terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Santa teimosia. A diplomacia do encontro entre o Papa e Kyril


Não o acaso, não as coincidências, mas o paciente trabalho de tantas pessoas, as preces de muitos fiéis, a resoluta vontade dos dois primazes e as circunstâncias históricas fizeram, sim, que este abraço ocorresse não na Europa, ante as multidões ortodoxas ou católicas movidas pelo extraordinário evento, mas na ilha do Caribe, num aeroporto, lugar laico por excelência, ágora da era contemporânea, espelho evocativo de viagens, de chegadas e partidas, onde as pessoas se cruzam, mas não se conhecem, mas também lugar simbólico de decolagens para novos horizontes e perspectivas.

Aquela disponibilidade patenteada pela presença de observadores do patriarcado de Moscou no Concílio Vaticano II, aquele auspício levado a Roma pelo metropolita Nikodim falecido entre os braços de João Paulo I, aquele elo cultivado de uma parte e da outra pela ex-cortina de ferro de modo particularmente intenso após a queda do regime soviético, aquele desejo alimentado pelos esforços de João Paulo II e pela sabedoria de Bento XVI é hoje uma realidade, ao mesmo tempo fruto de anos laboriosos e germe de messes ainda mais abundantes.

João Paulo II havia sonhado com a viagem a Moscou e foram feitas tentativas significativas, mas sempre se confrontara com a recusa da igreja ortodoxa russa que repetia: “os tempos não estão maduros”. De fato, a memória dos conflitos patriótico-religiosos entre a Polônia católica e a Rússia ortodoxa e a defesa dos uniatas greco-católicos na Ucrânia da parte de um Papa polaco não dissipava a desconfiança. Fora projetado um encontro no mosteiro beneditino de Pannonhalma na Hungria, depois na Áustria, alguns haviam ventilado o encontro em torno ao Sudário em Turim... mas, de fato nenhuma hipótese resultara praticável.

O que, então, acelerou este encontro, preparado com discrição há meses, mas anunciado no último momento? Quem segue desde o início o intensificar-se das relações entre Roma e Moscou, quem conhece o que anima simples trocas de cortesias ou mensagens aparentemente rituais de vizinhança e fraternidade, pode pesar o alcance deste encontro além de todo cálculo geo-religioso ou de realpolitik. 

É um encontro que é fruto de sapiente tessitura diplomática, mas antes e mais ainda de uma consciência compartilhada: os cristãos devem prestar contas de suas divisões e dos esforços para superá-las não por uma instância internacional, mas pela precisa vontade de seu único Senhor. As recaídas concretas também fora do espaço eclesial existirão, certamente, e serão extremamente significativas, mas mais decisivas ainda serão as consequências no plano do diálogo ecumênico e da busca da unidade dos cristãos.

Não se falará de problemas teológicos – por isso faz anos que a comissão mista católico-ortodoxa, e nenhuma igreja ortodoxa particular é habilitada a diálogos teológicos bilaterais – mas, sobretudo dos problemas onerados de sofrimento dos católicos e dos ortodoxos na Ucrânia e dos cristãos perseguidos no Oriente Médio, os quais pedem solidariedade e ajuda.

É significativo, em todo caso, que a Igreja greco-católica na Ucrânia tenha adotado somente agora, após vinte e dois anos, o que tinha sido firmado entre católicos e ortodoxos em Balamand, em 1993: “a recusa do unitarismo como método de busca da unidade de pesquisa da unidade porque oposto à tradição comum das nossas igrejas”.

Também o metropolita Hilarion, ao apresentar o evento, recordou que motivos de tensão permanecem, sobretudo na intricada questão ucraniana, bem como impulsos à solidariedade se fazem urgentes nos Países onde os cristãos, independentemente de sua confissão, são vítimas de arbitrariedades,  violências e perseguições.

Mas, na ótica cristã, o principal fator de aproximação não são as adversidades que surgem dentro ou fora do espaço eclesial, nem as oportunidades estratégicas de hipotéticas santas alianças, e sim a vontade de restabelecer aquela comunhão fraterna que é grande sinal que caracteriza os discípulos de Cristo.

Uma concórdia não “contra”, não em oposição a inimigos externos, mas fruto de uma comum conversão ao Senhor da paz e da unidade. Os cristãos não procuram a unidade porque assim lhes convém a ser muito mais numerosos, mais fortes de modo a contar mais plenamente entre os poderosos deste mundo: a procuram porque é a precisa vontade do próprio Jesus, e, segundo os Evangelhos, é o último preceito por Ele confiado aos seus discípulos.

É fácil imaginar que este encontro terá um peso considerável também sobre os trabalhos do próximo sínodo pan-ortodoxo: não porque expressão de alguma ingerência do bispo de Roma nas questões internas ao cristianismo do Oriente, mas porque capaz de favorecer um clima de diálogo e de recíproca compreensão também no interior da própria ortodoxia.

Não por nada, o primeiro a alegrar-se por este anúncio foi precisamente o patriarca ecumênico Bartholomeos. A nítida cordialidade de relações subitamente instaurada entre Francisco e Bartholomeos – o primus inter pares da ortodoxia – poderá agora caracterizar também as relações com o primaz da Igreja ortodoxa com o maior número de fiéis. Uma vez que dois guardiões se cruzam e dois corações se falam, de fato, é difícil que o gelo e a distância voltem a fazer sentir seu desconforto.

Que, enfim, este encontro ocorra em Cuba – ilha um tempo símbolo da guerra fria que estava para transformar-se em conflito nuclear, se não tivesse sido pela audaz e profética intervenção do Papa Francisco, caiu outro muro simbólico, é um daqueles sinais dos tempos que é preciso captar: como teria sido possível prosseguir na denegação de um abraço entre irmãos na mesma fé, quando até aguerridos inimigos históricos decidem voltar a se falar? Ali, no aeroporto daquela ilha, se manifestará a eficácia da convicção do Papa Francisco, que possamos definir santamente teimosa: entre irmãos cristãos não se pode não encontrar-se.

Lembrando-se das palavras de Jesus “Se alguém te pede andar uma milha, anda com ele duas” (MT 5, 41) – Francisco não solicitou que o patriarca se movesse para ele indo a Roma – como já fizeram todos os outros patriarcas – não solicitou ir à Rússia, suscitando talvez a sensação de triunfo sobre o antigo inimigo soviético desaparecido, mas disse: onde o patriarca quiser, quando quiser, como quiser. Uma autêntica obediência ao Evangelho e nada mais.


Enzo Bianchi,
prior do Mosteiro de Bose, teólogo leigo
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Fonte: Repubblica
Tradução: Benno Dischinger.

Disponível em: IHU Unisinos

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