixada por Paulo VI e confirmada por João Paulo II: nada exclui que no futuro possa ser revista, depois de pesadas as vantagens e os problemas que ela tem produzido nas últimas décadas de aplicação.” A norma pela qual os bispos renunciam a sua diocese a partir dos 75 anos é uma fase recente na História da Igreja, que parece contradizer as palavras de São Paulo, para quem o Pastor é nomeado “ad convivendum et commoriendum” (2 Cor 7,3), para viver e morrer junto a seu rebanho. A vocação de um Pastor, como a de cada batizado, vincula de fato não somente até certa idade e a uma boa saúde, mas até a morte.

Sob este aspecto, a renúncia de Bento XVI ao Pontificado aparece como um ato legítimo do ponto de vista teológico e canônico, mas, no plano histórico, em absoluta descontinuidade com a tradição e a prática da Igreja.  Do ponto de vista do que poderiam ser as suas consequências, trata-se de um gesto não simplesmente “inovador”, mas radicalmente “revolucionário”, como o definiu Eugenio Scalfari em “La Repubblica” de 12 de fevereiro. A imagem da instituição pontifícia, aos olhos da opinião pública de todo o mundo, é de fato despojada de sua sacralidade para ser entregue aos critérios de julgamento da modernidade. Não por acaso, no “Corriere della Sera” do mesmo dia, Massimo Franco fala do "sintoma extremo, final, irrevogável, da crise de um sistema de governo e de uma forma de papado”.

Não se pode fazer uma comparação, nem com Celestino V, que renunciou após ter sido arrancado à força de sua cela eremítica, nem com Gregório XII, quem, por sua vez, foi forçado a renunciar para resolver a gravíssima questão do Grande Cisma do Ocidente. Tratava-se de casos excepcionais. Mas qual é a exceção no gesto de Bento XVI? A razão, oficial, esculpida nas suas palavras pronunciadas em 11 de fevereiro, mais do que a exceção exprime a normalidade: “No mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande importância para a vida da fé, para governar o barco de Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor, seja do corpo, seja do espírito, vigor que, nos últimos meses, diminuiu em mim de modo tal que devo reconhecer a minha incapacidade".

Não estamos diante de uma grave deficiência, como foi o caso de João Paulo II no final de seu Pontificado. As faculdades intelectuais de Bento XVI estão plenamente íntegras, como demonstrou em uma de suas últimas e mais significativas meditações no Seminário Romano; e a sua saúde é “no conjunto, boa”, como afirmou o porta-voz da Santa Sé, padre Federico Lombardi, segundo o qual, entretanto, o Papa sentiu, nos últimos tempos, “o desequilíbrio entre as tarefas, entre os problemas a serem resolvidos e as forças das quais sente não dispor”.

No entanto, desde o momento da eleição, cada Pontífice experimenta um compreensível sentimento de inadequação, percebendo a desproporção entre suas capacidades pessoais e o peso da tarefa para a qual ele é chamado. Quem pode dizer-se capaz de suportar com suas próprias forças o múnus de Vigário de Cristo? O Espírito Santo, contudo, assiste o Papa, não somente no momento da eleição, senão também até a sua morte, em cada momento, mesmo no mais difícil, de seu Pontificado. Hoje, o Espírito Santo é frequentemente invocado de forma inadequada, como quando se pretende que Ele inspire cada ato e cada palavra de um Papa ou de um Concílio. Nestes dias, no entanto, Ele é o grande ausente dos comentários da mídia, que avaliam o gesto de Bento XVI de acordo com um critério puramente humano, como se a Igreja fosse uma multinacional, guiada em termos de pura eficiência, prescindindo de qualquer influxo sobrenatural.

Mas devemos nos perguntar: em dois mil anos de história, quanto foram os Papas que reinaram com boa saúde e não sentiram o declínio das forças e não sofreram com doenças e provas morais de todo gênero? O bem-estar físico nunca foi um critério de governo da Igreja. Sê-lo-á a partir de Bento XVI? Um católico não pode deixar de se colocar estas perguntas, e, se não as faz, elas serão colocadas pelos fatos, como no próximo conclave, quando a escolha do sucessor de Bento será inevitavelmente orientada para um cardeal jovem, na plenitude de suas forças, para que possa ser considerado adequado à grave missão que o espera. A menos que o cerne do problema não esteja naquelas “questões de grande relevância para a vida da fé” às quais se referiu o Pontífice, e que poderiam aludir à situação de ingovernabilidade em que parece encontrar-se hoje a Igreja.

Seria pouco prudente, sob este aspecto, considerar já “fechado” o Pontificado de Bento XVI, dedicando-se a balanços prematuros antes de aguardar o prazo fatal anunciado por ele: a noite de 28 de fevereiro de 2013, uma data que ficará gravada na história da Igreja. Antes, e mesmo depois dessa data, Bento XVI poderia ainda ser protagonista de novos e inesperados cenários. De fato, o Papa anunciou sua demissão, mas não seu silêncio; e sua escolha restitui-lhe uma liberdade da qual talvez se sentisse privado. O que dirá e fará Bento XVI, ou o cardeal Ratzinger, nos próximos dias, semanas e meses? E, sobretudo, quem guiará, e de que maneira, o barquinho de Pedro nas novas tempestades que inevitavelmente o esperam?Em 11 de fevereiro, dia da Festa de Nossa Senhora de Lourdes, o Santo Padre Bento XVI comunicou ao Consistório de cardeais e a todo o mundo sua decisão de renunciar ao Pontificado. O anúncio foi acolhido pelos cardeais, “quase inteiramente incrédulos”, “com sensação de confusão”, “como um raio em céu sereno”, segundo as palavras dirigidas em seguida ao Papa pelo cardeal decano Ângelo Sodano.

Se foi tão grande a confusão por parte dos cardeais, pode-se imaginar quão forte tem sido nesses dias a desorientação dos fieis, sobretudo daqueles que sempre viram em Bento XVI um ponto de referência, e agora se sentem de algum modo "órfãos", senão mesmo abandonados, em face das graves dificuldades que enfrenta a Igreja no momento presente.

