quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Francisco, EUA e Cuba: quantas divisões tem o Papa?


Joseph Stalin era líder da União Soviética naquela época tensa entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Uma de suas preocupações diplomáticas era tratar com a Alemanha nazista, que dava todos os sinais que empurraria seu expansionismo militar e seu anticomunismo na direção dos soviéticos.

Conta a história que Pierre Laval, primeiro-ministro da França, ansioso para conter os “eternos inimigos” alemães (antes, é claro, de Paris ser invadida pelos nazistas e ele virar colaboracionista), sugeriu a Stalin que ganhasse apoio dos católicos aproximando-se do papa Pio XII para fazer frente contra a Alemanha. Era uma sugestão meio estranha a um dos governos mais ateus da história.

Stalin teria respondido com sarcasmo: “O Papa?! E quantas divisões (militares) tem o Papa?”

(Dizem que Pio XII soube dessa história e respondeu: “Digam a meu filho Joseph que ele encontrará minhas legiões no céu.”)

Cerca de quatro décadas depois, o bloco socialista europeu caía inteiro, um país depois do outro, com a ajuda conhecida do papa João Paulo II para desintegrar o comunismo no continente.

Hoje, o presidente dos EUA Barack Obama anunciou uma reaproximação histórica com Cuba, incluindo a retomada de relações diplomáticas após mais de 50 anos, maiores facilidades para relações econômicas, acordos humanitários, exclusão de uma série de sanções e um trabalho com o Congresso para levantar o embargo contra aquele país. Um evento histórico.

No discurso, Obama agradeceu duas vezes ao Papa Francisco por ajudar no diálogo entre EUA e Cuba. O papa intercedeu em um imbróglio de prisioneiros de ambos os países que impedia o avanço do diálogo. Para a mídia, foi mais um feito inédito do papa-fenômeno. Francisco tira a paz mundial da manga da batina e consegue até acabar com uma briga icônica que durava cinco décadas.

Acontece que esse frenesi repetido está repetidamente enganado. Mais uma vez, diversos jornais e muitas pessoas foram às mídias sociais rejubilar-se por Francisco ter feito algo excepcional que provavelmente outro papa já fez antes.


Pio XII e Stalin

E fez. Escrevi acima que João Paulo II atuou diplomaticamente durante anos para que os países do Leste Europeu, inclusive sua Polônia natal, se livrassem do jugo socialista. Conseguiu. Quase deu a vida por isso quando Ali Agca — hoje sabemos, pago e treinado pela KGB — deu-lhe um tiro no meio da Praça de São Pedro.

Antes dele, João XXIII ofereceu seus bons ofícios (diplomaquês para a intermediação de conflitos por uma autoridade no direito internacional) na Crise dos Mísseis Cubanos, dialogando com EUA e União Soviética. Ele meio que só ajudou a evitar a Terceira Guerra Mundial, uma provável hecatombe nuclear.

Bento XV, recém-eleito papa com apenas 59 anos (Francisco completou 78 hoje), fez de tudo para impedir a Primeira Guerra Mundial. As potências europeias ainda viviam o espírito do imperialismo e de longos ressentimentos religiosos: a Alemanha rejeitou a diplomacia papal por orgulho protestante, a França por orgulho francês contra tudo que vinha de Roma. Bento XV fracassou, mas não por falta de esforço. Sua missão contra o conflito rendeu até a “Oração de São Francisco”, uma oração pela paz escrita naquela época, que ele ajudou a popularizar.

Os papas passaram séculos intermediando conflitos internacionais. Durante a Idade Média, os papas costumavam agir como autoridade diplomática, pois mal havia Estados com soberania internacional, muito menos um direito internacional. Vários papas, incluindo o mal-afamado Alexandre VI, mediaram Portugal e Espanha quanto às rotas para as Índias e descobertas do Novo Mundo. Até o Tratado de Tordesilhas foi aprovado por Júlio II.

Quer voltar mais no tempo? Leão Magno convenceu Átila, o Huno a desistir de dominar a Itália. Quarenta anos antes, Inocêncio I negociou com o lider godo Alarico para não invadir Roma, o que infelizmente não deu certo. Isso foi no ano 410.

O papa pode não ter exércitos; de fato, dependeu quase que exclusivamente dos exércitos dos outros para resistir militarmente aos inimigos, que não foram poucos em dois milênios. Mas Stalin quebrou a cara ao desdenhar da autoridade diplomática — e, por que não, moral — do Vigário de Cristo. O papado tem a experiência da diplomacia e da solução de conflitos em praticamente toda a sua história.

Ou seja: quem diz que Francisco fez algo inédito com Cuba e Estados Unidos está atrasado só uns mil e seiscentos anos.
____________________________________

Contos do Átrio

Nenhum comentário:

Postar um comentário