sexta-feira, 11 de março de 2016

Os sofrimentos morais de Nosso Senhor na Paixão


As dores físicas padecidas por Cristo na sua Paixão podem ser representadas em crucifixos, quadros e mesmo filmes. Entretanto, só faremos uma vaga ideias da dores que sofreu na sua alma, ainda maiores que o sofrimento físico, à custa de muita meditação. E disto que o Venerável Cardeal Newman (1801-1890) trata neste sermão, pregado em 1849.

Cada uma das passagens da vida de Nosso Senhor possui uma profundidade imensa e proporciona matéria inesgotável de meditação. Tudo o que lhe diz respeito é infinito; e o que à primeira vista divisamos não é mais que a superfície do que começa na eternidade e na eternidade acaba. Seria, pois, temerário, para quem não é santo nem doutor, querer comentar os seus atos e as suas palavras a não ser por via da meditação. Mas a meditação e a oração mental são tão necessárias aos que desejam alimentar em si a fé e o amor verdadeiros, que nos será sem dúvida permitido, caros irmãos, deter aqui a nossa atenção, e, tomando por guia os santos que nos precederam nesta reflexão, discorrer sobre temas que na verdade mais convidam à adoração do que ao exame.

Certos tempos do ano convidam-nos a estudar detidamente, e o mais perto possível, as passagens mais sagradas da história evangélica. E o da Semana Santa em particular. Prefiro correr o risco de tratá-la de modo insuficiente ou convencional a furtar-me à sugestão deste tempo sagrado. Vou hoje, portanto, voltar as vossas atenções, segundo o piedoso costume da Igreja, para um tema que faria recuar muitos pregadores – mas que convém particularmente a estes dias, e no qual sem dúvida muitos jamais pensaram: os sofrimentos padecidos pelo Senhor na sua alma sem mancha.

Bem sabeis, caros irmãos, que o Senhor, sendo Deus, era também perfeito homem; que tinha portanto não somente um corpo, mas uma alma igual à nossa, embora isenta de toda a mancha. Não se encarnou num corpo sem alma – Deus seja louvado! –, pois isso não teria sido tornar-se homem. Como teria santificado a nossa natureza, se não a tivesse assumido de verdade? O homem destituído de alma estaria no mesmo nível dos animais selvagens; mas o Senhor vinha salvar uma raça capaz de obedecer-lhe e glorificá-lo, dotada de imortalidade, embora tivesse perdido o acesso à eterna bem-aventurança.

O homem foi criado à semelhança de Deus e essa semelhança encontra-se na alma; quando, pois, o seu Criador, por uma condescendência inexprimível, quis revestir-se da natureza humana, tomou uma alma a fim de tomar um corpo; para unir-se a um corpo de homem, tomou primeiro uma alma. Tomou os dois ao mesmo tempo, mas nessa ordem: primeiro a alma e depois o corpo. Criou Ele próprio a alma que tomou; mas o corpo, tomou-o da sagrada carne da sua Mãe, a Virgem.

Tornou-se, portanto, perfeito homem, com corpo e alma. E assim como tomou um corpo de carne e nervos sujeito ao sofrimento e à morte, tomou uma alma sensível não só aos sofrimentos físicos, mas capaz de experimentar as dores e tristezas peculiares aos homens. A sua missão expiatória não foi apenas sofrida no seu corpo; também o foi – pensemos nisto! – na sua alma, na sua alma de homem.

Nos dias solenes que se vão seguir, seremos especialmente chamados, caros irmãos, a considerar os sofrimentos corporais de Cristo, a sua prisão, as suas idas e vindas de um lugar a outro; os golpes que recebeu, as feridas, a flagelação; os espinhos, a cruz, os cravos... Todas essas coisas estão resumidas para nós no crucifixo, todas a um só tempo se acham representadas na carne sagrada que pende diante dos nossos olhos: a meditação torna-se fácil. Não acontece o mesmo com os sofrimentos da alma do Senhor. Não poderão ser pintados aos nossos olhos, não poderão ser devidamente sondados, pois excedem os sentidos e o pensamento ao mesmo tempo; e, contudo, precederam os seus sofrimentos corporais. A agonia – sofrimento da alma e não do corpo – foi o primeiro ato do seu terrível sacrifício: Minha alma está triste até a morte (1), disse Ele. Sim, se Ele sofreu no seu corpo, na realidade sofreu na sua alma, pois o corpo não faz mais que transmitir o sofrimento à verdadeira sede e recipiente da angústia. 