No entanto, a hipótese da renúncia de um Papa ao sólio pontifício não é de todo inesperada. O presidente da Conferência Episcopal da Alemanha, Karl Lehmann, e o primaz da Bélgica, Godfried Danneels, haviam apresentado a hipótese da “renúncia” de João Paulo II, quando as condições de sua saúde haviam se deteriorado. O cardeal Ratzinger, no livro-entrevista de 2010, Luz do Mundo, havia dito ao jornalista alemão Peter Seewald que, se um Papa se dá conta de que não é mais capaz, “física, psicológica e espiritualmente, de cumprir os deveres de seu ofício, então ele tem o direito e, em certas circunstâncias, também a obrigação, de renunciar”. Ainda em 2010, cinquenta teólogos espanhóis haviam manifestado sua adesão à Carta Aberta aos bispos de todo o mundo do teólogo suíço Hans Küng, com estas palavras: “Acreditamos que o Pontificado de Bento XVI se tenha exaurido. O Papa não tem a idade nem a mentalidade para responder adequadamente aos graves e urgentes problemas com os quais a Igreja Católica se defronta. Pensamos, portanto, com o devido respeito por sua pessoa, que deve apresentar a demissão do seu cargo”. E quando, entre 2011 e 2012, alguns jornalistas como Giuliano Ferrara e Antonio Socci havia escrito sobre a possível renúncia do Papa, a hipótese havia suscitado entre os leitores mais desaprovação que consenso.

Não há dúvidas acerca do direito de um Papa de renunciar. O novo Código de Direito Canônico prevê a possibilidade de renúncia do Papa no cânon 332, parágrafo segundo, com estas palavras: “Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie a seu múnus, para a validade se requer que a renúncia seja livremente feita e devidamente manifestada, mas não que seja aceita por alguém”. Nos artigos 1º e 3º da Constituição Apostólica Universi Dominicis Gregis, de 1996, sobre a vacância da Santa Sé, é prevista ademais a possibilidade de que a vacância da Sé Apostólica seja determinada não só pela morte do Papa, mas também por sua renúncia válida.

Na História não são muitos os episódios documentados de abdicação. O caso mais conhecido continua sendo o de São Celestino V, o monge Pietro da Morrone, que foi eleito em Perugia, em 5 de julho de 1294, e coroado em L'Aquila, em 29 de agosto seguinte. Após um Pontificado de apenas cinco meses, ele julgou oportuno renunciar, por não se sentir à altura do cargo que assumira. Preparou, então, a sua abdicação, consultando primeiramente os cardeais e promulgando, depois, uma constituição com a qual confirmava a validade das regras já estabelecidas pelo Papa Gregório X para a realização do próximo Conclave. Em 13 de dezembro, em Nápoles, pronunciou sua abdicação diante do Colégio dos Cardeais, despojou-se da insígnia e das vestes papais, e tomou o hábito de eremita. Em 24 de dezembro de 1294, foi eleito Papa, em seu lugar, Benedetto Caetani, com o nome de Bonifácio VIII. Outro caso de renúncia papal – o último registrado até hoje – ocorreu no decurso do Concílio de Constança (1414-1418). Gregório XII (1406-1415), Papa legítimo, a fim de recompor o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417), enviou a Constança o seu plenipotenciário Carlo Malatesta, para dar a conhecer sua intenção de retirar-se do ofício papal; as demissões foram oficialmente acolhidas em 4 de julho de 1415, pela assembleia sinodal, que ao mesmo tempo depôs o antipapa Bento XIII. Gregório XII foi reintegrado ao Sacro Colégio com o título de cardeal bispo do Porto e com o primeiro grau após o Papa. Abandonando o nome e o hábito pontifício e retomando o nome de cardeal Angelo Correr, ele se retirou como legado papal na província italiana de Le Marche e morreu em Recanati, em 18 de outubro 1417.

Portanto, o caso de renúncia em si não escandaliza: está contemplado no Direito Canônico, e verificou-se historicamente ao longo dos séculos. Note-se, no entanto, que o Papa pode renunciar, e por vezes tem historicamente renunciado ao Pontificado, enquanto este é considerado um “ofício jurisdicional da Igreja”, não ligado indelevelmente à pessoa que o ocupa. A hierarquia apostólica exerce de fato dois poderes misteriosamente unidos na mesma pessoa: o poder da ordem e o poder de jurisdição (cf., por ex., São Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-IIae, q, 39, a. 3, resp.; III, q. 6, a. 2). Ambos poderes são direcionados a realizar os fins peculiares da Igreja, mas cada qual com características próprias, que o distinguem profundamente do outro: a potestas ordinis é o poder de distribuir os meios da graça divina e refere-se à administração dos sacramentos e ao exercício do culto oficial; a potestas iurisdictionis é o poder de governar a instituição eclesiástica e os simples fiéis.
 
O poder de ordem distingue-se do poder de jurisdição não só pela diversidade de natureza e de objeto, mas também pelo modo como o poder de ordem é conferido, uma vez que tem como propriedade ser dado com a consagração, isto é, por meio de um sacramento, e com a impressão de um caráter sagrado. A posse do potestas ordinis é absolutamente indelével, porquanto seus graus não são ofícios temporários, mas imprimem caráter a quem o recebe. De acordo com o Código de Direito Canônico, uma vez que um batizado se torna diácono, sacerdote ou bispo, o é para sempre, e nenhuma autoridade humana pode cancelar essa condição ontológica. Pelo contrário, o poder de jurisdição não é indelével, mas temporário e revogável; suas atribuições, exercidas por pessoas físicas, cessam com o término do mandato.
 
Outra característica importante do poder de ordem é a não territorialidade, pois os graus da hierarquia da ordem são absolutamente independentes de qualquer circunscrição territorial, pelo menos no que respeita à validade do exercício. As atribuições do poder de jurisdição, ao contrário, são sempre limitadas no espaço e têm no território um de seus elementos constitutivos, exceto o do Sumo Pontífice, que não está sujeito a qualquer limitação espacial.

Na Igreja, o poder de jurisdição pertence, jure divino, ao Papa e aos Bispos. A plenitude deste poder, no entanto, reside apenas no Papa que, como fundamento, sustenta todo o edifício eclesiástico. Nele se encontra todo o poder pastoral, e na Igreja não se pode conceber outro independente.

A teologia progressista, pelo contrário, sustenta, em nome do Vaticano II, uma reforma da Igreja num sentido sacramental e carismático, que opõe o poder de ordem ao poder de jurisdição, a Igreja da caridade à do direito, a estrutura episcopal à monárquica. O Papa, reduzido a primus inter pares no interior do colégio dos bispos, exerceria apenas uma função ético-profética, um primado de “honra” ou de “amor”, mas não de governo e de jurisdição. Nesta perspectiva, Hans Küng e outros invocaram a hipótese de um Pontificado “temporário” e não mais vitalício, como uma forma de governo exigida pela celeridade das mudanças do mundo moderno e da contínua novidade de seus problemas. “Não podemos ter um Pontífice de 80 anos que já não está totalmente presente do ponto de vista físico e psíquico”, declarou à emissora “Südwestundfunk” Küng, o qual vê na limitação do mandato do Papa um passo necessário para a reforma radical da Igreja. O Papa seria reduzido a presidente de um Conselho de administração, a uma figura meramente arbitral, ao lado de uma estrutura eclesiástica "aberta", como um sínodo permanente, com poderes deliberativos.

