quinta-feira, 20 de julho de 2017

Do tempo para a eternidade?



A tese que afirma a ressurreição logo após a morte, baseia-se, entre outras, sobre a alegação de que, com a morte, acaba o tempo e começa a eternidade para o indivíduo. Por isto não há que esperar o dia do juízo (supostamente no fim dos tempos), mas este já está presente ao indivíduo falecido, ocasionando-lhe a ressurreição final.

Ora, tal argumento vem a ser autêntico sofisma. Na verdade, entre tempo e eternidade existe um meio-termo, que é o evo ou a eviternidade. Com efeito, o tempo implica mutabilidade substancial e mutabilidade acidental; a eternidade implica imutabilidade substancial e imutabilidade acidental. — Pois bem; o evo significa i-mutabilidade substancial e mutabilidade acidental.

Estes vocábulos filosóficos e técnicos são explicados no corpo do artigo, de modo a evidenciar que, após a morte, o indivíduo não goza da eternidade (esta é própria e exclusiva de Deus), mas goza da imortalidade e do evo. A eternidade compete ao Único Ser que não tem princípio nem fim: Deus. É impensável para o homem, caracterizado por uma sucessão de atos de conhecimento e amor (o que vem a ser precisamente o evo).

Este artigo já foi publicado em PR 275/1984, pp. 274-281. Tornamos a publicá-lo a fim de complementar as reflexões sobre a ressurreição contidas em PR 390/1994.
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É sempre difícil ao pensador refletir sobre o Além, embora a própria razão possa por si chegar à convicção de que a morte não é um fim, mas uma transição. Se não houvesse outra vida, onde as aspirações fundamentais do homem à Verdade, ao Amor, à Justiça, à Felicidade... fossem preenchidas, a criatura humana seria a mais miserável dentre todas.
 
Essa dificuldade de refletir já era expressa pelo Apóstolo quando dizia:

"O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, e o coração do homem não percebeu, eis o que Deus preparou para aqueles que O amam" (1Cor 2,9).

Todavia é lícito ao pensador tentar penetrar na realidade da vida póstuma — o que, aliás, tem sido feito constantemente no decorrer da história. Entre as teses que recentemente vêm sendo propostas a respeito, está a de que o ser humano, logo após a morte, entra na eternidade; por conseguinte, vê-se na consumação dos tempos ou diante da parusia (segunda vinda) do Senhor Jesus; dado que, após a morte, não estará sujeito ao tempo (com a sucessão de dias e noites e com o ritmo de passado e futuro), a criatura humana não teria que "esperar" a consumação da história, mas já a presenciaria!
 
Esta afirmação merecerá a nossa atenção no presente artigo. Antes de considerá-la mais detidamente, observamos que supomos a validade de uma premissa que tanto a filosofia quanto a fé recomendam como verídica, apesar de contestada em nossos dias:

A Igreja afirma a sobrevivência e a subsistência, depois da morte, de um elemento espiritual, dotado de consciência e de vontade, de tal modo que o eu humano subsista, embora entrementes careça do complemento do seu corpo. Para designar este elemento, a Igreja emprega a palavra alma, consagrada pelo uso que dela fazem a Sagrada Escritura e a Tradição. Sem ignorar que este termo é tomado na Bíblia em diversos significados, Ela julga, não obstante, que não existe qualquer razão séria para o rejeitar e considera mesmo ser absolutamente indispensável um instrumento verbal para sustentar a fé dos cristãos" (Carta da Congregação para a Doutrina da Fé sobre algumas questões referentes à Escatologia, 17/05/1979).

A morte, portanto, vem a ser a separação da alma espiritual, imortal e do corpo deteriorado em suas funções fundamentais e, por isto, incapacitado de continuar a ser sede da vida humana (vegetativa, sensitiva, intelectiva).
 
A alma, ao separar-se do corpo, deixaria o tempo para entrar na eternidade?

