sábado, 8 de abril de 2017

5ª Pregação da Quaresma 2017: “Manifestou-se a Justiça de Deus – Como fazer do V centenário da Reforma protestante uma ocasião de graça e de reconciliação para toda a Igreja”.


“MANIFESTOU-SE A JUSTIÇA DE DEUS”

Como fazer do V centenário da Reforma protestante 
uma ocasião de graça e de reconciliação para toda a Igreja

1. As origens da Reforma protestante

O Espírito Santo que – vimos nas meditações anteriores – nos insere na plena verdade da pessoa de Cristo e no seu mistério pascal, nos ilumina também sobre um aspecto crucial da nossa fé em Cristo, ou seja, sobre a maneira pela qual a salvação alcançada por ele chega a nós hoje na Igreja. Em outras palavras, sobre o grande problema da justificação do homem pecador por meio da fé. Acredito que tentar lançar luz sobre a história e sobre o estado atual deste debate seja a melhor forma para fazer do acontecimento do V centenário da Reforma protestante uma ocasião de graça e de reconciliação para toda a Igreja.

Não podemos deixar de ler todo o trecho da Carta aos Romanos, sobre o qual este debate está concentrado. Diz:

“21Agora, porém, independentemente da Lei, se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela Lei e pelos Profetas, 22justiça de Deus que opera pela fé em Jesus Cristo, em favor de todos os que creem – pois não há diferença, 23visto que todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus – 24e são justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus: 25Deus o expôs como instrumento de propiciação, por seu próprio sangue, mediante a fé. Ele queria assim manifestar sua justiça, pelo fato de ter deixado sem punição os pecados de outrora, 26no tempo da paciência de Deus; ele queria manifestar sua justiça no tempo presente para mostrar-se justo e para justificar aquele que apela para a fé em Jesus. 27Onde está, então, o motivo de glória? Fica excluído. Em força de que lei? A das obras? De modo algum, mas em força da lei da fé. 28Porquanto nós sustentamos que o homem é justificado pela fé, sem a prática da Lei”

Como foi possível que esta mensagem tão consoladora e luminosa tenha se tornado o pomo da discórdia no seio do cristianismo ocidental, dividindo a Igreja e a Europa em dois continentes religiosos diferentes? Ainda hoje, na pessoa religiosa mediana, em certos países do Norte da Europa, tal doutrina é o divisor de águas entre catolicismo e protestantismo. Eu mesmo ouvi de vários fieis leigos luteranos a pergunta: “Você crê na justificação pela fé?”, como a condição para poder ouvir aquilo que eu dizia. Esta doutrina é definida pelos próprios iniciadores da Reforma “o artigo com o qual a Igreja está em pé ou cai” (articulus stantis et cadentis Ecclesiae).

Devemos remontar à famosa “experiência da torre” de Martinho Lutero que teve lugar nos anos de 1511 ou 1512. (Tem essa denominação porque se pensa que ocorreu em uma cela do convento agostiniano de Wittenberg chamado de “a Torre”). Lutero estava angustiado, quase em nível de desespero e ressentimento para com Deus, por causa do fato de que com todas as suas práticas religiosas e penitências ele não conseguisse sentir-se acolhido e em paz com Deus. Foi aqui que, de repente, apareceu de súbito em sua mente a palavra de Paulo em Romanos 1, 17: “O justo vive pela fé”. Foi uma libertação. Ele próprio, narrando sua experiência, próximo à sua morte, escreveu: “Quando descobri isso, me senti renascer e pareceu-me que se escancaravam para mim as portas do paraíso1”.

Precisamente, alguns historiadores luteranos datam este momento, ou seja, alguns anos antes do 1517, como o verdadeiro começo da Reforma. A ocasião que transformou esta experiência interior em uma verdadeira e real avalanche religiosa foi o incidente das indulgências que fez Lutero se decidir a afixar as famosas 95 teses na Igreja do Castelo de Wittenberg, em 31 de outubro de 1517. É importante notar esta sucessão histórica dos fatos. Ela nos diz que a tese da justificação pela fé e não pelas obras, não foi o resultado da polêmica com a Igreja da época, mas a sua causa. Foi uma verdadeira iluminação do alto, uma “experiência Erlebnis, tal como foi definida por ele próprio.

