terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

A cruz de Cristo, medida do mundo


Quando for levantado da terra, atrairei todos os homens a Mim (Jo 12,32).

Grande número de homens vive e morre sem jamais ter refletido sobre a situação em que se encontra. Aceitam o lhes chega e seguem as suas inclinações até onde as suas oportunidades lho permitem. Guiam-se principalmente pelo prazer e pela dor, não pela razão, pelos princípios ou pela consciência. Também não tentam interpretar este mundo, determinar o que significa ou reduzir o que veem e sentem a um sistema. Mas, quando começam a contemplar a situação aparente em que nasceram – quer pela sua mente reflexiva, quer por curiosidade intelectual –, logo chegam à conclusão de que é um labirinto e uma perplexidade. É um enigma que não conseguem resolver. Parece cheia de contradições e desprovida de qualquer desígnio. O que é, como proceder nela, como é o que é, de que modo se pode começar a entendê-la, qual é o nosso destino, tudo são mistérios.

CHAVE DO MUNDO

Mergulhados nessa dificuldade, alguns compuseram uma filosofia de vida e outros, outra, pensando ter descoberto a chave que lhes permitiria ler aquilo que é tão obscuro.

Dez mil coisas passam diante de nós, uma após a outra, ao longo da vida: que devemos pensar delas? Que cor atribuir-lhes? Devemos vê-las de maneira alegre e gozosa? Ou de maneira melancólica? De maneira desalentada ou esperançosa? Devemos tomá-las levianamente ou conferir gravidade a cada assunto? Devemos tornar maiores as coisas de pouca importância ou tirar peso às de grande importância? Guardar na mente o que foi e passou, olhar para o futuro ou deixar-nos absorver pelo presente?

Como devemos olhar as coisas? Esta é a pergunta que todas as pessoas reflexivas fazem a si mesmas, e cada uma lhe responde a seu modo. Desejam pensar por meio de regras, mediante algo que esteja dentro delas e ao mesmo tempo lhes permita harmonizar e ajustar o que está fora. Essa é a necessidade experimentada pelas mentes reflexivas. Agora, permiti-me que pergunte: Qual é a chave real, qual a interpretação cristã deste mundo? Qual o critério que a Revelação nos dá para avaliar e medir este mundo? E a resposta é: o grande acontecimento deste tempo litúrgico, a Crucifixão do Filho de Deus.

A morte do Verbo eterno de Deus feito carne é a nossa grande lição quanto ao modo como devemos pensar e falar deste mundo. A sua Cruz atribuiu a tudo o que vemos o seu devido peso, a todas as riquezas, a todos os benefícios, a todas as categorias, a todas as distinções, a todos os prazeres; à concupiscência da carne, à concupiscência dos olhos e à soberba da vida. Pesou todas as emoções, as rivalidades, as esperanças, os medos, os desejos, os esforços e os triunfos do homem mortal. Deu significado ao instável e vacilante percurso da vida terrena, às suas provações, tentações e sofrimentos. Reuniu e tornou consistente tudo o que parecia discorde e sem propósito. Ensinou-nos como viver, como usar deste mundo, que aguardar, que desejar, que esperar. É a melodia em que se reúnem e harmonizam todas as dissonâncias da música deste mundo.

PESO E MEDIDA

Olhai à vossa volta e vede o que o mundo vos apresenta tanto de alto como de baixo. Ide à corte dos príncipes. Vede a riqueza e a arte de todas as nações reunidas para honrar o filho de um homem. Observai como os muitos se prostram diante dos poucos. Considerai as formalidades e o cerimonial, a pompa, o luxo, o esplendor – e a vanglória. Quereis saber o valor de tudo isso? Olhai para a Cruz de Cristo.

Ide ao mundo da política: vede a inveja que opõe nação a nação, a competição entre uma economia e outra, exércitos e frotas enfrentados uns com os outros. Examinai os diversos estamentos da sociedade, os seus partidos e as suas contendas, as aspirações dos ambiciosos e as intrigas dos astutos. Qual é o fim de toda essa agitação? A sepultura. Qual é a sua medida? A Cruz.

Ide também ao mundo do intelecto e da ciência: considerai as maravilhosas descobertas feitas pela mente humana, a variedade de artes que essas descobertas fizeram surgir, os quase milagres pelas quais demonstra o seu poder, e considerai a seguir o orgulho e a autoconfiança da razão, e a absorção do pensamento em objetos transitórios, que é a sua conseqüência. Quereis julgar retamente tudo isso? Olhai para a Cruz.