(1) Mt 26, 38. 

Vem muito a propósito insistir neste ponto. Quero dizer que não era o corpo que sofria, mas a alma no corpo; era a alma, e não o corpo, a sede dos sofrimentos do Verbo Eterno. Considerai que não pode haver dor real, mesmo quando há aparência de sofrimento, se não existe nenhuma sensibilidade interna, nenhum espírito que possa sediá-la. A árvore, por exemplo, é dotada de vida, tem órgãos e cresce; pode ser ferida e maltratada, secar e morrer; mas não pode sofrer, pois não tem espírito nem princípio sensível. Ao contrário, a dor será possível onde for encontrado esse princípio imaterial, e será tanto maior quanto mais perfeito o princípio. Se não tivéssemos espírito, seríamos tão insensíveis quanto as árvores; se não tivéssemos alma, sofreríamos apenas como os animais; mas, sendo homens, sentimos a dor de um modo mais vivo, como convém aos seres dotados de alma.

Os seres vivos são, pois, mais ou menos sensíveis de acordo com o espírito que se encontra neles; os animais são-no muito menos que o homem, porque não podem pensar o que sentem: não têm nenhuma inteligência, nenhuma consciência direta dos seus sofrimentos. O que nos torna a dor tão intolerável é que não podemos desviar dela o pensamento enquanto a estamos sentindo. Lá a temos, bem diante de nós, reinando sobre o nosso espírito, atraindo o nosso pensamento como um ímã. Tudo o que dela nos distrai tem por efeito aliviá-la e acalmá-la: é por isso que os nossos amigos se esforçam por distrair-nos quando sofremos, pois a distração é justamente uma espécie de alívio. Às vezes, conseguem-no, se a dor é leve, e nós deixamos de certo modo de sentir a dor que ainda sofremos. Pela mesma razão, acontece que, freqüentemente, ao fazermos algum esforço violento, nos machucamos, sem ganhar consciência da dor, comprovada no entanto pelas cicatrizes. Nas brigas e nas batalhas, geralmente não é a dor que faz com os que entram em luta percebam que foram feridos, mas a perda de sangue.

Vou mostrar-vos agora, meus irmãos, como pretendo aplicar estas reflexões aos sofrimentos do Senhor. Antes, porém, farei uma outra observação. É a seguinte: não há dor que seja por si mesma intolerável; só se torna intolerável pela sua duração. Às vezes, a gente exclama que não agüenta mais um minuto, e o paciente procura deter a mão do cirurgião que persiste em fazê-lo sofrer: parece-lhe que já suportou tudo o que podia, como se fosse a continuidade da dor, e não a sua intensidade, que a tornasse intolerável. Que significa isto, senão que a lembrança da dor experimentada nos momentos anteriores age sobre a dor que se segue e, de certo modo, a aviva? Se pudéssemos sofrer isoladamente o terceiro, o quarto ou o vigésimo momento da dor, e esquecer a série dos que os precederam, a dor desse momento não seria mais intensa que a primeira e seria tão suportável quanto aquela; o que a torna insuportável é ser a vigésima e nela se concentrarem todas as outras: a primeiro, a segunda, a terceira, até a décima nona. Cada novo momento de dor cresce, cresce sem cessar, pelo peso dos anteriores. Daqui resulta, repito, que os bichos pareçam geralmente quase insensíveis à dor: é que não estão dotados de reflexão nem de consciência. Não sabem que existem; não olham para diante nem para trás; o instante que passa é tudo para eles: passeiam à superfície da terra, vendo isto ou aquilo, experimentando prazer ou sofrimento, mas tomam as coisas como vêm e as deixam ir do mesmo modo, tal como o homem faz nos sonhos. Têm memória, mas não a dos homens inteligentes, pois não estabelecem relações entre as coisas, são incapazes de coordenar as sensações particulares que vão experimentando; nada, além dessas sensações, tem para eles realidade ou substância: um certo número de expressões sucessivas, eis tudo o que sentem. E é por isso que não sentem a dor, como várias outras coisas, senão de forma mitigada, a despeito de manifestá-la externamente. É o fato de perceber intelectualmente a dor como um todo que se difunde através de momentos sucessivos que dá a essa dor a sua força e a sua particular acuidade. E só a alma, de que o animal está privado, é capaz de tal compreensão.