Surge espontaneamente uma pergunta: como podemos explicar o terremoto causado pela tomada de posição de Lutero? O que havia nessa decisão de tão revolucionário? Santo Agostinho tinha dado, da expressão “justiça de Deus”, a mesma explicação de Lutero muitos séculos antes. “A justiça de Deus (justitia Dei) – tinha escrito – é aquela através da qual, pela sua graça, nos tornamos justos, exatamente como a salvação de Deus (salus Dei) (Sal 3,9) é aquela pela qual Deus nos salva2”.

São Gregório Magno tinha dito: “Não se vai das virtudes à fé, mas da fé às virtudes3”. E São Bernardo: “Eu, aquilo que não posso alcançar por mim mesmo, me aproprio (usurpo!) com confiança do lado trespassado do Senhor, porque é cheio de misericórdia. […] E o que sobra da minha justiça? Oh, Senhor, lembrar-me-ei somente da tua justiça. De fato, ela é também a minha, porque tu es para mim justiça da parte de Deus (cf. 1 Cor 1, 30)4“. S. Tomas de Aquino foi ainda mais longe. Comentando a sentença paulina “a letra mata, mas o Espírito vivifica” (2 Cor 3,6), ele escreveu que por letra entendem-se também os preceitos morais do evangelho, pelos quais “também a letra do Evangelho mataria, se não se acrescentasse, dentro, a graça da fé que cura5”.

O Concílio de Trento, convocado em resposta à Reforma, não encontra dificuldade em reafirmar esta convicção do primado da fé e da graça, embora considerando (como, aliás, fará todo o ramo da Reforma encabeçada por Calvino) as obras e a observância da lei, necessárias no contexto de todo o processo da salvação, segundo a fórmula paulina da “fé que opera pela caridade” (“fides quae per caritatem operatur”) (Gal 5,6)6. Fica assim explicado como, no novo clima de diálogo ecumênico, tenha sido possível chegar à declaração conjunta da Igreja Católica e da Federação mundial das Igrejas Luteranas, sobre a justificação pela graça mediante a fé, assinada no dia 31 de Outubro de 1999, na qual se reconhece um acordo fundamental, embora não total, sobre tal doutrina.

Então, a Reforma Protestante foi um caso de “muito barulho por nada”? Fruto de um equívoco? Devemos responder com firmeza: não! É verdade que o magistério da Igreja não tinha anulado nunca as decisões tomadas nos concílios anteriores (especialmente contra os Pelagianos); nunca negou o que havia escrito Agostinho, Gregório, Bernardo, Tomás de Aquino. As revoluções, no entanto, não surgem pelas ideias ou pelas teorias abstratas, mas por situações históricas concretas, e a situação da Igreja, há tempo, não refletia realmente aquelas convicções. A vida, a catequese, a piedade cristã, a direção espiritual, por não falar depois da pregação popular: tudo parecia afirmar o contrário, ou seja, que o que conta são as obras, o esforço humano. Além disso, por “boas obras” não se entendiam no geral aquelas enumeradas por Jesus em Mateus 25, sem as quais, diz ele próprio, não se entra no reino dos céus; entendiam-se, ao invés, peregrinações, velas votivas, novenas, ofertas à Igreja e, como contrapartida a estas coisas, as indulgências.

O fenômeno tinha raízes profundas comuns a todo o cristianismo e não só ao latino. Depois que o cristianismo se tornou religião do Estado, a fé era absorvida naturalmente através da família, da escola, da sociedade. Não era tão importante insistir no momento em que se chega à fé e na decisão pessoal com a qual se torna crentes, mas insistir nas exigências práticas da fé, em outras palavras, na moral, nos costumes.