No entanto, caso se entenda que a essência do Papado esteja no poder sacramental de ordem e não no poder supremo de jurisdição, o Pontífice jamais poderia renunciar; se o fizesse, perderia com a renúncia apenas o exercício do poder supremo, mas não o poder em si, que seria indelével como a ordenação sacramental da qual brota. Quem admite a hipótese da renúncia deve admitir com isso que o Papa deriva a sua summa potestas da jurisdição que exerce, e não do sacramento que recebe. A teologia progressista está, portanto, em contradição consigo mesma quando procura fundamentar o Papado sobre sua natureza sacramental e depois reivindica a renúncia de um Papa, a qual por sua vez só pode ser admitida se seu múnus se basear no poder de jurisdição. Pela mesma razão, não poderá haver, após a renúncia de Bento XVI, “dois papas”, um no cargo e outro “emérito”, como foi impropriamente dito. Bento XVI voltará a ser Sua Eminência o Cardeal Ratzinger, e não poderá exercer prerrogativas, como a da infalibilidade, que são intimamente ligadas ao poder de jurisdição pontifício.

O Papa, portanto, pode renunciar. Mas é oportuno que o faça? Um autor por certo não "tradicionalista", Enzo Bianchi, escreveu em “La Stampa” de 1º de julho de 2002: "Segundo a grande Tradição da Igreja do Oriente e do Ocidente, nenhum Papa, nenhum patriarca, nenhum bispo deveria renunciar apenas por ter atingido o limite de idade. É verdade que há cerca de trinta anos na Igreja Católica existe uma norma que convida os bispos a oferecer as próprias renúncias ao Pontífice ao atingirem 75 anos de idade, e é verdade que todos os bispos acolhem com obediência esse convite e apresentam a renúncia, como também é verdade que, normalmente, eles são atendidos e as renúncias acolhidas. Mas esta resta uma norma e uma prática recente, fixada por Paulo VI e confirmada por João Paulo II: nada exclui que no futuro possa ser revista, depois de pesadas as vantagens e os problemas que ela tem produzido nas últimas décadas de aplicação.” A norma pela qual os bispos renunciam a sua diocese a partir dos 75 anos é uma fase recente na História da Igreja, que parece contradizer as palavras de São Paulo, para quem o Pastor é nomeado “ad convivendum et commoriendum” (2 Cor 7,3), para viver e morrer junto a seu rebanho. A vocação de um Pastor, como a de cada batizado, vincula de fato não somente até certa idade e a uma boa saúde, mas até a morte.

Sob este aspecto, a renúncia de Bento XVI ao Pontificado aparece como um ato legítimo do ponto de vista teológico e canônico, mas, no plano histórico, em absoluta descontinuidade com a tradição e a prática da Igreja.  Do ponto de vista do que poderiam ser as suas consequências, trata-se de um gesto não simplesmente “inovador”, mas radicalmente “revolucionário”, como o definiu Eugenio Scalfari em “La Repubblica” de 12 de fevereiro. A imagem da instituição pontifícia, aos olhos da opinião pública de todo o mundo, é de fato despojada de sua sacralidade para ser entregue aos critérios de julgamento da modernidade. Não por acaso, no “Corriere della Sera” do mesmo dia, Massimo Franco fala do "sintoma extremo, final, irrevogável, da crise de um sistema de governo e de uma forma de papado”.

Não se pode fazer uma comparação, nem com Celestino V, que renunciou após ter sido arrancado à força de sua cela eremítica, nem com Gregório XII, quem, por sua vez, foi forçado a renunciar para resolver a gravíssima questão do Grande Cisma do Ocidente. Tratava-se de casos excepcionais. Mas qual é a exceção no gesto de Bento XVI? A razão, oficial, esculpida nas suas palavras pronunciadas em 11 de fevereiro, mais do que a exceção exprime a normalidade: “No mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande importância para a vida da fé, para governar o barco de Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor, seja do corpo, seja do espírito, vigor que, nos últimos meses, diminuiu em mim de modo tal que devo reconhecer a minha incapacidade".

Não estamos diante de uma grave deficiência, como foi o caso de João Paulo II no final de seu Pontificado. As faculdades intelectuais de Bento XVI estão plenamente íntegras, como demonstrou em uma de suas últimas e mais significativas meditações no Seminário Romano; e a sua saúde é “no conjunto, boa”, como afirmou o porta-voz da Santa Sé, padre Federico Lombardi, segundo o qual, entretanto, o Papa sentiu, nos últimos tempos, “o desequilíbrio entre as tarefas, entre os problemas a serem resolvidos e as forças das quais sente não dispor”.

No entanto, desde o momento da eleição, cada Pontífice experimenta um compreensível sentimento de inadequação, percebendo a desproporção entre suas capacidades pessoais e o peso da tarefa para a qual ele é chamado. Quem pode dizer-se capaz de suportar com suas próprias forças o múnus de Vigário de Cristo? O Espírito Santo, contudo, assiste o Papa, não somente no momento da eleição, senão também até a sua morte, em cada momento, mesmo no mais difícil, de seu Pontificado. Hoje, o Espírito Santo é frequentemente invocado de forma inadequada, como quando se pretende que Ele inspire cada ato e cada palavra de um Papa ou de um Concílio. Nestes dias, no entanto, Ele é o grande ausente dos comentários da mídia, que avaliam o gesto de Bento XVI de acordo com um critério puramente humano, como se a Igreja fosse uma multinacional, guiada em termos de pura eficiência, prescindindo de qualquer influxo sobrenatural.

Mas devemos nos perguntar: em dois mil anos de história, quanto foram os Papas que reinaram com boa saúde e não sentiram o declínio das forças e não sofreram com doenças e provas morais de todo gênero? O bem-estar físico nunca foi um critério de governo da Igreja. Sê-lo-á a partir de Bento XVI? Um católico não pode deixar de se colocar estas perguntas, e, se não as faz, elas serão colocadas pelos fatos, como no próximo conclave, quando a escolha do sucessor de Bento será inevitavelmente orientada para um cardeal jovem, na plenitude de suas forças, para que possa ser considerado adequado à grave missão que o espera. A menos que o cerne do problema não esteja naquelas “questões de grande relevância para a vida da fé” às quais se referiu o Pontífice, e que poderiam aludir à situação de ingovernabilidade em que parece encontrar-se hoje a Igreja.