Aplicai agora isto aos sofrimentos do Senhor. Estais lembrados de que lhe ofereceram vinho com mirra no momento de o crucificarem? Não o quis beber; e por quê? Porque essa bebida lhe teria entorpecido o espírito, e Ele havia decidido experimentar a dor em toda a plenitude. Isto revela, meus irmãos, o caráter dos seus sofrimentos: Jesus tê-los-ia voluntariamente evitado, se tal tivesse sido a vontade de seu Pai: Se é possível – dissera – afasta de mim este cálice (2). Mas não sendo isso possível, perguntou serenamente ao Apóstolo que o queria subtrair ao suplício: Não hei de beber o cálice que o Pai me deu? Já que devia sofrer, entregava-se ao sofrimento, e não viera para sofrer o menos possível; não se desviou da dor, antes lhe fez frente: desafiou-a, se posso dizer, a fim de que ela deixasse cabalmente a sua marca nEle, em cada instante.

(2) Mt 26, 39.

E assim como os homens, superiores aos animais, estão mais sujeitos à dor por causa do espírito que neles reside e que dá substância a essa dor, assim Nosso Senhor experimentou a dor no seu corpo com uma consciência – e portanto, com uma vivacidade, uma intensidade e uma unidade de percepção – que nenhum de nós pode sequer vislumbrar, de tal modo tinha Ele a alma plenamente em seu poder, completamente livre de qualquer distração, inteiramente ligada à dor, absolutamente entregue e submetida ao sofrimento. Pode-se assim dizer que o Senhor sofreu integralmente a sua Paixão, em todos os instantes.

Lembrai-vos de que o nosso bem-amado Senhor, inteiramente homem, se distinguia de nós por um aspecto: havia nEle um poder mais alto que a sua alma, um poder que governava a sua alma, pois era Deus. A alma dos outros homens está submetida aos desejos, aos sentimentos, aos impulsos, às paixões, às perturbações que lhe são próprias, ao passo que a alma do Senhor não estava submetida senão à sua divina pessoa. Nada chegava à sua alma por efeito súbito do acaso; jamais Ele foi encontrado desprevenido; nada o atingiu sem que Ele o tivesse querido. O seu espírito jamais se afligiu, temeu, desejou ou se alegrou, sem que Ele tivesse antes querido afligir-se, temer, desejar ou alegrar-se. Quando sofremos, é porque os agentes exteriores e as emoções incoercíveis do nosso espírito nos forçam a tal. Sofremos involuntariamente a disciplina da dor; sofremo-la mais ou menos vivamente, segundo as circunstâncias; a nossa paciência é posta à prova em menor ou maior grau, e fazemos o possível para aliviar ou extinguir a dor. Somos incapazes de prever em que medida ela se abaterá sobre nós, nem por quanto tempo a poderemos suportar; quando passou, não sabemos dizer ao certo por que sofríamos, nem o que sofríamos, nem por que não suportamos melhor o nosso fardo.