Um sinal indicador desta mudança de interesse é indicado por Henri de Lubac em sua História da exegese medieval. Na fase mais adiantada, a ordem dos quatro sentidos da Escritura era: sentido histórico literal, sentido cristológico ou de fé, sentido moral e sentido escatológico7. Cada vez mais, esta ordem é substituída por uma diferente na qual o senso moral é anterior ao cristológico ou de fé. Antes do “em que acreditar”, se coloca o “o que fazer.” O dever vem antes do dom. Na vida espiritual, se pensava, em primeiro lugar há o caminho da purificação, em seguida, o da iluminação e da união8. Sem perceber, se dizia exatamente o oposto do que havia escrito São Gregório Magno, ou seja, que “não chega das virtudes à fé, mas da fé às virtudes”.

2. A doutrina da justificação pela fé, depois de Lutero

Depois de Lutero e bem próximo aos outros grandes dois reformadores, Calvino e Zwiglio, a doutrina da justificação pela fé, naqueles que transformaram-na em um modo de vida, teve por efeito uma nítida melhoria da qualidade da vida cristã, graças à circulação da palavra de Deus em língua vernácula, aos muitos hinos e cânticos espirituais, aos subsídios escritos, tornados acessíveis ao povo pela recente invenção e difusão da imprensa.

Na Frente externa, a tese da justificação só pela fé tornou-se o divisor de águas entre catolicismo e protestantismo. Em pouco tempo (em parte pelo próprio Lutero), essa oposição se ampliou e se tornou também oposição entre cristianismo e judaísmo, com os católicos que representavam, segundo alguns, a continuação dos legalismos e ritualismos judaicos e o protestantismo que representava a novidade cristã.

A polêmica anticatólica casa-se com a polêmica antijudaica que, por outras razões, não estava menos presente no mundo católico. O cristianismo teria se formado por oposição, não por derivação, do judaísmo. A partir de Ferdinand Christian Baur (1792-1860), vai se estabelecendo a tese das duas almas do cristianismo: aquela petrina do assim chamado “protocatolicismo” (Frühkatholizismus) e aquela paulina que encontra a sua expressão mais realizada no protestantismo.

Esta convicção aumenta a distância entre a religião cristã e o judaísmo. Buscar-se-á explicar as doutrinas e os mistérios cristãos (incluindo o título de Kyrios, Senhor, e o culto divino de Jesus), como resultado do contato com o helenismo. O critério utilizado para julgar a autenticidade ou não de uma sentença e de um fato do Evangelho é a sua alteridade em relação ao que é atestado no ambiente judaico do tempo. Se não foi esta a razão principal do epílogo trágico do antisemitismo, o certo é que, juntamente com a acusação de deicídio, favoreceu-o, dando-lhe uma tácita cobertura religiosa.

Desde os anos 70 do século passado, houve uma reversão radical nesta área dos estudos bíblicos. É necessário dizer algo sobre isso para esclarecer qual é o estado atual da doutrina paulina e luterana da justificação gratuita pela fé em Cristo. A natureza e o objetivo deste meu discurso me dispensam de citar os nomes dos autores modernos comprometidos neste debate. Quem é especialista na matéria não terá dificuldade em dar nomes aos autores das teses aqui mencionadas, aos demais, eu acho, não interessam os nomes, mas as ideias.

Trata-se da assim chamada “terceira via de pesquisa sobre Jesus histórico” (terceira depois daquela liberal do século XIX e aquela de Bultmann e seguidores do século XX). Esta nova perspectiva consiste em reconhecer no judaísmo a verdadeira matriz dentro da qual se formou o cristianismo, dissipando o mito da irredutível alteridade do cristianismo com relação ao judaísmo. O critério com o qual se julga a maior ou menor probabilidade de que uma sentença e um fato da vida de Jesus sejam autênticos é a sua compatibilidade com o judaísmo do seu tempo, não a sua incompatibilidade como se pensava no passado.