Seria pouco prudente, sob este aspecto, considerar já “fechado” o Pontificado de Bento XVI, dedicando-se a balanços prematuros antes de aguardar o prazo fatal anunciado por ele: a noite de 28 de fevereiro de 2013, uma data que ficará gravada na história da Igreja. Antes, e mesmo depois dessa data, Bento XVI poderia ainda ser protagonista de novos e inesperados cenários. De fato, o Papa anunciou sua demissão, mas não seu silêncio; e sua escolha restitui-lhe uma liberdade da qual talvez se sentisse privado. O que dirá e fará Bento XVI, ou o cardeal Ratzinger, nos próximos dias, semanas e meses? E, sobretudo, quem guiará, e de que maneira, o barquinho de Pedro nas novas tempestades que inevitavelmente o esperam?
Em 11 de fevereiro, dia da Festa de Nossa Senhora de Lourdes, o Santo Padre Bento XVI comunicou ao Consistório de cardeais e a todo o mundo sua decisão de renunciar ao Pontificado. O anúncio foi acolhido pelos cardeais, “quase inteiramente incrédulos”, “com sensação de confusão”, “como um raio em céu sereno”, segundo as palavras dirigidas em seguida ao Papa pelo cardeal decano Ângelo Sodano.

Se foi tão grande a confusão por parte dos cardeais, pode-se imaginar quão forte tem sido nesses dias a desorientação dos fieis, sobretudo daqueles que sempre viram em Bento XVI um ponto de referência, e agora se sentem de algum modo "órfãos", senão mesmo abandonados, em face das graves dificuldades que enfrenta a Igreja no momento presente.

No entanto, a hipótese da renúncia de um Papa ao sólio pontifício não é de todo inesperada. O presidente da Conferência Episcopal da Alemanha, Karl Lehmann, e o primaz da Bélgica, Godfried Danneels, haviam apresentado a hipótese da “renúncia” de João Paulo II, quando as condições de sua saúde haviam se deteriorado. O cardeal Ratzinger, no livro-entrevista de 2010, Luz do Mundo, havia dito ao jornalista alemão Peter Seewald que, se um Papa se dá conta de que não é mais capaz, “física, psicológica e espiritualmente, de cumprir os deveres de seu ofício, então ele tem o direito e, em certas circunstâncias, também a obrigação, de renunciar”. Ainda em 2010, cinquenta teólogos espanhóis haviam manifestado sua adesão à Carta Aberta aos bispos de todo o mundo do teólogo suíço Hans Küng, com estas palavras: “Acreditamos que o Pontificado de Bento XVI se tenha exaurido. O Papa não tem a idade nem a mentalidade para responder adequadamente aos graves e urgentes problemas com os quais a Igreja Católica se defronta. Pensamos, portanto, com o devido respeito por sua pessoa, que deve apresentar a demissão do seu cargo”. E quando, entre 2011 e 2012, alguns jornalistas como Giuliano Ferrara e Antonio Socci havia escrito sobre a possível renúncia do Papa, a hipótese havia suscitado entre os leitores mais desaprovação que consenso.

Não há dúvidas acerca do direito de um Papa de renunciar. O novo Código de Direito Canônico prevê a possibilidade de renúncia do Papa no cânon 332, parágrafo segundo, com estas palavras: “Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie a seu múnus, para a validade se requer que a renúncia seja livremente feita e devidamente manifestada, mas não que seja aceita por alguém”. Nos artigos 1º e 3º da Constituição Apostólica Universi Dominicis Gregis, de 1996, sobre a vacância da Santa Sé, é prevista ademais a possibilidade de que a vacância da Sé Apostólica seja determinada não só pela morte do Papa, mas também por sua renúncia válida.

Na História não são muitos os episódios documentados de abdicação. O caso mais conhecido continua sendo o de São Celestino V, o monge Pietro da Morrone, que foi eleito em Perugia, em 5 de julho de 1294, e coroado em L'Aquila, em 29 de agosto seguinte. Após um Pontificado de apenas cinco meses, ele julgou oportuno renunciar, por não se sentir à altura do cargo que assumira. Preparou, então, a sua abdicação, consultando primeiramente os cardeais e promulgando, depois, uma constituição com a qual confirmava a validade das regras já estabelecidas pelo Papa Gregório X para a realização do próximo Conclave. Em 13 de dezembro, em Nápoles, pronunciou sua abdicação diante do Colégio dos Cardeais, despojou-se da insígnia e das vestes papais, e tomou o hábito de eremita. Em 24 de dezembro de 1294, foi eleito Papa, em seu lugar, Benedetto Caetani, com o nome de Bonifácio VIII. Outro caso de renúncia papal – o último registrado até hoje – ocorreu no decurso do Concílio de Constança (1414-1418). Gregório XII (1406-1415), Papa legítimo, a fim de recompor o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417), enviou a Constança o seu plenipotenciário Carlo Malatesta, para dar a conhecer sua intenção de retirar-se do ofício papal; as demissões foram oficialmente acolhidas em 4 de julho de 1415, pela assembleia sinodal, que ao mesmo tempo depôs o antipapa Bento XIII. Gregório XII foi reintegrado ao Sacro Colégio com o título de cardeal bispo do Porto e com o primeiro grau após o Papa. Abandonando o nome e o hábito pontifício e retomando o nome de cardeal Angelo Correr, ele se retirou como legado papal na província italiana de Le Marche e morreu em Recanati, em 18 de outubro 1417.

Portanto, o caso de renúncia em si não escandaliza: está contemplado no Direito Canônico, e verificou-se historicamente ao longo dos séculos. Note-se, no entanto, que o Papa pode renunciar, e por vezes tem historicamente renunciado ao Pontificado, enquanto este é considerado um “ofício jurisdicional da Igreja”, não ligado indelevelmente à pessoa que o ocupa. A hierarquia apostólica exerce de fato dois poderes misteriosamente unidos na mesma pessoa: o poder da ordem e o poder de jurisdição (cf., por ex., São Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-IIae, q, 39, a. 3, resp.; III, q. 6, a. 2). Ambos poderes são direcionados a realizar os fins peculiares da Igreja, mas cada qual com características próprias, que o distinguem profundamente do outro: a potestas ordinis é o poder de distribuir os meios da graça divina e refere-se à administração dos sacramentos e ao exercício do culto oficial; a potestas iurisdictionis é o poder de governar a instituição eclesiástica e os simples fiéis.
 
O poder de ordem distingue-se do poder de jurisdição não só pela diversidade de natureza e de objeto, mas também pelo modo como o poder de ordem é conferido, uma vez que tem como propriedade ser dado com a consagração, isto é, por meio de um sacramento, e com a impressão de um caráter sagrado. A posse do potestas ordinis é absolutamente indelével, porquanto seus graus não são ofícios temporários, mas imprimem caráter a quem o recebe. De acordo com o Código de Direito Canônico, uma vez que um batizado se torna diácono, sacerdote ou bispo, o é para sempre, e nenhuma autoridade humana pode cancelar essa condição ontológica. Pelo contrário, o poder de jurisdição não é indelével, mas temporário e revogável; suas atribuições, exercidas por pessoas físicas, cessam com o término do mandato.
 