Deu-se o contrário com Nosso Senhor. A sua divina pessoa não estava sujeita, não podia estar sujeita e exposta à influência das suas afeições e sentimentos, a não ser quando o quisesse. Repito que, quando Ele queria temer, temia; irritava-se quando queria irritar-se; afligia-se quando queria afligir-se. Não estava exposto à emoção, mas expunha-se voluntariamente à influência que o devia comover. Por isso, quando resolveu sofrer as dores da sua Paixão expiatória, fez tudo o que fez segundo a expressão do Sábio: instanter, com diligência; aplicando nisso todo o seu poder. Não o fez pela metade; não procurou, como nós, desviar da dor o seu espírito. Como poderia fazê-lo, Ele que viera para sofrer, Ele que não podia sofrer senão por sua própria vontade? Jamais falou, retirando depois as suas palavras; jamais agiu, negando em seguida os seus atos; mas simplesmente falou e agiu. E disse: “Eu venho fazer a vossa vontade, ó meu Deus; não quisestes sacrifício nem oferenda, mas formastes-me um corpo”. Tomou um corpo para poder sofrer; fez-se homem para poder sofrer como os homens; e quando chegou a sua hora – a hora de Satanás e das trevas –, a hora em que o pecado devia derramar sobre Ele toda a sua malícia, ofereceu-se a si próprio, inteiro, em holocausto, em total oblação.

E assim como, estendido sobre a cruz, ofereceu o seu corpo todo, foi também todo o seu espírito, toda a sua lucidez, toda a sua sensibilidade, que Ele apresentou aos seus algozes: não uma aceitação virtual ou uma submissão a contragosto, mas uma intenção presente e absoluta. A sua paixão foi um ato: a sua energia vital atingiu o auge quando jazia desfalecido e agonizante. E se morreu, foi por um ato da sua vontade: inclinou a cabeça não apenas em sinal de resignação, mas de comando: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito (3). Pronunciou essas palavras e entregou a sua alma sem, no entanto, a perder.

(3) Lc 23, 46.

Vedes, meus caros irmãos, que mesmo que Nosso Senhor tivesse sofrido apenas no seu corpo, e mesmo que tivesse sofrido menos que os outros homens, teria no entanto sofrido infinitamente mais, já que a dor deve ser medida pela consciência que se tem dela. Era Deus que sofria; Deus sofria na sua natureza humana, e os sofrimentos pertenciam a Deus: foram bebidos, sorvidos até a última gota, porque era Deus que os bebia. Não se contentou com provar o cálice, mas bebeu – sem atenuá-lo com remédios, como fazem os homens – a taça toda da angústia. E o que acabo de dizer servirá de resposta a uma objeção que vou agora formular porque ela existe, talvez em estado latente, no espírito de alguns, fazendo-os ignorar a parte que a alma de Nosso Senhor tomou na sua misericordiosa expiação.

Quando começou a sua agonia, o Senhor disse: Minha alma está triste até a morte. Perguntar-me-eis talvez, caros irmãos, se Ele não dispunha de certas consolações particulares, impossíveis em outro, que lhe aliviavam ou amorteciam a penúria da alma, fazendo-o portanto sofrer menos intensamente que um homem comum. Possuía, por exemplo, o sentimento de inocência num grau que nenhum outro poderia possuir: assim o atestaram os seus próprios perseguidores, o próprio Apóstolo que o traíra, os próprios soldados que o executaram: Condenei o sangue inocente (4), disse Judas; Estou puro do sangue deste justo (5), declarou Pilatos; Na verdade, esse homem era justo (6), exclamou o centurião. Se esses homens, pecadores que eram, lhe atestaram a inocência, quanto mais não haveria de proclamá-la o seu próprio coração! Ora, se nós mesmos, por mais pecadores que sejamos, sabemos bem que do sentimento da nossa inocência ou culpa depende a nossa força de resistência à hostilidade e à calúnia, quanto mais, em Nosso Senhor, o sentimento da sua santidade não devia compensar os seus sofrimentos e aniquilar a ignomínia a que o submetiam! Além do mais (direis ainda), Ele sabia que os seus sofrimentos eram breves e que seriam coroados de alegria, ao passo que a incerteza do futuro é o elemento mais cruel da angústia humana: não poderia conhecer a ansiedade, pois não havia incerteza para Ele; nem o abandono ou o desespero, pois jamais foi abandonado. E isso nos é confirmado por São Paulo, que diz expressamente: diante da alegria que lhe era prometida, Nosso Senhor “desprezou a vergonha” (7).

