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quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O islamismo é a “religião da paz”?


Diferentemente de nossos colonizadores portugueses, o Brasil desconhece quase inteiramente a religião muçulmana, tendo seu provável primeiro grande contato com o islamismo no dia 11 de setembro de 2001, no ataque às torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York.

Confuso e imerso em uma cultura embebida em um forte discurso anti-americanista, o brasileiro se sentiu perdido com um ataque terrorista perpetrado por um grupo de profundíssima base religiosa como a al-Qaeda. Ao mesmo tempo, logo o islamismo foi apresentado como “a religião da paz”.

Um estudo para responder a esta complexa questão exige muitas leituras religiosas, históricas, filosóficas e teológicas, podendo no máximo ser proposto um rápido esboço.

É a única chance de conseguirmos alguma resposta inicial sem se calcar em clichês de superfície na internet, baseados em generalizações como “todas as religiões são iguais” e demais tentativas de equalização jogadas sem explicação, envolvendo quase sempre a Inquisição, a Bíblia ou Israel, sem nunca um estudo sobre o islamismo, o Corão ou mesmo as Escrituras e a história do cristianismo.


O maior estudioso das religiões no mundo, o romeno Mircea Eliade, em um dos livros mais importantes do século XX, O Sagrado e o Profano: A essência das religiões, explica como a experiência do “sagrado” é comum a todas as religiões e todos os povos, sendo um elemento da nossa mentalidade que não desaparece mesmo entre aqueles desligados de experiências religiosas.

O homem religioso, por exemplo, pensa no tempo de maneira específica. Enquanto o tempo histórico é uma sucessão numeralizável de “presentes”, o tempo sagrado possui tempos “fortes”, as datas festivas religiosas, e tempos de menor importância. O tempo também é razoavelmente cíclico, e uma data festiva, seja a Páscoa, o Ramadã ou o intichiuma totêmico dos australianos significa não apenas a lembrança posterior de um evento passado, mas a recorrência deste evento, sempre represente, sempre revivido, podendo purificar pecados e preparar os participantes para um novo ciclo. É o que Eliade chama de “Tornar-se periodicamente o contemporâneo dos deuses”.


O espaço também é sagrado, exigindo, por exemplo, dentro de uma igreja, um comportamento diferente daquele fora dela. Estes elementos permanecem em nossa visão secular e profana. Desde o espaço estelar, lar dos deuses, até o solo habitado pelos humanos, há uma terra sagrada, a “Consagração de um lugar”. Este lugar sagrado é o axis mundi, o eixo do mundo, que emana o Cosmos (o lugar da ordem) e repete a cosmogonia, a criação de todo o mundo.

Fora deste lugar há o caos, o espaço não ordenado. É o “leste do Éden”. É o reino incível, sem lei e sem ordem, inóspito (ou seja, sem proteção ao homem) e lar do indômito e da barbárie ou da lei da selva. As duas obras de Homero, a Ilíada e a Odisséia, tratam exatamente do contato com um povo de uma diferente civilização (os troianos, de uma região hoje provavelmente na Turquia, que muitas vezes são mais heróicos e valorosos do que os gregos) e, na segunda obra, do retorno de Odisseu pelo mundo inóspito, até os confins do Universo conhecido dos gregos de então.

Um dos exemplos mais conhecidos e didáticos desta divisão espacial é a Yggdrasil nórdica, a árvore que é o eixo do Universo e da qual a Terra, Miðgarðr (Midgård), é um dos nove mundos. Outro dos mundos, Ásgarðr (Åsgard), é habitado pelos deuses. O palácio dos deuses em Åsgard, Valhöll (Valhalla) é separado do restante do mundo por uma muralha construída pelo cavalo Svaðilfari, o “viajante azarado”. Svaðilfari “percorre a fronteira entre o mundo dos gigantes e o dos deuses, entre o espaço controlado e o não controlado” (Johnni Langer, Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos, p. 96, grifos nossos).

Esta cisão radical, comungada pelo pensamento religioso universal, foi uma das inspirações mitológicas de George R. R. Martin para construir o mundo de sua série Game of Thrones: o mundo das violentas sete civilizações de Westeros é separado do extremo norte por uma muralha análoga à dos deuses nórdicos, e para além da muralha não há reino, não há leis, não há ordem, apenas o caos: o “povo livre”, espécie nômade de bárbaros anarquistas, vive sem proteção (sem ordem) enfrentando gigantes, provações naturais e os perigosos invernos intermináveis que podem trazer os Outros (White Walkers), zumbis impiedosos que só não atacam as civilizações de Westeros por ainda estarem separados delas pela muralha.

É a partir desta diferenciação temporal e espacial que devemos entender todas as religiões, incluindo, claro, o islamismo. Na mentalidade maometana, antes do advento do profeta, o mundo vivia em jahiliyyah, ou seja, ignorância. Quando Maomé chega à península arábica marca-se uma nova temporalidade, uma sacralidade do tempo para o muçulmano: é quando o mundo, em sua visão, teria seu primeiro vestígio de verdade, sendo tudo o que vem anterior a Maomé apenas presságios.

Por isto os profetas abraâmicos são considerados “profetas” não mais em relação ao mundo, à realidade ou à salvação, mas tão somente à chegada de Maomé, que deve ser obedecido ao invés dos “ignorantes” anteriores.

Qualquer pessoa que não sabia disto tudo, portanto, estava vivendo em jahiliyyah até este momento.