Outra característica importante do poder de ordem é a não territorialidade, pois os graus da hierarquia da ordem são absolutamente independentes de qualquer circunscrição territorial, pelo menos no que respeita à validade do exercício. As atribuições do poder de jurisdição, ao contrário, são sempre limitadas no espaço e têm no território um de seus elementos constitutivos, exceto o do Sumo Pontífice, que não está sujeito a qualquer limitação espacial.

Na Igreja, o poder de jurisdição pertence, jure divino, ao Papa e aos Bispos. A plenitude deste poder, no entanto, reside apenas no Papa que, como fundamento, sustenta todo o edifício eclesiástico. Nele se encontra todo o poder pastoral, e na Igreja não se pode conceber outro independente.

A teologia progressista, pelo contrário, sustenta, em nome do Vaticano II, uma reforma da Igreja num sentido sacramental e carismático, que opõe o poder de ordem ao poder de jurisdição, a Igreja da caridade à do direito, a estrutura episcopal à monárquica. O Papa, reduzido a primus inter pares no interior do colégio dos bispos, exerceria apenas uma função ético-profética, um primado de “honra” ou de “amor”, mas não de governo e de jurisdição. Nesta perspectiva, Hans Küng e outros invocaram a hipótese de um Pontificado “temporário” e não mais vitalício, como uma forma de governo exigida pela celeridade das mudanças do mundo moderno e da contínua novidade de seus problemas. “Não podemos ter um Pontífice de 80 anos que já não está totalmente presente do ponto de vista físico e psíquico”, declarou à emissora “Südwestundfunk” Küng, o qual vê na limitação do mandato do Papa um passo necessário para a reforma radical da Igreja. O Papa seria reduzido a presidente de um Conselho de administração, a uma figura meramente arbitral, ao lado de uma estrutura eclesiástica "aberta", como um sínodo permanente, com poderes deliberativos.

No entanto, caso se entenda que a essência do Papado esteja no poder sacramental de ordem e não no poder supremo de jurisdição, o Pontífice jamais poderia renunciar; se o fizesse, perderia com a renúncia apenas o exercício do poder supremo, mas não o poder em si, que seria indelével como a ordenação sacramental da qual brota. Quem admite a hipótese da renúncia deve admitir com isso que o Papa deriva a sua summa potestas da jurisdição que exerce, e não do sacramento que recebe. A teologia progressista está, portanto, em contradição consigo mesma quando procura fundamentar o Papado sobre sua natureza sacramental e depois reivindica a renúncia de um Papa, a qual por sua vez só pode ser admitida se seu múnus se basear no poder de jurisdição. Pela mesma razão, não poderá haver, após a renúncia de Bento XVI, “dois papas”, um no cargo e outro “emérito”, como foi impropriamente dito. Bento XVI voltará a ser Sua Eminência o Cardeal Ratzinger, e não poderá exercer prerrogativas, como a da infalibilidade, que são intimamente ligadas ao poder de jurisdição pontifício.

O Papa, portanto, pode renunciar. Mas é oportuno que o faça? Um autor por certo não "tradicionalista", Enzo Bianchi, escreveu em “La Stampa” de 1º de julho de 2002: "Segundo a grande Tradição da Igreja do Oriente e do Ocidente, nenhum Papa, nenhum patriarca, nenhum bispo deveria renunciar apenas por ter atingido o limite de idade. É verdade que há cerca de trinta anos na Igreja Católica existe uma norma que convida os bispos a oferecer as próprias renúncias ao Pontífice ao atingirem 75 anos de idade, e é verdade que todos os bispos acolhem com obediência esse convite e apresentam a renúncia, como também é verdade que, normalmente, eles são atendidos e as renúncias acolhidas. Mas esta resta uma norma e uma prática recente, fixada por Paulo VI e confirmada por João Paulo II: nada exclui que no futuro possa ser revista, depois de pesadas as vantagens e os problemas que ela tem produzido nas últimas décadas de aplicação.” A norma pela qual os bispos renunciam a sua diocese a partir dos 75 anos é uma fase recente na História da Igreja, que parece contradizer as palavras de São Paulo, para quem o Pastor é nomeado “ad convivendum et commoriendum” (2 Cor 7,3), para viver e morrer junto a seu rebanho. A vocação de um Pastor, como a de cada batizado, vincula de fato não somente até certa idade e a uma boa saúde, mas até a morte.

Sob este aspecto, a renúncia de Bento XVI ao Pontificado aparece como um ato legítimo do ponto de vista teológico e canônico, mas, no plano histórico, em absoluta descontinuidade com a tradição e a prática da Igreja.  Do ponto de vista do que poderiam ser as suas consequências, trata-se de um gesto não simplesmente “inovador”, mas radicalmente “revolucionário”, como o definiu Eugenio Scalfari em “La Repubblica” de 12 de fevereiro. A imagem da instituição pontifícia, aos olhos da opinião pública de todo o mundo, é de fato despojada de sua sacralidade para ser entregue aos critérios de julgamento da modernidade. Não por acaso, no “Corriere della Sera” do mesmo dia, Massimo Franco fala do "sintoma extremo, final, irrevogável, da crise de um sistema de governo e de uma forma de papado”.

Não se pode fazer uma comparação, nem com Celestino V, que renunciou após ter sido arrancado à força de sua cela eremítica, nem com Gregório XII, quem, por sua vez, foi forçado a renunciar para resolver a gravíssima questão do Grande Cisma do Ocidente. Tratava-se de casos excepcionais. Mas qual é a exceção no gesto de Bento XVI? A razão, oficial, esculpida nas suas palavras pronunciadas em 11 de fevereiro, mais do que a exceção exprime a normalidade: “No mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande importância para a vida da fé, para governar o barco de Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor, seja do corpo, seja do espírito, vigor que, nos últimos meses, diminuiu em mim de modo tal que devo reconhecer a minha incapacidade".

Não estamos diante de uma grave deficiência, como foi o caso de João Paulo II no final de seu Pontificado. As faculdades intelectuais de Bento XVI estão plenamente íntegras, como demonstrou em uma de suas últimas e mais significativas meditações no Seminário Romano; e a sua saúde é “no conjunto, boa”, como afirmou o porta-voz da Santa Sé, padre Federico Lombardi, segundo o qual, entretanto, o Papa sentiu, nos últimos tempos, “o desequilíbrio entre as tarefas, entre os problemas a serem resolvidos e as forças das quais sente não dispor”.