(4) Mt 27, 3.
(5) Mt 27, 24.
(6) Lc 23, 47.
(7) Cfr. Hebr 12, 2.

Sem dúvida, Ele deu provas em todos os seus atos de uma maravilhosa calma e sangue-frio. Considerai os seus conselhos aos Apóstolos: Vigiai e orai para não cairdes em tentação; o espírito está pronto, mas a carne é fraca; ou o que disse a Judas: Amigo, a que vieste? Com um beijo entregas o Filho do Homem?; ou a Pedro: Todos aqueles que usarem de espada perecerão pela espada; ou as suas palavras ao homem que lhe bateu na face: Se falei mal, mostra-me em quê; se falei bem, por que me bates? (8); ou o que disse à sua Mãe: Mulher, eis o teu filho (9).

(8) Jo 18, 23.
(9) Jo 19, 26.

Tudo isso é verdade, e merece ser frisado, mas está perfeitamente de acordo com o que acabo de dizer, ou melhor, ilustra-o. Afirmá-lo, meus irmãos, equivale a constatar que o Senhor (para empregar uma expressão humana) foi sempre Ele mesmo. O seu espírito era nEle o seu próprio centro; jamais perdeu, em grau ínfimo que fosse, o seu celeste e perfeito equilíbrio. O que Nosso Senhor sofreu, sofreu-o porque se expôs a si próprio ao sofrimento – deliberada e serenamente. Assim como dissera ao leproso: Quero; sê limpo (10); e ao paralítico: São-te perdoados os teus pecados; e ao centurião: Eu vou curá-lo (11); e referindo-se a Lázaro: Eu vou despertá-lo do seu sono (12) – assim também disse: “Agora vou começar a sofrer”, e deu início à sua Paixão. A sua tranqüilidade não é senão a prova do inteiro domínio que tinha sobre a sua alma. Tirou no momento oportuno os ferrolhos e as cadeias, abriu as comportas, e as torrentes invadiram-lhe o coração com todo o ímpeto. Eis o que São Marcos nos diz dEle, segundo escutou da própria boca de São Pedro, uma das três testemunhas da oração no horto: Foram, diz São Marcos, a um lugar chamado Getsêmani: e ele disse aos seus discípulos: Sentai-vos aqui enquanto eu rezo. Levou consigo Tiago, Pedro e João, e começou a ser invadido pelo pavor e pelo abatimento (13). Bem vedes como é deliberadamente que age: vai a um certo lugar, dá uma ordem precisa, retira à sua alma o sustentáculo da divindade – e logo se abatem sobre Ele o pavor, a angústia, o abandono. Entra em agonia moral por um ato tão definido como se se tratasse de qualquer sofrimento físico, o fogo ou a roda.

(10) Mt 8, 3.
(11) Mt 8, 7.
(12) Jo 11, 11.
(13) Mc 14, 32-33.

Vedes, pois, meus caros irmãos, como é fora de propósito dizer que o Senhor poderia ter sido sustentado nas suas provações pelo sentimento da sua inocência e pela previsão do seu triunfo, pois as suas provações consistiram justamente na retirada desse sentimento e dessa previsão, como de qualquer outro motivo de consolo. O mesmo ato de vontade que entregava a sua alma a uma angústia, entregava-a ao mesmo tempo a todas as angústias. Não foi uma luta entre impulsos e idéias contrárias, vindas de fora, mas o efeito de uma resolução interior. Assim como os homens que se controlam podem concentrar-se como lhes aprouver num tema ou noutro, assim o Senhor recusou deliberadamente qualquer conforto, e transbordou de dor. Naquele instante, não pensava no futuro: pensava apenas no fardo que lhe pesava na alma e que viera justamente carregar sobre os ombros.