Algumas vantagens desta nova abordagem são evidentes. Reencontra-se a continuidade da revelação. Jesus se coloca dentro do mundo judaico, na linha dos profetas bíblicos. Se faz, também, mais justiça com o judaísmo do tempo de Jesus, mostrando a sua riqueza e variedade. O problema é que se tem ido tão além desta conquista a ponto de transformá-la em uma perda. Em muitos representantes desta terceira pesquisa, Jesus acaba por dissolver-se completamente no mundo judaico, sem mais se diferenciar, a não ser por alguma interpretação particular da Torá. Ele acaba reduzido a um dos profetas hebraicos, um “carismático itinerante”, “um cidadão judeu do Mediterrâneo”, como escreveu alguém. A nova pesquisa histórica produziu estudos de outro nível (por exemplo, os de James D. G. Dunn sobre “a nova perspectiva sobre Jesus”); mas aquela que eu mencionei é a versão que circulou mais amplamente a nível de divulgação e a que mais influenciou a opinião pública.

Quem revelou a natureza ilusória dessa abordagem para um diálogo sério entre judaísmo e cristianismo foi precisamente um judeu, o rabino americano Jacob Neusner9. Aquele que leu o livro de Bento XVI sobre Jesus de Nazaré, conhece o pensamento deste rabino com quem ele conversa em um dos capítulos mais emocionantes do seu livro. Jesus não pode ser considerado um judeu como qualquer outro, diz Neusner, dado que coloca-se acima de Moisés e se proclama: “Senhor também do Sábado”.

Mas é sobretudo no que diz respeito a São Paulo que a nova pesquisa mostra toda a sua insuficiência. De acordo com um de seus mais conhecidos representantes, a religião das obras, contra a qual o apóstolo se contrapõe com muita veemência em suas cartas, não existe na realidade. O judaísmo, também no tempo de Jesus, é um “nomismo da aliança” (Covenantal Nomism), ou seja, uma religião baseada sobre a iniciativa gratuita de Deus e sobre o seu amor; o cumprimento da lei é a sua consequência, não a causa; essa serve para permanecer na aliança, não para entrar nela. A religião judaica continua a ser aquela dos patriarcas e dos profetas, em cujo centro está a hesed, a graça e a benevolência divina.

Procura-se, então, alguns possíveis alvos diferentes para a polêmica de Paulo: não “os judeus”, mas os “judaico-cristãos”, ou aquele tipo de judaísmo “zeloso” que se sente ameaçado pelo mundo pagão circundante e reage na forma dos Macabeus. Em suma, aquele que havia sido o seu judaísmo, antes da conversão, e que o tinha levado a perseguir os fieis helenísticos como Estevão.

Mas essas explicações são insustentáveis e acabam tornando incompreensível e contraditório o pensamento do Apóstolo. Nos capítulos anteriores o Apóstolo fez uma acusação tão universal quanto a própria humanidade: “Não há diferença, porque todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus” (Rm 3, 22-23); por três vezes repete-se a expressão “judeus e gregos”, ou seja, judeus e gentios, ao mesmo tempo. Como alguém poderia pensar que uma acusação tão universal, tenha uma aplicação limitada a um pequeno grupo de fieis?

3. A justificação pela fé: doutrina de Paulo ou Jesus?

A dificuldade nasce, na minha opinião, do fato de que a exegese de Paulo se comporta, às vezes, como se o problema começasse com ele e como se Jesus não tivesse dito nada a respeito. A doutrina da justificação gratuita pela fé não é uma invenção de Paulo, mas a mensagem central do Evangelho de Cristo, independente da forma que tenha sido conhecida pelo Apóstolo: se por revelação direta do ressuscitado, ou pela “tradição”, que ele diz ter recebido e que não era certamente limitada às poucas palavras do kerygma (cf. 1 Cor 15, 3). Se não fosse assim, teriam razão aqueles que dizem que Paulo, não Jesus, é o verdadeiro fundador do cristianismo.