No entanto, desde o momento da eleição, cada Pontífice experimenta um compreensível sentimento de inadequação, percebendo a desproporção entre suas capacidades pessoais e o peso da tarefa para a qual ele é chamado. Quem pode dizer-se capaz de suportar com suas próprias forças o múnus de Vigário de Cristo? O Espírito Santo, contudo, assiste o Papa, não somente no momento da eleição, senão também até a sua morte, em cada momento, mesmo no mais difícil, de seu Pontificado. Hoje, o Espírito Santo é frequentemente invocado de forma inadequada, como quando se pretende que Ele inspire cada ato e cada palavra de um Papa ou de um Concílio. Nestes dias, no entanto, Ele é o grande ausente dos comentários da mídia, que avaliam o gesto de Bento XVI de acordo com um critério puramente humano, como se a Igreja fosse uma multinacional, guiada em termos de pura eficiência, prescindindo de qualquer influxo sobrenatural.

 
Mas devemos nos perguntar: em dois mil anos de história, quanto foram os Papas que reinaram com boa saúde e não sentiram o declínio das forças e não sofreram com doenças e provas morais de todo gênero? O bem-estar físico nunca foi um critério de governo da Igreja. Sê-lo-á a partir de Bento XVI? Um católico não pode deixar de se colocar estas perguntas, e, se não as faz, elas serão colocadas pelos fatos, como no próximo conclave, quando a escolha do sucessor de Bento será inevitavelmente orientada para um cardeal jovem, na plenitude de suas forças, para que possa ser considerado adequado à grave missão que o espera. A menos que o cerne do problema não esteja naquelas “questões de grande relevância para a vida da fé” às quais se referiu o Pontífice, e que poderiam aludir à situação de ingovernabilidade em que parece encontrar-se hoje a Igreja.

Seria pouco prudente, sob este aspecto, considerar já “fechado” o Pontificado de Bento XVI, dedicando-se a balanços prematuros antes de aguardar o prazo fatal anunciado por ele: a noite de 28 de fevereiro de 2013, uma data que ficará gravada na história da Igreja. Antes, e mesmo depois dessa data, Bento XVI poderia ainda ser protagonista de novos e inesperados cenários. De fato, o Papa anunciou sua demissão, mas não seu silêncio; e sua escolha restitui-lhe uma liberdade da qual talvez se sentisse privado. O que dirá e fará Bento XVI, ou o cardeal Ratzinger, nos próximos dias, semanas e meses? E, sobretudo, quem guiará, e de que maneira, o barquinho de Pedro nas novas tempestades que inevitavelmente o esperam?
Em 11 de fevereiro, dia da Festa de Nossa Senhora de Lourdes, o Santo Padre Bento XVI comunicou ao Consistório de cardeais e a todo o mundo sua decisão de renunciar ao Pontificado. O anúncio foi acolhido pelos cardeais, “quase inteiramente incrédulos”, “com sensação de confusão”, “como um raio em céu sereno”, segundo as palavras dirigidas em seguida ao Papa pelo cardeal decano Ângelo Sodano.

Se foi tão grande a confusão por parte dos cardeais, pode-se imaginar quão forte tem sido nesses dias a desorientação dos fieis, sobretudo daqueles que sempre viram em Bento XVI um ponto de referência, e agora se sentem de algum modo "órfãos", senão mesmo abandonados, em face das graves dificuldades que enfrenta a Igreja no momento presente.

No entanto, a hipótese da renúncia de um Papa ao sólio pontifício não é de todo inesperada. O presidente da Conferência Episcopal da Alemanha, Karl Lehmann, e o primaz da Bélgica, Godfried Danneels, haviam apresentado a hipótese da “renúncia” de João Paulo II, quando as condições de sua saúde haviam se deteriorado. O cardeal Ratzinger, no livro-entrevista de 2010, Luz do Mundo, havia dito ao jornalista alemão Peter Seewald que, se um Papa se dá conta de que não é mais capaz, “física, psicológica e espiritualmente, de cumprir os deveres de seu ofício, então ele tem o direito e, em certas circunstâncias, também a obrigação, de renunciar”. Ainda em 2010, cinquenta teólogos espanhóis haviam manifestado sua adesão à Carta Aberta aos bispos de todo o mundo do teólogo suíço Hans Küng, com estas palavras: “Acreditamos que o Pontificado de Bento XVI se tenha exaurido. O Papa não tem a idade nem a mentalidade para responder adequadamente aos graves e urgentes problemas com os quais a Igreja Católica se defronta. Pensamos, portanto, com o devido respeito por sua pessoa, que deve apresentar a demissão do seu cargo”. E quando, entre 2011 e 2012, alguns jornalistas como Giuliano Ferrara e Antonio Socci havia escrito sobre a possível renúncia do Papa, a hipótese havia suscitado entre os leitores mais desaprovação que consenso.

Não há dúvidas acerca do direito de um Papa de renunciar. O novo Código de Direito Canônico prevê a possibilidade de renúncia do Papa no cânon 332, parágrafo segundo, com estas palavras: “Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie a seu múnus, para a validade se requer que a renúncia seja livremente feita e devidamente manifestada, mas não que seja aceita por alguém”. Nos artigos 1º e 3º da Constituição Apostólica Universi Dominicis Gregis, de 1996, sobre a vacância da Santa Sé, é prevista ademais a possibilidade de que a vacância da Sé Apostólica seja determinada não só pela morte do Papa, mas também por sua renúncia válida.

Na História não são muitos os episódios documentados de abdicação. O caso mais conhecido continua sendo o de São Celestino V, o monge Pietro da Morrone, que foi eleito em Perugia, em 5 de julho de 1294, e coroado em L'Aquila, em 29 de agosto seguinte. Após um Pontificado de apenas cinco meses, ele julgou oportuno renunciar, por não se sentir à altura do cargo que assumira. Preparou, então, a sua abdicação, consultando primeiramente os cardeais e promulgando, depois, uma constituição com a qual confirmava a validade das regras já estabelecidas pelo Papa Gregório X para a realização do próximo Conclave. Em 13 de dezembro, em Nápoles, pronunciou sua abdicação diante do Colégio dos Cardeais, despojou-se da insígnia e das vestes papais, e tomou o hábito de eremita. Em 24 de dezembro de 1294, foi eleito Papa, em seu lugar, Benedetto Caetani, com o nome de Bonifácio VIII. Outro caso de renúncia papal – o último registrado até hoje – ocorreu no decurso do Concílio de Constança (1414-1418). Gregório XII (1406-1415), Papa legítimo, a fim de recompor o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417), enviou a Constança o seu plenipotenciário Carlo Malatesta, para dar a conhecer sua intenção de retirar-se do ofício papal; as demissões foram oficialmente acolhidas em 4 de julho de 1415, pela assembleia sinodal, que ao mesmo tempo depôs o antipapa Bento XIII. Gregório XII foi reintegrado ao Sacro Colégio com o título de cardeal bispo do Porto e com o primeiro grau após o Papa. Abandonando o nome e o hábito pontifício e retomando o nome de cardeal Angelo Correr, ele se retirou como legado papal na província italiana de Le Marche e morreu em Recanati, em 18 de outubro 1417.