Mas qual será, meus irmãos, esse fardo que Nosso Senhor teve de carregar quando abriu assim a sua alma à torrente do sofrimento? Era um fardo que conhecemos bem – ai de nós! –, e que nos é bastante familiar, mas que representava um tormento inexprimível para Ele. Teve de carregar um peso que encaramos com tanto à-vontade, tão facilmente, tão naturalmente, que nos custa imaginá-lo como um grande suplício. Mas, para Ele, tinha o odor da morte, o odor envenenado da morte. Teve, meus caros irmãos, de carregar o peso do pecado: teve de carregar os nossos pecados, os pecados do mundo inteiro.

O pecado parece-nos leve, fazemos pouco caso dele, e não compreendemos por que o Criador o tem em tão grande conta: não conseguimos acreditar que mereça ser castigado; e, quando já aqui no mundo recebe o seu castigo, arranjamos para isso uma explicação qualquer, e desviamos o pensamento. Mas considerai o que o pecado é em si mesmo: é uma rebelião contra Deus; é o gesto do traidor que procura destronar o seu soberano e eliminá-lo; é um ato que, para usar uma expressão bem forte, chegaria a aniquilar o próprio Senhor do mundo, se Ele pudesse ser aniquilado. O pecado é o inimigo mortal do Altíssimo, de modo que o pecado e Deus não podem permanecer juntos; e, assim como o Altíssimo expulsa o pecado da sua presença e o lança nas trevas exteriores, assim, se Deus pudesse ser menos que Deus, seria o pecado que teria o poder de torná-lo menos Deus.

E notai, caros irmãos, que, quando o Amor todo-poderoso entrou, pela sua encarnação, no mundo criado e se submeteu às suas leis, logo esse adversário do bem e da verdade, aproveitando a ocasião, lançou-se sobre aquela carne divina, agarrou-se a ela e a fez morrer. A inveja dos fariseus, a traição de Judas e a insensatez do povo não eram mais que o instrumento ou a expressão do ódio que o pecado sentia pela Eterna Pureza, desde que, na sua infinita misericórdia pelos homens, Deus se pusera ao seu alcance. O pecado não lhe podia atingir a Majestade divina, mas podia assaltá-lo, como Ele próprio o consentiu, por intermédio da humanidade que assumira. E o desfecho, a morte do Deus encarnado, ensina, meus irmãos, o que é o pecado em si mesmo, e qual o fardo que ia cair, num dado momento e com todo o peso, sobre a natureza humana de Deus, quando Ele permitiu que essa natureza fosse invadida pelo pavor e pela agonia.

Nessa hora tão terrível, portanto, o Salvador do mundo pôs-se de joelhos, recusando as defesas da sua divindade, afastando os anjos solícitos, prontos a responder por miríades ao seu apelo; abriu os braços e descobriu o peito para se expor, na sua inocência, ao assalto do inimigo – um inimigo cujo hálito era uma peste e cujo abraço era uma agonia. Lá estava o Senhor de joelhos, imóvel e silencioso, enquanto o demônio impuro lhe envolvia o espírito numa veste banhada naquilo que o crime humano tem de mais hediondo e mais atroz. Enquanto invadia a sua consciência, o demônio penetrava-lhe em todos os seus sentidos, em todos os poros do seu espírito, estendendo sobre Ele a sua lepra moral, até fazê-lo sentir-se quase transformado naquilo que jamais poderia ser, naquilo em que o seu inimigo teria querido transformá-lo.