Os que respondem afirmativamente, supõem não haver meio-termo entre tempo e eternidade. Ora é precisamente este pressuposto que gera a falsa tese. A razão humana é capaz de conceber um estado intermediário que, na linguagem da Filosofia Escolástica, foi chamado aevum ou aeviternitas, donde evo e eviternidade. Examinemos atentamente tal noção. 
1. ENTRE TEMPO E ETERNIDADE
 
A palavra vernácula evo vem do indo-europeu aiues-os; donde se faz em sânscrito ayuh, em grego aion e em latim aevum. A significação primeira do vocábulo é vida, curso de vida; dai, longo período de tempo e, por fim, eternidade ou existência sem fim (veja-se também a forma grega aiei, aei, sempre).

Os antigos cristãos entenderam tal termo em suas variadas acepções, empregando-o ora no sentido de vida, ora no de tempo, ora no de eternidade.

Na Filosofia Escolástica, porém, aevum assumiu significado preciso, distinguindo-se nitidamente de tempo e eternidade. S. Tomás de Aquino, por exemplo, afirma: "Aevum differt a tempore et ah aeternitate sicut médium exsistens inter illa. — O evo difere do tempo e da eternidade como algo de intermediário entre um e outra" (Suma Teológica I, 10,5; cf. In I Sententiarum, dist. 8, qu. 2, a. 1, ad 6). O pensamento do S. Doutor poderia ser assim explicitado:

— o tempo implica mutabilidade substancial e mutabilidade acidental
— a eternidade implica i-mutabilidade substancial e i-mutabilidade acidental
— o evo implica i-mutabilidade substancial e mutabilidade acidental.
 
Com outras palavras:
 
1) O tempo supõe uma criatura em movimento tanto substancial como acidental, e vem a ser o "numerus motus secundum prius et poste-rius", ou seja, a medição do movimento ou da mutabilidade de uma substância (o ser humano, por exemplo) ou de seus acidentes (a atividade artística, o estudo, o repouso, por exemplo). O tempo rege a existência de qualquer criatura corpórea, composta de matéria e forma, ... criatura que teve começo e terá fim. A noção de tempo e suas conseqüências tem ocupado longamente os filósofos antigos e modernos, chegando a ser o centro da escola filosófica do temporalismo, com a qual se relacionou de perto Martin Heidegger. De maneira um tanto poética, Platão dizia que o tempo (chrónos) foi feito pelo Artífice do mundo como "imagem móvel da eternidade" (eiko kíneton tina aiónos), imagem que procede segundo o número, ao passo que "a eternidade permanece na unidade" (ménontos aiónos en hení).

2)   A eternidade poderia ser definida como interminabilis vitae tota si-mul et perfecta possessio (Boécio, De consolatione philosophiae V); é a posse de uma vida toda presente a si mesma. Esta omnissimultaneidade é própria e exclusiva de Deus; só o Altíssimo não teve começo e não terá fim; só Deus possui todo o seu ser e toda a sua atividade num único momento, pois só Ele é infinitamente perfeito; Ele não deixou de ser o que Ele teria sido, e não virá a ser o que Ele ainda não seja.

3)   Ora há seres que tiveram começo, pois foram criados. Mas, por serem criaturas espirituais, não estão sujeitos ao devir e à corrupção físicos; são imortais. Tais criaturas evidentemente não são eternas (pois tiveram início), mas também não são temporais; nelas não há mudança substancial (deterioração física), mas há mudanças acidentais, ou uma sucessão de atos (de conhecimento, de amor, de propósitos...). A medida da existência de tais criaturas é o evo ou a eviternidade; esses seres, por sua natureza e substância (ou por seu modo de ser), não conhecem a temporalidade, mas são incapazes de apreender o seu objeto de conhecimento num só ato; por isto experimentam a sucessão no seu agir.

Este é o caso da alma logo após a dissolução do composto humano. Deixa de existir no tempo, ao qual a prendia a sua presença no corpo, para existir na eviternidade; já não está sujeita à sucessão de dias e noites, mas fica sujeita à sucessão de atos que exprimem a sua vida intelectiva, quer se ache na amizade de Deus, quer esteja avessa a Deus.