O núcleo da doutrina está contido já na palavra “Evangelho”, boa notícia, que Paulo com certeza não inventou do nada. No início de seu ministério, Jesus proclamava: “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1, 15). Como poderia, este proclama, chamar-se “boa notícia” se fosse somente um ameaçador apelo para mudar de vida? Aquilo que Cristo inclui na expressão “reino de Deus” – isto é, a iniciativa salvífica de Deus, a sua oferta de salvação para a humanidade – , são Paulo chama de “justiça de Deus”, mas se trata da mesma fundamental realidade. “Reino de Deus” e “justiça de Deus” são reunidos pelo próprio Jesus quando diz: “Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6, 33).

Quando Jesus dizia: “Arrependei-vos e crede no Evangelho”, ensinava, portanto, a justificação por meio da fé. Antes dele, converter-se significava sempre “voltar atrás”, como indica o próprio termo hebraico shub; significava voltar à aliança quebrada, através de uma observância renovada da lei. Converter-se, consequentemente, tem um significado principalmente ascético, moral e penitencial e se consegue através da mudança de vida. A conversão é vista como condição para a salvação; o significado é: arrependei-vos e sejam salvos; convertei-vos e a salvação virá a vós. Este é o sentido de converter-se até João Batista inclusive.

Na boca de Jesus este significado moral passa para segundo plano (pelo menos no início da sua pregação), com relação a um significado novo, até agora desconhecido. Converter-se não significa mais voltar atrás, à antiga aliança e à observância da lei; significa, pelo contrário, dar um salto adiante, entra na nova aliança, agarrar este Reino que apareceu, entrar nele. E entrar nele por meio da fé. “Convertei-vos e crede” não significa duas coisas diferentes e sucessivas, mas a mesma ação: convertei-vos, ou seja, crede; convertei-vos crendo! Converter-se não significa tanto “arrepender-se”, mas “aperceber-se”, isto é, dar-se conta da novidade, pensar de forma nova. Já Erasmus de Rotterdam, na sua tradução do Novo Testamento, tinha destacado este significado novo que a palavra adquire na boca de Jesus.

Diferentes dados evangélicos, dentre os que mais remontam a Jesus, confirmam esta interpretação. Um é a insistência com que Jesus afirma a necessidade de se tornar como uma criança para entrar no reino dos céus. A característica da criança é que não tem nada para dar, só pode receber; não pede uma coisa aos pais por tê-la conquistado, mas somente porque sabe que é amada. Aceita a gratuidade.

Também a polêmica paulina contra a pretensão de salvar-se pelas próprias obras não nasce com ele. É necessário negar incontáveis fatos, para excluir do evangelho todas as referências polêmicas a um certo número de “escribas, fariseus e doutores da lei”. Não é possível deixar de reconhecer na parábola do fariseu e do publicano ao mesmo tempo os dois tipos de religiosidade, contrapostas mais tarde por são Paulo: a daquele que confia em seu próprio desempenho religioso e a daquele que confia na misericórdia de Deus e volta à casa “justificado” (Lc 18,14).

Não se trata da tendência presente em uma religião, mas em todas as religiões, incluindo, naturalmente, a dos cristãos. (Os evangelistas não transmitiram as palavras de Jesus contra os fariseus para corrigir os fariseus, mas para advertir os cristãos!). Se Paulo persegue o judaísmo, é porque esse é o contexto religioso no qual vivem, ele e os seus interlocutores, no entanto, se trata mais de uma categoria religiosa do que étnica. Judeus, no contexto, são aqueles que, à diferença dos pagãos, possuem uma revelação, conhecem a vontade de Deus e, armados com esse fato, se sentem seguros no lado de Deus e julgam o resto da humanidade. Já no século III, Orígenes dizia que agora, quem veste a carapuça das palavras do Apóstolo, são “os chefes das igrejas: bispos, presbíteros e diáconos”, ou seja, os guias, os mestres do povo10.