Qual não foi o seu pavor quando, ao contemplar-se, o Senhor já não mais se reconheceu: quando se sentiu igual a um impuro e detestável pecador, na sua percepção aguda desse amontoado de corrupções que lhe choviam sobre a cabeça e escorriam até a extremidade das suas vestes! Qual não foi o seu espanto quando viu que os seus olhos, as suas mãos, os seus pés, os seus lábios, eram como membros de um homem mau, e não mais os de um Deus! Seriam do Cordeiro imaculado essas mãos, outrora inocentes, rubras agora de milhões de atos bárbaros e sanguinários? Seriam do Cordeiro esses lábios que não mais pronunciavam orações e louvores, manchados como estavam pelos perjúrios, blasfêmias e doutrinas diabólicas? Seriam do Cordeiro esses olhos profanados pelas visões malignas e pelo fascínio dos ídolos, pelos quais os homens abandonaram o seu adorável Criador? Aos seus ouvidos ressoa o tumulto das festas e das guerras; o seu coração está gelado pela avareza, crueldade e ingratidão; a sua própria memória está carregada de todos os pecados cometidos depois da Queda em todas as regiões do mundo: o orgulho dos antigos gigantes, a luxúria das cinco cidades, o endurecimento do Egito, a ambição de Babel, a ingratidão e o desprezo de Israel. Quem não conhece a tortura de uma idéia fixa, que volta sem cessar, por mais que a queiramos repelir, e que, não podendo desfazer-nos, nos obsidia? Ou a de um pensamento sufocante e odioso, que de modo nenhum nos pertence, mas que nos foi imposto de fora para dentro? Ou a de um fatal conhecimento, adquirido ou não por nossa culpa, mas do qual daríamos tudo para sermos imediatamente libertados?

Eis os inimigos que, aos milhões, se comprimem em torno de vós, ó Senhor!, que sobre vós se abatem em nuvens mais numerosas que as dos gafanhotos, das moscas e das rãs enviadas contra o Faraó. Estão aí todos os pecados. Os pecados dos vivos, dos mortos e daqueles que ainda não nasceram. Dos condenados e dos eleitos. Do vosso povo e dos povos estrangeiros. Dos pecadores e dos santos. E dos vossos bem-amados – dos vossos santos, dos vossos escolhidos, dos vossos três apóstolos Pedro, Tiago e João –, que também estão presentes, porém não para vos consolar, mas para vos acabrunhar, “lançando o pó contra os céus”, como os amigos de Jó, amontoando maldições sobre a vossa cabeça.

Estão todos aí, menos uma criatura. Uma só não está aí; uma só. Porque Ela, que nunca teve parte no pecado – Maria, a tua Mãe –, era a única que vos podia consolar; é por isso que está ausente. Virá para junto de vós quando estiverdes na cruz; mas, no jardim das Oliveiras, permanecerá afastada. Foi a vossa companheira e a vossa confidente; trocou convosco pensamentos e reflexões ao longo de trinta anos: mas o seu ouvido virginal não poderia captar, nem o seu coração imaculado conhecer o que se oferece agora à vossa vista. Esse fardo, só Deus mesmo o pode carregar. Às vezes, mostrastes a alguns dos vossos santos, em imagem, o que representava um único pecado, tal como aparece à luz da vossa Face (e era a imagem de um pecado venial, não de um mortal); e eles nos disseram que esse espetáculo quase os ia matando, que os teria de fato morto, se não tivesse sido desviado logo do seu olhar. A Mãe de Deus, apesar de toda a sua santidade, ou antes, por causa dela, não teria podido suportar a vista de um só desses inumeráveis prepostos de Satanás que vos cercam agora.

Na verdade, tudo isso é a longa história de um mundo, e só Deus é que pode carregar o seu peso. Esperanças desfeitas, votos quebrados, luzes extintas, advertências desprezadas, ocasiões perdidas; inocentes enganados, jovens endurecidos, penitentes que caem de novo, justos abatidos, velhos sem rumo; sofismas da incredulidade, cegueira das paixões, obstinação do orgulho, tirania do hábito, verme roedor do remorso, febre do mundanismo, angústia da vergonha, amargor das decepções, agonia do desespero – tais são as cenas cruéis, dilacerantes, revoltantes, detestáveis, enlouquecedoras, que, todas juntas, se oferecem ao Senhor na oração do horto. As vítimas voluntárias da rebelião – faces transtornadas, lábios convulsos e frontes sombrias – estão sobre Ele, estão nEle. Ocupam o lugar daquela paz inefável que não cessou de habitar-lhe a alma desde a sua concepção. Estão sobre Ele, e parecem quase suas. Ele invoca o seu Pai como se fosse o criminoso, e não a vítima. A sua agonia toma a aparência da culpabilidade e da compunção. Faz penitência; confessa-se. Faz um ato de contrição de um modo infinitamente mais real, infinitamente mais eficaz que todos os santos e todos os penitentes juntos. Porque Ele é para nós todos a única vítima, o único holocausto expiatório, o verdadeiro penitente – sem ser no entanto o verdadeiro pecador.