Mais ainda: vede a miséria, vede a pobreza e a indigência, vede a opressão e o cativeiro; ide para onde o alimento é escasso e a moradia insalubre. Considerai a dor e o sofrimento, as doenças longas ou agudas, tudo o que é pavoroso e repugnante. Quereis saber que peso têm todas essas coisas? Olhai para a Cruz.

Por isso, todas as coisas convergem para a Cruz – e para Aquele que dela pende –; todas as coisas lhe estão subordinadas, todas as coisas necessitam dela. É o seu centro e a sua interpretação. Pois Ele foi levantado sobre ela para que pudesse atrair a si todos os homens e todas as coisas. 

O MODO NATURAL DE PENSAR

Mas, dir-nos-ão, a perspectiva da vida humana e do mundo que a Cruz de Cristo nos confere não é a que teríamos por nós mesmos; que não é um modo de ver evidente por si mesmo; as coisas são muito mais claras e ensolaradas do que nos parecem à luz da Quaresma. O mundo parece ter sido feito precisamente para que um ser como o homem desfrute dele, e o homem foi posto neste mundo; o homem tem a capacidade de desfrutar, e o mundo lhe fornece os meios de fazê-lo.

Que modo de pensar tão natural, que filosofia simples e ao mesmo tempo agradável! Mas, como é diferente da filosofia da Cruz! A doutrina da Cruz, poder-se-ia dizer, desarranja as duas partes de um sistema que parecem ter sido feitas uma para outra; separa o fruto de quem o come, o prazer de quem o desfruta. Que problema soluciona? Não será que antes cria um problema?

Respondo, em primeiro lugar, que seja qual for a força desta objeção, não faz senão repetir aquilo que Eva sentiu e Satanás incitou no Éden. Não viu a mulher que o fruto proibido era “bom para comer” e “de aspecto desejável”? Será então de estranhar que também nós, os descendentes do primeiro casal, nos encontremos num mundo onde há um fruto proibido, e que as nossas tentações consistam em que ele está ao nosso alcance, e que a nossa felicidade consista em abster-nos dele? O mundo, à primeira vista, parece feito para o prazer, e o conhecimento da Cruz de Cristo é uma visão solene e triste que interfere com essa aparência. Seja; mas não consistirá o nosso dever em que nos abstenhamos desse prazer, se era um dever até no Éden?

A LIÇÃO DO MUNDO E A DA CRUZ

Mais ainda: dizer que esta vida está feita para o prazer e para a felicidade é encarar de maneira extremamente superficial as coisas. Para aqueles que olham além da superfície, este mundo conta uma história muito diferente. No fim das contas, a doutrina da Cruz somente nos ensina – embora de maneira infinitamente mais contundente – a mesmíssima lição que este mundo ensina àqueles que nele vivem longo tempo, que dele adquirem muita experiência, que o conhecem. O mundo é doce aos lábios, mas amargo ao paladar. Agrada no começo, mas não no fim. Parece alegre por fora, mas o mal e a miséria estão ocultos nele.

Quando um homem passou nele um certo número de anos, exclama com o autor do Eclesiastes: Vaidade das vaidades, tudo é vaidade (Ecl 1, 2). Mais: se não tiver a religião cristã por guia, terá de ir além e dizer: Tudo é vaidade e descontentamento do espírito (Ecl 6, 2); tudo é desapontamento, tudo é tristeza, tudo é dor. As dolorosas sentenças que Deus pronuncia contra o pecado estão embutidas no mundo e obrigam o homem a afligir-se, quer queira quer não. Portanto, a doutrina da Cruz de Cristo apenas antecipa a nossa experiência do mundo. É verdade que nos exorta a chorar os nossos pecados no meio de tudo o que sorri e brilha ao nosso redor; mas, se não lhe fizermos caso, acabaremos por chorá-los quando estivermos submetidos ao seu terrível castigo. Se não reconhecermos que este mundo se tornou miserável por causa do pecado olhando para Aquele sobre quem os nossos pecados recaíram, acabaremos por sentir a miséria deste mundo quando as conseqüências dos nossos pecados recaírem sobre nós.

Temos de reconhecer, pois, que a doutrina da Cruz não se encontra à superfície do mundo, pois a superfície das coisas é meramente brilhante, e a Cruz é triste. É uma doutrina escondida, encontra-se sob um véu. Amedronta-nos à primeira vista, e sentimo-nos tentados a revoltar-nos contra ela. Tal como São Pedro, exclamamos: Que Deus não o permita, Senhor! Isto não te acontecerá! (Mt 16, 22). No entanto, é uma doutrina verdadeira, pois a verdade não se encontra à superfície das coisas, mas nas suas profundezas.