Portanto, o caso de renúncia em si não escandaliza: está contemplado no Direito Canônico, e verificou-se historicamente ao longo dos séculos. Note-se, no entanto, que o Papa pode renunciar, e por vezes tem historicamente renunciado ao Pontificado, enquanto este é considerado um “ofício jurisdicional da Igreja”, não ligado indelevelmente à pessoa que o ocupa. A hierarquia apostólica exerce de fato dois poderes misteriosamente unidos na mesma pessoa: o poder da ordem e o poder de jurisdição (cf., por ex., São Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-IIae, q, 39, a. 3, resp.; III, q. 6, a. 2). Ambos poderes são direcionados a realizar os fins peculiares da Igreja, mas cada qual com características próprias, que o distinguem profundamente do outro: a potestas ordinis é o poder de distribuir os meios da graça divina e refere-se à administração dos sacramentos e ao exercício do culto oficial; a potestas iurisdictionis é o poder de governar a instituição eclesiástica e os simples fiéis.
 
O poder de ordem distingue-se do poder de jurisdição não só pela diversidade de natureza e de objeto, mas também pelo modo como o poder de ordem é conferido, uma vez que tem como propriedade ser dado com a consagração, isto é, por meio de um sacramento, e com a impressão de um caráter sagrado. A posse do potestas ordinis é absolutamente indelével, porquanto seus graus não são ofícios temporários, mas imprimem caráter a quem o recebe. De acordo com o Código de Direito Canônico, uma vez que um batizado se torna diácono, sacerdote ou bispo, o é para sempre, e nenhuma autoridade humana pode cancelar essa condição ontológica. Pelo contrário, o poder de jurisdição não é indelével, mas temporário e revogável; suas atribuições, exercidas por pessoas físicas, cessam com o término do mandato.
 
Outra característica importante do poder de ordem é a não territorialidade, pois os graus da hierarquia da ordem são absolutamente independentes de qualquer circunscrição territorial, pelo menos no que respeita à validade do exercício. As atribuições do poder de jurisdição, ao contrário, são sempre limitadas no espaço e têm no território um de seus elementos constitutivos, exceto o do Sumo Pontífice, que não está sujeito a qualquer limitação espacial.

Na Igreja, o poder de jurisdição pertence, jure divino, ao Papa e aos Bispos. A plenitude deste poder, no entanto, reside apenas no Papa que, como fundamento, sustenta todo o edifício eclesiástico. Nele se encontra todo o poder pastoral, e na Igreja não se pode conceber outro independente.

A teologia progressista, pelo contrário, sustenta, em nome do Vaticano II, uma reforma da Igreja num sentido sacramental e carismático, que opõe o poder de ordem ao poder de jurisdição, a Igreja da caridade à do direito, a estrutura episcopal à monárquica. O Papa, reduzido a primus inter pares no interior do colégio dos bispos, exerceria apenas uma função ético-profética, um primado de “honra” ou de “amor”, mas não de governo e de jurisdição. Nesta perspectiva, Hans Küng e outros invocaram a hipótese de um Pontificado “temporário” e não mais vitalício, como uma forma de governo exigida pela celeridade das mudanças do mundo moderno e da contínua novidade de seus problemas. “Não podemos ter um Pontífice de 80 anos que já não está totalmente presente do ponto de vista físico e psíquico”, declarou à emissora “Südwestundfunk” Küng, o qual vê na limitação do mandato do Papa um passo necessário para a reforma radical da Igreja. O Papa seria reduzido a presidente de um Conselho de administração, a uma figura meramente arbitral, ao lado de uma estrutura eclesiástica "aberta", como um sínodo permanente, com poderes deliberativos.

No entanto, caso se entenda que a essência do Papado esteja no poder sacramental de ordem e não no poder supremo de jurisdição, o Pontífice jamais poderia renunciar; se o fizesse, perderia com a renúncia apenas o exercício do poder supremo, mas não o poder em si, que seria indelével como a ordenação sacramental da qual brota. Quem admite a hipótese da renúncia deve admitir com isso que o Papa deriva a sua summa potestas da jurisdição que exerce, e não do sacramento que recebe. A teologia progressista está, portanto, em contradição consigo mesma quando procura fundamentar o Papado sobre sua natureza sacramental e depois reivindica a renúncia de um Papa, a qual por sua vez só pode ser admitida se seu múnus se basear no poder de jurisdição. Pela mesma razão, não poderá haver, após a renúncia de Bento XVI, “dois papas”, um no cargo e outro “emérito”, como foi impropriamente dito. Bento XVI voltará a ser Sua Eminência o Cardeal Ratzinger, e não poderá exercer prerrogativas, como a da infalibilidade, que são intimamente ligadas ao poder de jurisdição pontifício.

O Papa, portanto, pode renunciar. Mas é oportuno que o faça? Um autor por certo não "tradicionalista", Enzo Bianchi, escreveu em “La Stampa” de 1º de julho de 2002: "Segundo a grande Tradição da Igreja do Oriente e do Ocidente, nenhum Papa, nenhum patriarca, nenhum bispo deveria renunciar apenas por ter atingido o limite de idade. É verdade que há cerca de trinta anos na Igreja Católica existe uma norma que convida os bispos a oferecer as próprias renúncias ao Pontífice ao atingirem 75 anos de idade, e é verdade que todos os bispos acolhem com obediência esse convite e apresentam a renúncia, como também é verdade que, normalmente, eles são atendidos e as renúncias acolhidas. Mas esta resta uma norma e uma prática recente, fixada por Paulo VI e confirmada por João Paulo II: nada exclui que no futuro possa ser revista, depois de pesadas as vantagens e os problemas que ela tem produzido nas últimas décadas de aplicação.” A norma pela qual os bispos renunciam a sua diocese a partir dos 75 anos é uma fase recente na História da Igreja, que parece contradizer as palavras de São Paulo, para quem o Pastor é nomeado “ad convivendum et commoriendum” (2 Cor 7,3), para viver e morrer junto a seu rebanho. A vocação de um Pastor, como a de cada batizado, vincula de fato não somente até certa idade e a uma boa saúde, mas até a morte.