O evo, assim entendido, é chamado por J. Ratzinger "o tempo antropológico" e por Candido Pozo "o tempo psicológico" ([1]) em oposição ao tempo físico. Este é marcado pelo movimento da terra em torno do sol, ao passo que aquele tem a sua raiz na seqüência de atos do psiquismo humano (que conhece... e que emite propósitos...).

A quem reflete, torna-se evidente a necessidade de admitir o evo. Com efeito, é impossível conceber que um ser que não tenha a perfeição infinita (o que equivale a dizer: um ser criado) seja capaz da posse simultânea de toda a sua existência; tal criatura está essencialmente ligada à sucessão de atos pelos quais ela vai chegando à plenitude do seu desabrocha-mento; a morte não tem o efeito mágico de transformar uma criatura essencialmente dada à sucessão em um ser que possua simultaneamente o que ele já viveu e o que ele ainda não viveu. Tem razão Ruiz de la Pena quando diz que "suprimir toda sucessão na existência dos seres criados que saem do tempo, equivaleria a apagar a fronteira que separa de Deus a criatura" (La otra dimensión, p. 395).

A mesma proposição é sustentada por Leo Scheffczyk. Este teólogo, tendo enfatizado que após a morte não há tempo como durante a vida terrestre, comenta sabiamente:

"Isto, porém, não exclui uma sucessão de atos e um desabrochar atemporal de ocupações e atividades acidentais. Se alguém quisesse negar tal sucessão... estaria derrubando a fronteira que existe entre a alma separada do corpo e o próprio Deus" (Das besondere Gericht im Lichte der gegenwärtigen Diskussion, em Scholastik 32, 1957, 541).

Faz eco a tais dizeres a afirmação de D. von Hertling:

"Os anjos e as almas humanas separadas do corpo ocupam uma posição intermediária entre o tempo e a eternidade. Não estão sujeitos ao tempo terrestre, pois, como substâncias espirituais, são por si imutáveis. Nesta perspectiva, estão fora do tempo, à semelhança de Deus. Mas os espíritos criados estão sujeitos a uma sucessão ou, ao menos, a uma pluralidade de atos, ao passo que Deus só possui uma atividade ou, melhor, é uma única atividade" (Der Himmel, München 1935, p.31).

Estas ponderações fundamentam suficientemente a existência do evo como necessário meio-termo entre o tempo e a eternidade.

2. CONCLUSÃO

De quanto foi explanado, depreende-se que não há como dizer que o ser humano, ao deixar a vida terrestre, não tem mais perspectiva de futuro e, por isto, já presencia a consumação dos tempos e o juízo final. Na verdade, a criatura nunca poderá deixar o seu regime de ser criado para entrar no do Ser Incriado e Criador.

Há, pois, uma duração no além e uma percepção consciente dessa duração por parte da alma humana, o que quer dizer: ... percepção de um antes e depois, que não são assinalados pelo movimento da terra, mas pela sucessão de atos emitidos pelo eu desse sujeito.

É, aliás, isto o que a Igreja quis declarar mediante os itens 5 e 6 da Carta da Congregação para a Doutrina da Fé atrás citada:

"5) A Igreja, em conformidade com a Sagrada Escritura, espera a gloriosa manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo, que Ela considera como distinta e diferida em relação àquela condição do homem imediatamente depois da morte.

6) A Igreja, ao expor a sua doutrina sobre a sorte do homem depois da morte, exclui qualquer explicação que tirasse o seu sentido à Assunção de Nossa Senhora, naquilo que esta tem de único, ou seja, o fato de ser a glorificação corporal da Virgem Santíssima uma antecipação da glorificação que está destinada a todos os outros eleitos".