Levanta-se dolorosamente; volta-se para contemplar o traidor e o seu bando, que deslizam furtivamente na sombra profunda. Olha e vê o sangue nas suas vestes, o sangue nas pegadas dos seus pés. De onde vêm essas primícias da paixão do Cordeiro? As varas dos soldados ainda não lhe tocaram as espáduas; nem os cravos do carrasco, as suas mãos e pés. Meus irmãos, Ele derramou o seu sangue antes da hora. Sim, Ele espalhou o seu sangue. Foi a sua alma agonizante que partiu o invólucro da carne para fazer brotar esse sangue...

A sua paixão começou dentro dEle próprio. Esse coração supliciado, sede de ternura e amor, pôs-se a palpitar, a bater com uma veemência que excede a natureza. As fontes do grande abismo romperam-se (14); os rios de sangue chocaram-se com tanto ímpeto e furor, que atravessaram as veias, brotaram pelos poros e formaram um orvalho espesso por toda a superfície do corpo. Pois as gotas deslizaram, grossas e pesadas, inundando o chão.

(14) Gn 7,11.

Minha alma está triste até a morte... Já se disse, a respeito da epidemia que atualmente nos aflige (15), que ela começa pela morte, evidenciando, assim, que não conhece fases nem crises, que toda a esperança está perdida quando ela se declara, e que o que aparece como evolução não é senão agonia mortal e processo de dissolução. Assim, num sentido muito mais elevado, a nossa vítima expiatória começou por essa paixão de dor. E se não morreu, foi porque a sua vontade todo-poderosa impediu o seu coração de quebrar-se e a sua alma de separar-se do corpo antes que tivesse sofrido na cruz. Porque o Senhor ainda não esgotara o cálice da dor, de que a sua fraqueza natural queria de início desviar-se. A prisão, as acusações, as bofetadas, a paixão, o julgamento, as zombarias, as idas e vindas de um lugar para outro, a flagelação, a coroa de espinhos, a lenta subida ao Calvário e a crucifixão – tudo isso ainda estaria por vir. Seria preciso que passassem lentamente uma noite e um dia, hora por hora, antes que chegasse o fim, e a crucifixão fosse consumada.

(15) A cólera (N. do E.).

Depois, quando chegou o momento fixado veio e Ele consentiu, a sua paixão terminou com a sua alma, como com ela havia começado. Não morreu de esgotamento corporal nem de dor corporal; seu Coração supliciado partiu-se, e Ele entregou o espírito ao seu Pai.


Ó Coração de Jesus, ó Todo Amor, eu vos ofereço estas humildes súplicas por mim mesmo e por todos que se unem a mim em espírito para vos adorar. Ó santíssimo Coração de Jesus, proponho-me renovar e oferecer-vos estes atos de adoração e estas orações por mim mesmo, miserável pecador que sou, e por todos os que estão associados a mim na vossa adoração. Proponho-me renová-la em todos os instantes, até o meu último alento. Eu vos encomendo, ó meu Jesus, a Santa Igreja, vossa amada Esposa e nossa verdadeira Mãe, as almas que praticam a justiça, todos os pobres pecadores; os aflitos, os moribundos e todo o gênero humano. Não permitais que o vosso sangue tenha sido derramado por eles em vão. E dignai-vos enfim aplicar os méritos desse sangue para o consolo das almas do Purgatório, especialmente daquelas que, no correr de sua vida, vos adoraram com devoção.


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Fonte: Site Newman Reader

Disponível em: Quadrante

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