A dificuldade de conciliar a imagem que Paulo nos dá da religião judaica com aquela que conhecemos dela de outras fontes deriva de um fundamental erro de método. Jesus e Paulo tem a ver com a vida vivida, com o coração; os estudiosos, pelo contrário, com os livros e os testemunhos escritos. As declarações orais ou escritas dizem o que as pessoas sabem que precisam ser ou que gostariam de ser, não, necessariamente, aquilo que são. Não é surpreendente encontrar nas Escrituras e em fontes rabínicas da época afirmações comoventes e sinceras sobre a graça, a misericórdia, a iniciativa preveniente de Deus; mas, uma coisa é o que a Escritura diz ou que os mestres ensinam, outra coisa o que os homens têm no coração e que governa as suas ações.

O que aconteceu no momento da Reforma protestante ajuda a entender a situação na época de Jesus e de Paulo. Se se olha para a doutrina ensinada nas escolas de teologia da época, para as definições antigas jamais contestadas, para os escritos de Agostinho reverenciados com grande honra, ou também só para a Imitação de Cristo, leitura diária das almas piedosas, se achará uma magnífica doutrina da graça e não se compreenderá contra quem Lutero brigava; mas se se olha para a vivência cristã da época, o resultado, já vimos, é bem diferente.

4. Como pregar a justificação pela fé hoje

O que concluir desse rápido olhar aos cinco séculos desde o começo da Reforma protestante? É vital, de fato, que o centenário da Reforma não seja desperdiçado permanecendo prisioneiros do passado, procurando ver quem errou ou quem tem razão, talvez em um tom mais conciliador do que no passado. Devemos, pelo contrário, dar um passo à frente, como quando um rio chega a um estreitamente de leito e retoma o seu curso em um nível mais alto.

A situação mudou desde então. Os problemas que causaram a separação entre a Igreja de Roma e a Reforma foram particularmente as indulgências e o modo como ocorre a justificação do ímpio. Mas podemos dizer que estes são os problemas que levantam ou derrubam a fé do homem de hoje? Em uma ocasião recordo que o cardeal Kasper fez esta observação: para Lutero o problema existencial número um era como superar o sentido de culpa e obter um Deus benevolente; hoje o problema é exatamente o oposto: como dar novamente ao homem o sentido do pecado que desapareceu totalmente.

Isto não significa ignorar o enriquecimento realizado pela Reforma ou desejar voltar atrás, à época anterior. Significa, pelo contrário, permitir que toda a cristandade se beneficie das suas muitas e importantes conquistas, uma vez libertos de certas distorções e excessos devido ao clima superaquecido do momento e da necessidade de endireitar abusos grosseiros.

Dentre os excessos resultantes da secular concentração sobre o problema da justificação do ímpio, me parece que um seja o de ter feito do cristianismo ocidental um anúncio sombrio, todo focado no pecado, que a cultura laica acabou por combater e rejeitar. A coisa mais importante não é o que Jesus, com a sua morte, tirou do homem – o pecado – , mas aquilo que doou, ou seja, o Espírito Santo. Muitos exegetas consideram hoje o capítulo terceiro da Carta aos Romanos sobre a justificação pela fé, como inseparável do capítulo oitavo sobre o dom do Espírito e uma unidade com ele.

A justificação gratuita por meio da fé em Cristo deveria ser pregada hoje por toda a Igreja e com mais vigor do que nunca. Não, no entanto, em oposição às “obras” mencionadas no Novo Testamento, mas em contraste com a pretensão do homem pós-moderno de salvar-se sozinho com a sua ciência e tecnologia ou com espiritualidades improvisadas e tranquilizantes. Estas são as “obras” em que o homem moderno confia. Estou convencido de que, se Lutero voltasse à vida, esta seria a maneira pela qual ele também pregaria hoje a justificação pela fé.