De modo especial, deve-se dizer que no além os nossos semelhantes continuam a se sentir solidários com as pessoas que ainda peregrinam na terra e que, a um título ou outro, lhes estão vinculadas: parentes, amigos, discípulos, mestres, compatriotas, enfim os membros todos da grande família humana... É o que o Apocalipse insinua ao apresentar as almas dos mártires sob o altar de Deus a pedir ao Senhor a consumação da história e a restauração dos valores espezinhados no decorrer dos tempos:
 
''Quando abriu o quinto selo, vi sob o altar as almas dos que tinham sido mortos por causa da Palavra de Deus e do testemunho que dela tinham prestado. E eles clamaram em alta voz: 'Até quando, ó Senhor santo e verdadeiro, tardarás para fazer justiça, vingando nosso sangue contra os habitantes da terra?' A cada um deles foi dada, então, uma veste branca, e foi-lhes dito também que repousassem por mais um pouco de tempo, até que se completasse o número dos seus companheiros e irmãos que haveriam de ser mortos como eles" (Ap 6,9-11).

Este texto, em linguagem antropomórfica, apresenta os santos mártires em atitude de impaciência. O que o autor sagrado quer exprimir, é a expectativa dos justos em relação à restauração da ordem atualmente burlada pela iniqüidade do mundo. Note-se que a resposta do Senhor alude a um termo da história que ainda está para ocorrer. Também merece atenção o fato de que a expectativa tem por objeto não algo que na glória esteja faltando pessoalmente aos justos, mas, sim, algo que diz respeito à história da Igreja e da humanidade. Estes dados sugerem o seguinte: juntamente com a visão beatífica, que é um êxtase atemporal, coexiste nas almas dos bem-aventurados a consciência de que são participantes e solidários do desenrolar da história dos seus irmãos peregrinos; por conseguinte, conservam a noção de duração e de sucessão. Aliás, a própria intercessão dos santos pelos seus irmãos na terra implica uma sucessão de atos. Santa Teresinha de Lisieux professa-o do seu modo, usando, também ela, de um antropomorfismo:

"Se meus desejos forem atendidos, o meu céu decorrerá sobre a terra até o fim do mundo. Sim; quero passar o meu céu a fazer o bem sobre a terra. Isto não é impossível, porque na visão beatífica os anjos vigiam sobre nós. Não; eu não poderei tomar repouso até o fim do mundo e enquanto houver almas a salvar. Mas, quando o anjo tiver dito: 'Já não há mais tempo' (Ap 10,6), então eu repousarei; poderei gozar, porque o número dos eleitos estará completo; todos terão entrado na alegria e no repouso. Meu coração exulta com este pensamento" (Novíssima Verba).

Mais: a visão beatífica mesma, que é a contemplação de Deus face-a-face, admite sucessão de atos, pois a essência de Deus não pode ser apreendida num só ato; ela será sempre nova para qualquer criatura; como dizia São João da Cruz, Deus só não é novo para si mesmo!
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Bibliografia:
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ALQUIÉ, F., JANKELEVITCH V., LAZZARINI R., PRZYVARA E., e outros, Tempo e eternità (Archivio di Filosofia I, ed. E. Castelli).
BENOIT, Resurrección al final de los tiempos o inmediatamente des-pués de la muerte? em Concilium n. 60 (dezembro 1970) pp. 99-111.
FAGIOTTO, P., Evo, em Enciclopédia Filosófica, vol. II. Firenze 1957; cf. Eternità.
FERRATER MORA, J., Diccionario de Filosofia, Madrid, 3a. ed., 1981, vol. 29, verbete Eternidad; vol. 4?, verbete Tiempo.
LAVELLE, L., Du temps et de 1'éternité, 1945.
MASSET, P., Immortalité de l'âme, resurrection des corps. Appro-ches philosophiques, em Nouvelle Revue Théologique, t. 205, mai-juillet 1983, pp. 321-344.
PETER, C.J. Participated Eternity in the Vision of God. A Study of the Opinion of Thomas Aquinas and his Commentators on the Duration of the Acts of Glory. Rome 1964.
POZO, O, Teologia del más Allá, em BAC 282. Madrid 1980, 2a. ed.
RATZINGER, J., La Mort et l'Au-delà. Paris 1979.
ROUGÈS, A., Las jerarquias dei ser y la eternidad. 1943.
RUIZ DE LA PENA, J. L., La otra dimension. Escatologia Cristiana. Madrid 1975.
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[1] Teologia del más Al lá, p. 305.
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