Sob este aspecto, a renúncia de Bento XVI ao Pontificado aparece como um ato legítimo do ponto de vista teológico e canônico, mas, no plano histórico, em absoluta descontinuidade com a tradição e a prática da Igreja.  Do ponto de vista do que poderiam ser as suas consequências, trata-se de um gesto não simplesmente “inovador”, mas radicalmente “revolucionário”, como o definiu Eugenio Scalfari em “La Repubblica” de 12 de fevereiro. A imagem da instituição pontifícia, aos olhos da opinião pública de todo o mundo, é de fato despojada de sua sacralidade para ser entregue aos critérios de julgamento da modernidade. Não por acaso, no “Corriere della Sera” do mesmo dia, Massimo Franco fala do "sintoma extremo, final, irrevogável, da crise de um sistema de governo e de uma forma de papado”.

Não se pode fazer uma comparação, nem com Celestino V, que renunciou após ter sido arrancado à força de sua cela eremítica, nem com Gregório XII, quem, por sua vez, foi forçado a renunciar para resolver a gravíssima questão do Grande Cisma do Ocidente. Tratava-se de casos excepcionais. Mas qual é a exceção no gesto de Bento XVI? A razão, oficial, esculpida nas suas palavras pronunciadas em 11 de fevereiro, mais do que a exceção exprime a normalidade: “No mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande importância para a vida da fé, para governar o barco de Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor, seja do corpo, seja do espírito, vigor que, nos últimos meses, diminuiu em mim de modo tal que devo reconhecer a minha incapacidade".

Não estamos diante de uma grave deficiência, como foi o caso de João Paulo II no final de seu Pontificado. As faculdades intelectuais de Bento XVI estão plenamente íntegras, como demonstrou em uma de suas últimas e mais significativas meditações no Seminário Romano; e a sua saúde é “no conjunto, boa”, como afirmou o porta-voz da Santa Sé, padre Federico Lombardi, segundo o qual, entretanto, o Papa sentiu, nos últimos tempos, “o desequilíbrio entre as tarefas, entre os problemas a serem resolvidos e as forças das quais sente não dispor”.

No entanto, desde o momento da eleição, cada Pontífice experimenta um compreensível sentimento de inadequação, percebendo a desproporção entre suas capacidades pessoais e o peso da tarefa para a qual ele é chamado. Quem pode dizer-se capaz de suportar com suas próprias forças o múnus de Vigário de Cristo? O Espírito Santo, contudo, assiste o Papa, não somente no momento da eleição, senão também até a sua morte, em cada momento, mesmo no mais difícil, de seu Pontificado. Hoje, o Espírito Santo é frequentemente invocado de forma inadequada, como quando se pretende que Ele inspire cada ato e cada palavra de um Papa ou de um Concílio. Nestes dias, no entanto, Ele é o grande ausente dos comentários da mídia, que avaliam o gesto de Bento XVI de acordo com um critério puramente humano, como se a Igreja fosse uma multinacional, guiada em termos de pura eficiência, prescindindo de qualquer influxo sobrenatural.

Mas devemos nos perguntar: em dois mil anos de história, quanto foram os Papas que reinaram com boa saúde e não sentiram o declínio das forças e não sofreram com doenças e provas morais de todo gênero? O bem-estar físico nunca foi um critério de governo da Igreja. Sê-lo-á a partir de Bento XVI? Um católico não pode deixar de se colocar estas perguntas, e, se não as faz, elas serão colocadas pelos fatos, como no próximo conclave, quando a escolha do sucessor de Bento será inevitavelmente orientada para um cardeal jovem, na plenitude de suas forças, para que possa ser considerado adequado à grave missão que o espera. A menos que o cerne do problema não esteja naquelas “questões de grande relevância para a vida da fé” às quais se referiu o Pontífice, e que poderiam aludir à situação de ingovernabilidade em que parece encontrar-se hoje a Igreja.

Seria pouco prudente, sob este aspecto, considerar já “fechado” o Pontificado de Bento XVI, dedicando-se a balanços prematuros antes de aguardar o prazo fatal anunciado por ele: a noite de 28 de fevereiro de 2013, uma data que ficará gravada na história da Igreja. Antes, e mesmo depois dessa data, Bento XVI poderia ainda ser protagonista de novos e inesperados cenários. De fato, o Papa anunciou sua demissão, mas não seu silêncio; e sua escolha restitui-lhe uma liberdade da qual talvez se sentisse privado. O que dirá e fará Bento XVI, ou o cardeal Ratzinger, nos próximos dias, semanas e meses? E, sobretudo, quem guiará, e de que maneira, o barquinho de Pedro nas novas tempestades que inevitavelmente o esperam?

Roberto de Mattei*
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Tradução: Giulia d'Amore di Ugento
Fonte: Corrispondenza Romana
Disponível em: Pale Ideas
Título Original: A Renúncia de Bento XVI
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*Historiador italiano dedicado particularmente à história europeia, entre os séculos XVI e XX, com foco sobretudo à história das ideias religiosas e políticas. Católico tradicionalista, é conhecido por suas posições anti-evolucionistas, anunciadas inclusive em ambientes institucionais, e por sua crítica ao relativismo e às linhas de pensamentos que se afirmaram na Igreja após o Concílio II. Atualmente é docente de Historia Moderna e História do Cristianismo junto à Universidade Europeia de Roma, instituto dos Legionários de Cristo, onde também é coordenador do curso de láurea em Ciências Históricas. Foi conselheiro para questões internacionais dos governos Berlusconi I e II. É presidente da Fundação Lepanto e membro dos conselhos diretivos do Instituto Histórico Italiano para a idade Moderna e Contemporânea e da Sociedade Geográfica Italiana. Colabora com o Pontifício Comitê de Ciências Históricas. É diretor das revistas Nova Historica, Radici Cristiane e Corrispondenza Romana. Em 2001, fez, junto com outros renomados católicos tradicionalistas, um apelo público ao Papa contra o encontro interconfessional de Assis III. Publicou dezesseis títulos, entre os quais se destacam uma biografia sobre Plínio Corrêa de Oliveira e outra sobre o papa Pio IX; um texto sobre as relações entre a Europa e o Islã; um livro sobre os movimentos sectários e heréticos do século XVI e um ensaio de crítica à negação das ‘raízes cristãs’ da Europa, além do já célebre ‘Concílio Vaticano II. Uma história nunca escrita’, no qual de Mattei critica aqueles personagens que poderiam ter represado a ‘onda progressista’ no seio da Igreja e não o fizeram. De Mattei atribui a deriva pós-conciliar da Igreja a fatores como o influxo da chamada ‘teologia progressista’ (Hans Küng). Por causa disso, o seu nome é associado às posições sustentadas pelos lefebvrianos. Por esta obra foi indicado, em 2011, a dois prêmios: ‘Pen Club Italiano’ e ‘XLIV Premio Acqui Storia’, este último ele acabou ganhando em outubro de 2010.

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