Uma outra coisa importante devemos aprender todos, luteranos e católicos, do iniciador da Reforma. Para ele, vimos, a justificação gratuita pela fé era acima de tudo uma experiência vivida e só mais tarde teorizada. Infelizmente, depois dele, ela tornou-se cada vez mais um argumento teológico a ser defendido ou combatido, e sempre menos uma experiência pessoal e libertadora, a ser vivida na própria relação íntima com Deus. A Declaração Conjunta de 1999 lembra apropriadamente que o consenso alcançado por católicos e luteranos sobre verdades fundamentais da doutrina da justificação deve ter efeitos e encontrar um impacto, não somente no ensinamento da Igreja, mas também na vida das pessoas (n. 43).

Nunca devemos perder de vista o ponto principal da mensagem paulina. Aquilo que o Apóstolo quer por acima de tudo afirmar em Romanos 3 não é que somos justificados pela fé , mas que somos justificados pela fé em Cristo; não é tanto que somos justificados pela graça, mas que somos justificados pela graça de Cristo. É Cristo o coração da mensagem, antes mesmo que a graça e a fé. É ele, hoje, o artigo com o qual a Igreja está em pé ou cai: uma pessoa, não uma doutrina.

Devemos regozijar-nos porque é isso que está acontecendo na Igreja e em maior medida do que geralmente pensamos. Nos últimos meses pude participar de dois encontros: um na Suíça, organizado por evangélicos com a participação dos católicos, o outro na Alemanha organizado por católicos com a participação dos evangélicos. Este último ocorreu em Augsburg, em janeiro passado, pareceu-me realmente um sinal dos tempos. Havia 6000 católicos e 2000 luteranos, na maioria jovens, provenientes de toda a Alemanha. O título em inglês era “Holy Fascination”, Santa Fascinação. Quem fascinava aquela multidão era Jesus de Nazaré, feito presente e quase tangível pelo Espírito Santo. Por trás disso, uma comunidade de leigos e uma casa de oração (Gebetshaus), ativa há anos e em plena comunhão com a Igreja Católica local.

Não era um ecumenismo de “somos amigos!”. Missa catolicíssima, com muito incenso, presidida uma vez por mim e uma vez pelo bispo auxiliar de Augsburg; outro dia, Santa Ceia presidida por um pastor luterano, no pleno respeito mútuo pela própria liturgia. Adoração, ensinamentos, música: um clima que só os jovens são capazes de organizar hoje e que poderia servir como modelo para um evento particular durante as Jornadas Mundiais da Juventude.

Certa vez perguntei aos responsáveis se devia falar da unidade dos cristãos; me responderam: “Não, preferimos viver a unidade, mais que falar dela”. Tinham razão. São sinais do rumo que o Espírito – e com ele o Papa Francisco – nos convidam a andar.

Feliz e Santa Páscoa!

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1 M. Lutero, Prefácio às obras em latim, ed. Weimar vol. 54, p. 186.

2 S. Agostinho, De Spiritu et littera, 32,56 (PL 44, 237).

3 S. Gregorio Magno, Homilias sobre Ezequiel, II, 7 (PL 76, 1018).

4 S. Bernardo de Claraval, Sermões sobre o Cântico, 61, 4-5( PL 183, 1072).

5 S. Tomás de Aquino, Summa theologiae, I-IIae, q. 106, a. 2.

6 Concílio di Trento, “Decretum de iustificatione”, 7, in Denzinger – Schoenmetzer, Enchiridion Symbolorum, ed. 34, nr. 1531.

7 Clássico é o dístico com o qual se expressa esta ordem: Littera gesta docet, quid credas allegoria. / Moralis, quid agas; quo tendas anagogia. A letra ensina o acontecido; o que deve crer, a alegoria. / A moral, o que fazer; onde tender, a anagogia.

8 Cf. Henri de Lubac, Histoire de l’exégèse médiévale. Le quatre sens de l’Ecriture, Paris, Aubier, 1959, Vol. I,1, pp. 139-157.

9 Jacob Neusner, A Rabbi Talks with Jesus, McGill-Queen’s University Press, Montreal 2000.

10 Orígenes, Comentário à Carta aos Romanos, II, 2 (PG 14, 873).
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Canção Nova
Tradução: Thácio Siqueira

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