SABEDORIA ESCONDIDA

Assim como a doutrina da Cruz não se manifesta ostensivamente à superfície do mundo, mas é a verdadeira interpretação desse mundo, assim, quando é recebida por um coração fiel, permanece nele como um princípio vital, mas profundo e escondido. Os cristãos, nas palavras da Escritura, vivem da fé no Filho de Deus, que os amou e se entregou por eles (cfr. Gál 2, 20), mas não o alardeiam diante de todos, antes deixam os outros descobri-lo por si mesmos. O próprio Cristo ordenou aos seus discípulos que, quando jejuassem, ungissem a cabeça e lavassem o rosto (cfr. Mt 6, 17).

Por isso, os cristãos têm o dever de não se vangloriar, antes devem contentar-se com parecer exteriormente diferentes do que realmente são no seu íntimo. Devem mostrar um semblante alegre e controlar e regular os seus sentimentos, para que esses sentimentos não se desgastem na superfície, mas possam retirar-se para o fundo do coração, e ali viver. Por isso, Jesus Cristo, e este crucificado, é – como nos diz o Apóstolo – uma sabedoria escondida (cfr. 1 Cor 2, 2.7); escondida no mundo, que à primeira vista parece falar de uma doutrina enormemente diferente, e escondida na alma fiel, que – para as pessoas que não lhe estão próximas, ou para os conhecidos ocasionais – parece levar apenas uma vida ordinária, quando na realidade está secretamente em comunhão com Aquele que foi manifestado na carne (1 Tim 3, 16), crucificado pela fraqueza (2 Cor 13, 4), justificado no Espírito, visto pelos anjos e acolhido na glória (cfr. 1 Tim 3, 16).

CORAÇÃO DA RELIGIÃO

Se é assim, a grande e tremenda doutrina da Cruz de Cristo, que agora celebramos, pode ser considerada apropriadamente, em linguagem figurada, o coração da religião. O coração costuma ser considerado a sede da vida; é o princípio do movimento, do calor e da atividade; dele parte o sangue até as extremidades do corpo e a ele retorna. Sustenta as forças e faculdades do homem; permite que o cérebro pense; e se for ferido, o homem morre. Da mesma forma, a sagrada doutrina do Sacrifício Redentor de Cristo é o princípio vital do qual vive o cristão, e sem ele não existe cristianismo.

Sem ela, não se pode sustentar de maneira proveitosa nenhuma outra doutrina; a Divindade de Cristo, ou a sua Humanidade, ou a Santíssima Trindade, ou o Juízo que há de vir, ou a Ressurreição dos mortos seriam crenças falsas, não a fé cristã, se não se aceitasse ao mesmo tempo a doutrina do sacrifício de Cristo. Por outro lado, aceitá-la pressupõe que se aceitem também as outras altas verdades do Evangelho: ela pressupõe a fé na verdadeira Divindade de Cristo, na sua verdadeira Encarnação e no estado pecaminoso do ser humano; e prepara o caminho para crer no sagrado Banquete Eucarístico, no qual Aquele que outrora foi crucificado é entregue sempre de novo às nossas almas e aos nossos corpos, real e verdadeiramente, no seu Corpo e no seu Sangue.

Mais ainda: o coração está escondido à vista e segura e cuidadosamente guardado; não é como o olho que, inserido na fronte, tudo controla e é visto por todos. Da mesma forma, a sagrada doutrina do Sacrifício Redentor não se destina a ser objeto de conversação, mas deve ser vivida; não se destina a ser enunciada irreverentemente, mas deve ser adorada em segredo; não se destina a ser usada como um instrumento necessário para a conversão dos maus ou para a satisfação dos raciocinadores deste mundo, mas deve ser apresentada aos dóceis e obedientes, às criancinhas que o mundo não corrompeu, aos aflitos que precisam de consolo, aos sinceros e honestos que buscam uma regra de vida, aos inocentes que precisam de advertência, e aos santos que merecem conhecê-la.

ALEGRIAS E ALEGRIA

Farei mais uma observação para depois concluir. Não se deve presumir que o Evangelho seja uma religião triste porque a doutrina da Cruz nos entristece. O Salmista diz: Os que semeiam entre lágrimas hão de colher com alegria (Sal 125, 6); e nosso Senhor: Os que choram serão consolados (Mt 5, 5). Que ninguém se afaste de nós com a impressão de que o Evangelho nos leva a ter uma visão sombria do mundo e da vida. Não há dúvida de que ele nos impede de alimentar uma visão superficial e de encontrar vãs alegrias transitórias naquilo que vemos; mas, se nos proíbe a alegria imediata, é apenas para nos dar uma alegria verdadeira e plena mais tarde.

