quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

A misericórdia do Papa cria escândalo na Igreja


O que está em jogo neste confronto que às vezes parece uma áspera batalha? Não o que a Igreja crê em obediência ao Evangelho. Em particular, não está em jogo a doutrina sobre a indissolubilidade do matrimônio cristão e também não uma transação da Igreja sobre a família hoje.

Não, em jogo está a dimensão pastoral, a conduta a assumir com quem falhou e com a sociedade contemporânea. E, neste sentido, precisamente a Igreja, para ser ministra, tem a tarefa de determinar a disciplina renovando-a e tornando-a mais fiel ao Evangelho.

Seja dito com clareza: o que escandaliza é a misericórdia!

Pareceria impossível, mas não podemos esquecer que Jesus não foi condenado e entregue à morte porque se manchara com algum crime segundo o direito romano, nem porque havia desmentido a palavra de Deus contida nas leis e nos profetas, e sim pelo seu comportamento demasiado misericordioso: anunciava de fato o perdão, sem recorrer a uma justiça retributiva e punitiva, gostava de frequentar prostitutas e pecadores conhecidos como tais e estar em sua mesa.

O seu modo de comportar-se revelou que a misericórdia não é um corretivo para mitigar a justiça, não é nem mesmo um socorro para quem não conhece a verdade: a justiça de Deus é sempre misericórdia, e mesmo, é a misericórdia que estabelece a justiça e torna resplendente e não deslumbrante a verdade. Os inimigos de Jesus eram peritos da santa Escritura (escribas) e homens “religiosos” que confiavam em si mesmos e no seu comportamento escrupulosamente observante.

É, portanto, revelador que uma oposição análoga emerja também contra o Papa Francisco e o caminho que tenta traçar para a Igreja, o êxodo para as periferias existenciais de uma humanidade sofredora e mendicante de amor, ternura, compaixão de um modo sempre mais incapaz de proximidade e de fraternidade.

Já tive modo de escrevê-lo: se o Papa for fiel ao Evangelho encontrará oposição, e até rejeição e desprezo porque não poderá ser mais do que seu Senhor. Profetizou-o Jesus simplesmente lendo as próprias vivências e as dos profetas antes dele. O que espanta é que perante os papas precedentes não se avançavam criticas ou contestações, mas lhes colocavam perguntas, eram apontados como “ não católico”, enquanto hoje, graças à liberdade que Francisco quis assegurar ao debate, alguns chegam a suspeitar que ele permita deixar manipular um confronto que na Igreja deveria sempre ser escutado pelo outro, reconhecimento que o sucessor de Pedro, o Papa, “caminha junto” (syn-odos) aos bispos, mas presidindo a sua comunhão com um carisma e um mandato próprio que provém do próprio Senhor.

Retornamos ao tempo do Concílio, às contestações mais ou menos manifestas, às murmurações contra João XXIII e Paulo VI, mas isto não deve espantar. 

Em sua história, a Igreja conheceu horas mais críticas, embora estas vivências não ofereçam um testemunho de parresìa e de comunhão fraterna. Espanta que esta contestação vem daqueles a quem o Papa Francisco quis ter próximo de si no governo da Igreja ou encarregou de ajudá-lo para traçar um caminho de reforma das instituições.

Mas, este dado revela quem é o atual Papa: não é um Pontífice que descarta quem é diverso dele, não é um “reinante” que marginaliza quem tem outras óticas pastorais. Todos podem constatar esta sua conduta que o prejudica e lhe torna cansativo o seu serviço à Igreja.

Além disso, há na Igreja quem quereria que Francisco fosse somente um breve parêntesis, quem afirma que “este Papa não lhe agrada”, que o considera “débil na doutrina”, quem não gosta do seu ecumenismo que quer abraçar todos os batizados e não criar muros perante os não cristãos e os homens e as mulheres do mundo. 

Por escolha de Bento XVI participei de dois sínodos e não vejo, no que está em curso, um procedimento radicalmente diverso: publicar o resumo da discussão sem fornecer os nomes das intervenções individuais e as frases por eles pronunciados, por exemplo, concorda em não classificar os bispos em tradicionalistas e inovadores, em conservadores e liberais na base de afirmações apodíticas que não refletem a incidência havida pelo confronto e pelo diálogo no decurso do debate.

As diversidades são, de fato, legítimas, sobretudo numa assembleia verdadeiramente católica, na qual os bispos são porta-voz de seu povo. Ser “servo da comunhão” é árduo para o Papa Francisco, mas os católicos acreditam também que sobre ele está a promessa feita a Pedro pelo próprio Jesus: “Orei para que a tua fé não diminua e tu confirmes os teus irmãos”!

Esta é uma hora de apocalipse na Igreja e não será a última: cada um assuma as próprias responsabilidades nos confrontos da comunhão católica e, mais ainda, nos confrontos do Evangelho ao qual diz querer obedecer.


Enzo Bianchi,
leigo, prior do Mosteiro de Bose
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Fonte: Repubblica
Disponível em: IHU Unisinos

Tradução: Benno Dischinger

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