O Evangelho proíbe-nos apenas começar pelo prazer. Diz-nos: “se começares pelo prazer, terminarás na dor”. Convida-nos a começar pela Cruz de Cristo, e nessa Cruz encontraremos primeiro a tristeza, mas em breve a paz e o consolo que nascerão dessa tristeza. A Cruz há de conduzir-nos à contrição, ao arrependimento, à humilhação, à oração, ao jejum; haveremos de entristecer-nos pelos nossos pecados, haveremos de entristecer-nos com os sofrimentos de Cristo; mas toda essa tristeza resultará, ou melhor, será suportada com uma felicidade imensamente maior do que o prazer que o mundo tem a dar.

É claro que as mentes superficiais e mundanas não crêem nisto, antes riem destas idéias, porque nunca saborearam a sua realidade e consideram tudo mera questão de palavras, palavras que as pessoas religiosas considerariam decoroso e conveniente usar, em que tentariam crer, nas quais pretenderiam levar outros a acreditar, mas que ninguém realmente sentiria. Isto é o que pensam; mas o nosso Salvador disse aos seus discípulos: Assim também vós, sem dúvida, agora estais tristes, mas hei de ver-vos outra vez e o vosso coração se alegrará, e ninguém vos tirará a vossa alegria; e também: Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como a dá o mundo (Jo 16, 22; 14, 27). E São Paulo: O homem carnal não aceita as coisas do Espírito de Deus, pois para ele são loucura. Nem as pode compreender, porque é pelo Espírito que se devem ponderar; coisas que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração humano imaginou, tais são os bens que Deus tem preparado para aqueles que o amam (1 Cor 2, 14.9). Assim, a Cruz de Cristo, ao falar-nos tanto da nossa redenção como dos sofrimentos do Senhor, efetivamente nos fere – mas fere para curar.

Por isso mesmo, tudo o que é brilhante e belo, mesmo que se encontre apenas à superfície deste mundo, e ainda que não tenha substância e não possa ser apreciado convenientemente por si mesmo, é no entanto figura e promessa daquela verdadeira alegria que nasce da Redenção. É uma promessa antecipada do que há de ser: é uma sombra que gera esperança porque a sua substância há de vir, mas que não deve ser confundida precipitadamente com a própria substância. Este é o modo habitual como Deus lida conosco: envia misericordiosamente a sombra antes da substância, para que possamos consolar-nos com aquilo que há de ser antes mesmo de que chegue.

Assim, antes da sua Paixão, nosso Senhor entrou triunfalmente em Jerusalém enquanto as multidões gritavam “Hosana” e atapetavam o seu caminho com ramos de palmeira e com os seus mantos. Mas tudo não passava de uma encenação vã e oca, na qual o Senhor não podia encontrar alegria. Era uma sombra que não permaneceu, mas se esvaiu. Não podia ser mais que uma sombra, pois Cristo ainda não tinha sofrido a Paixão pela qual havia de forjar o seu verdadeiro triunfo. Não podia entrar na sua glória sem antes ter sofrido. Não podia desfrutar dessa aparência de glória sabendo que era irreal. Mas aquele primeiro triunfo vislumbrado era o anúncio e presságio da verdadeira vitória que havia de vir quando tivesse vencido o aguilhão da morte. Esse triunfo figurado é o que comemoramos no Domingo de Ramos, para alentar-nos no meio da tristeza da Semana Santa e para recordarmos a alegria verdadeira que virá com o dia da Páscoa.

COMEÇAR PELA FÉ

O mesmo se aplica a este mundo com todas as suas delícias, que são também desencantos. Não confiemos nele; não lhe entreguemos os nossos corações; não comecemos por ele. Comecemos pela fé; comecemos por Cristo; comecemos pela Cruz e pela humilhação a que ela conduz. Deixemo-nos atrair para Aquele que foi levantado, para que Ele possa dar-nos generosamente todas as coisas, juntamente consigo mesmo. Busquemos primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e então todas as coisas deste mundo nos serão acrescentadas (Mt 6, 33).

Só aqueles que começam pelo mundo que não se vê são capazes de desfrutar verdadeiramente deste mundo que se vê. Só quem primeiro se absteve dele pode alegrar-se nele. Só quem primeiro jejuou pode verdadeiramente banquetear-se. Só quem aprendeu a não abusar do mundo é capaz de usá-lo. Só quem o aceita como uma sombra da realidade vindoura, e por amor ao vindouro se desprende do presente, é que há de vir a herdá-lo.

() Sermão pregado no Sexto domingo da Quaresma. É do período anglicano de Newman. Nesta tradução acrescentaram-se subtítulos para facilitar a leitura.


John Henry Newman
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Fonte: The Newman Reader
Tradução: Frederico Bonaldo

Disponível em: Quadrante

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